Contam que, quando acharam o Pascoal jogando na várzea, não quiseram saber de mais nada. Levaram pro Rio de Janeiro, e preencheram a papelada pra colocar ele na Liga. Foi aí que ele avisou. Com o pé, podia fazer de um tudo. O problema era a mão. Não sabia escrever. Na verdade, nem ler. Não que fossem precisar desses pormenores durante o jogo. Longe disso. E na vida, bom, ser analfabeto era problema dele. O clube que não tinha nada que ver com isso. Quer dizer, mais ou menos. A questão é que aquela papelada da Liga ele não podia assinar. E precisava. Na hora do jogo, a mesma coisa. Quando juiz trazia a súmula, quem não assinava, não jogava. E aí, começava o martírio. Tinha jogo que perigava não começar, de tanto suor pra desenhar aquelas letrinhas. Foi preciso arrumar um professor pro Pascoal, e pra quase todo mundo que vinha da várzea com ele. Isso que dava abrir o futebol pra quem quisesse. Na época em que a Liga abriu o futebol pros negros e operários, era o que mais se ouvia. Como se se esquecessem que, tamanha a qualidade, não sobrava um grande clube sem querer qualquer deles no time.
Pra tentar resolver, contam que, durante a semana, além dos treinos, acostumavam o sujeito a desenhar o próprio nome. Todo dia. Depois de suar entre as balizas naquele sol de rachar, era hora de decorar as letras, uma a uma. Não precisava ensinar de tudo. Só o nome. O primeiro e o último. Já tava bom. Primeiro a lápis, e depois à caneta, como tinha que ficar lá na hora. Contam também que, pra ajudar, às vezes, era preciso alguém escrever no papel o nome bem fraquinho, pro marmanjo rabiscar por cima. Faziam isso no vestiário, claro. Sem ninguém ver. Depois era a vez de ele repetir sozinho, na frente do juiz. Com a caneta. Com todo mundo vendo. Era aí que dava problema. Muita gente olhando, esperando pro jogo começar. Não é qualquer um que aguenta a pressão. E a súmula era uma só. Uma vez tiveram uma ideia genial, que pegou. Pra simplificar, o Pascoal mesmo, que tinha o sobrenome Cinelli, virou Silva. Igual a ele, outros vários. Cruz, Souza, Santos. Teve de tudo pra evitar a fadiga da assinatura.
De todos os casos, acho que o do Feitiço era o mais impressionante. Como quase todo mundo que veio da várzea, o Feitiço tinha dificuldade com as letras. Mesmo assim, fazia de um tudo. Com as orientações do treinador só de ouvir de boca, e de achar que era assim que era. Ninguém ligava muito pra essas coisas. O que impressionava era mudança que sucedia com ele quando era chegada a hora de rubricar o papel. O Feitiço só era o Feitiço dentro de campo. Lá, onde quem mandava era ele. Onde, uma vez, depois de marcar quatro gols contra os escoceses, apelidaram ele de Imperador do Futebol. Isso, da linha pra dentro.
Quem via ele na beirada do campo pra assinar a súmula não acreditava. Cabeça baixa, só olhava pro homem de preto depois que ele lhe recolhia a caneta da mão. Ali o Feitiço era o Luis Macedo Matoso. De tanto medo, conta o Mário Filho que, naqueles cinco minutos, quem tremia a mão era “um mulato humilde, de cabeça baixa pela vergonha de não saber assinar o nome direito”. Difícil acreditar que ocupavam o mesmo corpo, o Luis e o Feitiço. Lá dentro, debaixo da mesma pele, dividindo a coordenação das mesmas pernas. Separados pelo que sabiam e o pelo que não sabiam. Sendo, ao mesmo tempo, imperador e vassalo.
Referência
FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro. Mauad, 2003.