Nos últimos dias, eclodiram no noticiário esportivo informações intrincadas envolvendo a disputa entre o Vitória e o Grêmio pelo atleta Lucas Esteves[1]. A nosso ver, trata-se de um verdadeiro hard case (aqui nos valemos da expressão cunhada na teoria geral do direito), cuja solução tende a ser mais complexa do que pode aparentar numa primeira mirada, até porque há relativo espaço argumentativo para defender as posições de cada clube e do atleta.
Em apertada síntese, o jogador, que atualmente tem contrato em vigor até o final do ano de 2025 com o Vitória, teria um acerto para se transferir ao Grêmio, que chegou a depositar a multa rescisória no valor equivalente a 1 milhão de dólares. Ocorre que a diretoria do clube baiano devolveu a quantia imediatamente, alegando que, conforme previsão contratual, teria direito a uma renovação automática do contrato do atleta em caso do pagamento da rescisão por outro clube mediante o pagamento da quantia 100 mil dólares diretamente ao jogador (uma espécie de cláusula de recusa à rescisão), o que teria efetivamente ocorrido. O Vitória ainda sustenta que teria havido aliciamento do atleta por parte da equipe gaúcha que, após consulta, teria sido informada de que não havia interesse na negociação. O Grêmio, ao seu turno, alega que teria recebido uma sinalização positiva, sendo informado, inclusive, dos dados bancários e do valor da cláusula de rescisão a ser depositada por um representante do Vitória. Guerra jurídica à vista.
Em primeiro lugar, caberá à Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD) da CBF arbitrar a solução para o conflito, pois consta no contrato uma cláusula compromissória que submete eventual conflito à Câmara, a qual possui competência também para decidir questões trabalhistas, conforme prevê seu Regulamento[2]. Pelas informações divulgadas, o atleta, que é jurisdicionado da Câmara, já teria acionado a CNRD em busca de uma liberação para atuar pelo Grêmio.
O caso também envolve a figura do aliciamento, que terá de ser analisado pela Câmara. Embora nem sempre esse seja o modus operandi na prática, a FIFA exige em seus regulamentos, com o escopo de garantir estabilidade contratual no sistema associativo que comanda, que as negociações sejam feitas diretamente entre os clubes, devendo a agremiação interessada no atleta sob contrato previamente solicitar ao atual empregador autorização para negociar com o mesmo, exceto nos últimos 6 meses de contrato, hipótese na qual o jogador pode assinar um pré-contrato com outra equipe sem necessidade de compensação financeira. Tudo para garantir transparência nas negociações e evitar que o clube interessado induza uma quebra contratual negociando diretamente com o atleta. Em caso de denúncia, o Tribunal da entidade pode impor multas e o transfer ban. O Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) também prevê o aliciamento como infração disciplinar (art. 240).
Não obstante, a questão central que funcionará como ponto focal da disputa diz respeito à validade da exótica cláusula de recusa.
De um lado, o Vitória tende a argumentar que deve ser respeitada a autonomia de vontade dos contratantes, tendo o clube a possibilidade de abortar a rescisão mediante depósito da quantia estipulada no contrato, ainda mais quando se verifica no instrumento contratual que a referida cláusula teria sido acordada em contrapartida à outra previsão que garantiria ao atleta a redução do valor da multa em caso de rebaixamento. O contrato, nestes termos, respeitaria o paradigma da proporcionalidade e estaria apto a gerar direitos e obrigações entre as partes.
Por outro, o Grêmio e o atleta podem alegar que referida cláusula de recusa faria verdadeira letra morta das previsões da Lei Geral do Esporte (Lei n. 14.597/2023). A lei se incumbe de prever quais seriam as hipóteses de extinção do Contrato Especial de Trabalho Desportivo (CETD), dentre elas, o depósito, mediante a anuência do atleta, do valor da cláusula indenizatória esportiva (multa rescisória contratual ou cláusula penal devida ao clube) pela nova organização de prática esportiva, a qual, inclusive, é cláusula contratual obrigatória definida em lei (art. 86). Qualquer previsão que tentasse subverter tal sistemática legal deveria ser considerada como abusiva, além de que solaparia a sagrada liberdade laboral do atleta, que não poderia ser obrigado a atuar pelo clube quando já rescindido o contrato e assegurada a devida reparação.
Na esteira das possíveis teses, indaga-se: haveria espaço legal de conformação da previsão da LGE via autonomia de vontade das partes ou seria a norma cogente? Nos parece que a mais adequada seria a segunda hipótese. A norma que prevê a obrigatoriedade da previsão da cláusula indenizatória esportiva e que seu depósito funciona como causa extintiva do contrato de trabalho não pode ser derrogada por vontade das partes. O único espaço de negociação franqueado pela lei seria a estipulação do valor da multa em si, o qual também não é absoluto para transações nacionais. A lei prevê os requisitos para a quebra da relação, os quais são e precisam ser objetivos, por razões de segurança jurídica.
A nosso ver, o atleta tenderá a vencer a disputa e ter a sua transferência ao Grêmio autorizada. O Vitória fará jus a receber (novamente) o valor da cláusula de rescisão e o atleta seguirá sua vida. Manter a relação contratual com o jogador insatisfeito, independentemente de questões legais que isto poderia suscitar (indiretamente reviver algo assemelhado ao velho instituto do passe?!), nunca seria a solução mais saudável para as partes. Qualquer pretensão do Vitória com efetiva chance de êxito seria aquela limitada a postular uma indenização por conta do suposto aliciamento ocorrido pelo comportamento do Grêmio, que poderia ter induzido a quebra contratual. De qualquer modo, trata-se de questão que será objeto de prova.
Não se sabe se o Vitória utiliza a referida cláusula de recusa como padrão em seus contratos, mas certamente a solução final da controvérsia a ser arbitrada pela CNRD terá o condão de guiar a atuação do departamento jurídico do clube em casos futuros.
Por derradeiro, vale ressaltar que nossos comentários são baseados com base em informações preliminares e nos trechos do contrato vazados na imprensa, então absoluta cautela é recomendada. Tudo fica no condicional. Caberá à CNRD, de posse do inteiro teor da referida avença, das comunicações realizadas entre os clubes e, ouvidas as partes interessadas, interpretar o contrato para captar a real intenção dos envolvidos com base na boa-fé e encontrar uma solução adequada para o difícil caso. Seguiremos de olho.
Crédito imagem: Vitória/Divulgação
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[1] https://ge.globo.com/ba/futebol/noticia/2025/01/28/lucas-esteves-recorre-a-cnrd-para-conseguir-liberacao-do-vitoria-e-defender-o-gremio.ghtml. Acesso em 29/01/2025.
[2] https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202501/20250127131349_988.pdf (versão 2025). Acesso em 29/01/2025.