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O caso Gabigol e a impotência do direito desportivo frente ao intangível

Na última quinta-feira (16), uma foto do atacante do Flamengo Gabriel Barbosa (o Gabigol), vestindo a camisa do Corinthians viralizou nas redes sociais. O atacante estaria em sua casa, em uma festa privada, sentado em uma mesa com algumas garrafas de cerveja vestindo o novo uniforme alternativo do time paulista. Na ocasião, também estavam presentes funcionários do Flamengo, seu clube empregador. Em momento de paralisação do Campeonato Brasileiro por conta da tragédia climática no RS, era absolutamente previsível que o tema viraria o centro das atenções dos debates esportivos e movimentaria o imaginário das torcidas do Flamengo e do Corinthians.

O ocorrido não foi um fato isolado.  A relação com o Flamengo, que até então era de idolatria com a torcida e de reconhecimento mútuo por conta de tantos títulos conquistados (o aleta recebera no último ano a camisa 10, muito simbólica ter sido aquela utilizada por Zico, o maior ídolo da história do clube), já passava por um momento conturbado. O atleta, desde 2023, passa por um prolongado momento de mau desempenho em campo, tanto que passou a amargar o banco de reservas. As discussões sobre a renovação de seu contrato, que agora está em seu último ano (o atleta poderá em poucos dias assinar um pré-contrato com outro clube), foram suspensas e colocadas em “banho maria”, ainda mais diante da acusação por fraude no exame antidoping, que gerou uma suspensão por 2 anos imposta pelo Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem em março desde ano. O atleta recorreu ao Tribunal Arbitral do Esporte (TAS) na Suíça e só vem atuando neste momento por conta do efeito suspensivo obtido até o julgamento do mérito pelo tribunal. Como se não bastasse, em dezembro do ano passado, em participação em podcast, o atleta já havia flertado com o Corinthians, dizendo que “combinava” com o clube, após um ano de fracassos e títulos perdidos com o Flamengo.

Todo o referido background fez com que o evento ocorrido na última semana ganhasse proporções ainda maiores. Num primeiro momento, houve até alegações por parte do staff do atleta de que a foto seria fruto de montagem, mas posteriormente sua veracidade foi confirmada e o próprio jogador teve de recuar, ainda que tardiamente. As maiores torcidas organizadas do Flamengo divulgaram notas oficiais reprovando o ocorrido e acusando o atleta de traição, o que apenas ratificou o estremecimento completo da relação. O atleta chegou a se desculpar em uma entrevista concedida nesta segunda-feira (20), mas ao mesmo tempo alegando que estava em seu espaço privado e que era fato normal na periferia as pessoas usarem camisas de outros clubes.

De imediato, surgiram indagações, sob o ponto de vista puramente do direito desportivo, a respeito a possibilidade de o Flamengo, na qualidade de clube empregador, poder punir o atleta de alguma forma ou, até mesmo, rescindir o contrato de trabalho desportivo por justa causa. O clube, de imediato, dispensou o jogador do treino da última sexta-feira (19), aplicou multa equivalente a 10% de seus rendimentos CLT e determinou que o mesmo não mais vestiria a simbólica camisa 10 nas competições que não adotam numeração fixa. A nosso sentir, o clube agiu corretamente, de modo ponderado, sem que houvesse qualquer tipo de cancelamento ou linchamento público do atleta. Houve uma falta, mas não grave o suficiente para embasar eventual justa causa, que eventual e posteriormente poderia ser revertida na Justiça Trabalho. Neste ponto, o direito desportivo parece impotente ou insuficiente? Claramente que sim!

Vale ressaltar que o fato de o atleta estar em sua própria casa, em dia de folga, pode até funcionar como uma atenuante, mas isto jamais poderia justificar sua conduta diante de um cenário tão “apaixonado” como o do futebol. Neste caso, é sabido que há uma série de outras questões em jogo. Os atletas de futebol são naturalmente pessoas expostas (ainda mais na era digital, onde tudo é flagrado e registrado) e devem tratar sua imagem com o devido cuidado, até porque vários deles são remunerados a título de direito de imagem. Diversos jogadores possuem cláusulas de comportamento em seus contratos, que também englobam o “fora de campo”, as manifestações em redes sociais, o cuidado com o corpo nos dias de folga, etc., o que, a rigor, sequer precisaria estar escrito. Some-se a isto o fato de que Flamengo e Corinthians são tradicionais rivais nacionais e que os respectivos fornecedores de material esportivo e patrocinadores masters são concorrentes. O atleta deveria ter sido mais cauteloso, pois acabou, indiretamente, divulgando as marcas da equipe adversária, quando o oposto deveria acontecer.

Fora as referidas questões que são consideradas escritas ou preto no branco, como bem lembrou Carlos Eduardo Mansur em seu blog[1], o Gabigol, que sempre e tanto mostrou domínio da capacidade de se comunicar com o torcedor na perspectiva da indústria do entretenimento, violou as leis não escritas do jogo, que são aquelas que envolvem a paixão do torcedor, que é um consumidor que se comporta de modo absolutamente diverso do que quando consume um bem de consumo tradicional. O torcedor, diferente do consumidor comum, não abandona o seu clube no momento de dificuldade nem passa a consumir o produto concorrente, mesmo quando maltratado. O ocorrido não é banal. Os atletas precisam ter a sensibilidade de perceber que o mercado em que atuam não é apenas um trabalho, como se pudessem viver suas vidas como qualquer pessoa comum após a prestação do serviço. A idolatria carrega seus bônus, mas também seus ônus. Os ídolos são muito bem remunerados pela indústria quando alcançam tal status. Mas precisam entender que o verdadeiro ídolo, não é aquele que exige privilégios, mas sim aquele dá o exemplo, serve como espelho e trabalha mais duro que todos os outros.

Como se nota, o caso Gabigol funciona para denotar uma certa impotência do direito desportivo para lidar com o aspecto intangível do esporte. Sua resposta imediata sempre parecerá incipiente e tardia. O direito desportivo, quando possível, até busca, dentro do possível, capturar a paixão e o sentimento do torcedor para dentro de alguns de seus regramentos. Mas sua preocupação maior, como não poderia deixar de ser, é dar segurança jurídica aos contratos, viabilizar a resolução dos conflitos no ecossistema esportivo e viabilizar a realização das competições. Trocando em miúdos, sua esfera clássica de atuação é no universo do escrito. Mas em casos como este, estamos na seara do não escrito, do intangível. O direito desportivo jamais conseguirá dar uma resposta satisfatória a situações nesses moldes e nem deve se arvorar em tamanha pretensão. Tal tarefa sempre estará a cargo dos artistas do espetáculo, que precisam permear suas relações pela boa-fé, colaboração e pelo respeito à alma do jogo.

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[1] https://ge.globo.com/blogs/blog-do-mansur/post/2024/05/18/gabigol-e-as-regras-nao-escritas-do-futebol.ghtml. Acesso em 21/05/2024.

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