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O caso Maguila: o CTE como doença profissional da luta

INTRODUÇÃO

Faleceu aos 66 anos, no mês passado, o brasileiro José Adilson Rodrigues dos Santos, o “Maguila”. O ex-atleta sofria de complicações de saúde devido à suspeita de encefalopatia traumática crônica (conhecida pela sigla CTE, que em inglês significa Chronic Traumatic Encephalopathy).

Ele lutou 85 vezes ao longo de 17 anos, vencendo 77 dessas lutas – 68 por nocaute – e reinou como campeão brasileiro e sul-americano dos pesos pesados.

Nascido em Aracaju, Sergipe, Maguila enfrentou dois dos maiores boxeadores de todos os tempos: George Foreman, em 1990, e Evander Holyfield, em 1989. A luta contra Holyfield foi pelo título do WBC.

Ele se aposentou do boxe em 2000. Ao longo de sua carreira, Maguila era conhecido por suas carismáticas entrevistas pós-luta, nas quais expressava imensa gratidão a várias pessoas.

Maguila se aposentou em 2000, e foi em 2013 que ele deu indícios de ter desenvolvida a CTE, tendo lutado nos últimos anos com perda de memória e confusão. O comportamento agressivo frequentemente associado à sua condição contribuiu para que sua esposa Irani Pinheiro buscasse ajuda profissional.

Foi em 2018 que ele decidiu doar seu cérebro para pesquisas científicas após sua morte. Os últimos anos de sua vida foram passados no Centro Terapêutico Anjos de Deus, em Itu, São Paulo.

Agora, o cérebro do ex-pugilista será analisado pelo Biobanco para Estudos em Envelhecimento da FMUSP, que também tem os cérebros dos ex-atletas Éder Jofre e Bellini, ambos diagnosticados com ETC após a morte.[1]

A CTE é uma condição patológica complexa caracterizada por neurodegeneração, como resultado de traumas repetidos na cabeça. Atualmente, o diagnóstico de CTE só pode ser feito post mortem.[2]

Caso se confirme que Maguila carregava a doença, cabe o questionamento: teriam os herdeiros do ex-atleta direito a serem indenizados pela enfermidade que o acometia, considerando que esta decorreu de atividade profissional?

O CTE COMO DOENÇA PROFISSIONAL DO ATLETA DA LUTA

Embora a CTE tenha sido descrita há quase 100 anos, foi somente há menos de 20 anos que o Dr. Bennet Omalu iniciou um programa para aumentar a conscientização sobre sua importância, o ônus público e o impacto crescente sobre o bem-estar das pessoas afetadas, bem como o aumento das taxas de mortalidade, o que culminou com a estreia do filme biográfico americano de drama esportivo, “Concussion” (no Brasil, o filme recebeu o título “Um Homem entre Gigantes”), em 2015.

Atualmente, sabe-se que essa condição não é tão incomum quanto se pensava e que pode ocorrer em atletas envolvidos em esportes de contato, como boxe, artes marciais, futebol americano e rúgbi, além de futebol, polo aquático e hóquei no gelo. Considerando que a CTE é inerente ao esporte de combate, devido aos impactos na cabeça, questiona-se: a CTE é uma doença profissional do atleta da luta?

A doença profissional é aquela peculiar a determinada atividade ou profissão, também chamada de doença profissional típica, tecnopatia ou ergonopatia. O exercício de determinada profissão pode produzir ou desencadear certas patologias, sendo que, nessa hipótese, o nexo causal da doença com a atividade é presumido. É o caso, por exemplo, do empregado de uma mineradora que trabalha exposto ao pó de sílica e contrai silicose. Afirma Tupinambá do Nascimento que, nas tecnopatias, a relação com o trabalho é presumida juris et de jure, inadmitindo prova em sentido contrário. Basta comprovar a prestação do serviço na atividade e o acometimento da doença profissional. Sinteticamente, pode-se afirmar que doença profissional é aquela típica de determinada profissão.[3].

Nesta senda, importante que se faça uma analogia da CTE com a silicose: a silicose é doença que se instala durante a vigência do trabalho sob condições nocivas, podendo se desenvolver apenas em momento posterior, mesmo depois de muitos anos após a aposentadoria do trabalhador[4], como foi o caso da doença de Maguila.

Relativo à luta, não há indício que afaste a presunção de existência do nexo de causalidade entre o trabalho, o adoecimento e a morte do ex-lutador Maguila. Destarte, a CTE poder-se-ia considerada doença profissional, o que enseja a reparação do dano aos herdeiros do lutador por parte dos contratantes, a exemplo do que ocorre com a silicose[5], havendo o chamado dano pós-contratual.[6]

Importa analisar agora se seria cabível tal cobrança em sede de contrato de trabalho sem relação de emprego.

A RESPONSABILIDADE DO CONTRATANTE PELAS LESÕES DOS ATLETAS E A COMPETENCIAL MATERIAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO PARA JULGAR A LIDE

Todo e qualquer fato lesivo, causador de dano patrimonial ou extrapatrimonial decorrente da prática de ato ilícito, de previsão legal, do exercício de atividade de risco e da falta de prevenção ou precaução, quando exigível, e uma vez preenchidos os pressupostos de caracterização da responsabilidade, é suscetível de reparação ou composição.[7]

O Código Civil Brasileiro, em seu art. 927, parágrafo único, suscitou uma nova leitura no que tange à responsabilidade civil no âmbito laboral, à luz do art. 7º, caput, da CF. Assim, tratando-se de atividade empresarial, ou de dinâmica laborativa (independentemente da atividade da empresa), fixadoras de risco especialmente acentuado para os trabalhadores envolvidos, desponta a exceção ressaltada pelo dispositivo, tornando objetiva a responsabilidade empresarial por danos acidentários (responsabilidade em face do risco).[8]

No caso dos lutadores profissionais, havendo sequelas de ordem física e emocional ao empregado, ocorre o chamado fortuito interno, assim considerado o acontecimento que, apesar de imprevisível e inevitável, está vinculado aos riscos da atividade e se insere na dinâmica empresarial, compreendido este como ação humana, mas incluído no risco habitual da atividade empresarial.[9]

Em se tratando de algumas doenças, mais insidiosas (como é o caso do CTE), que demoram longo período para se manifestarem, talvez a responsabilização do organizador do evento desportivo seja mais complexa. Suponha-se a situação de um boxeador, que depois de 15 anos de carreira, desenvolveu danos neurológicos decorrentes dos constantes golpes desferidos contra sua cabeça. O boxeador não é empregado de ninguém, de outro giro, por mais que inexista relação de emprego entre o atleta autônomo e a organização responsável pelas regras do desporto, toda a lucratividade do evento, com vendas de ingressos e produtos licenciados, bem como de direitos de transmissão midiática, decorre da atividade dos atletas, os astros e as estrelas dos eventos desportivos.[10]

Mesmo diante da sazonalidade presente nessa relação (vez que não é sempre que o atleta da luta se ativa para competir), haveria o dever do promotor de ressarcir o atleta pelos danos, como consignado em acórdãos paradigmas da lavra de meu pai, o saudoso Ministro Walmir Oliveira da Costa, do TST:

“RECURSO DE REVISTA. TRABALHADOR AUTÔNOMO/PEQUENO EMPREITEIRO. ACIDENTE DE TRABALHO. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL E MATERIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DA EMPRESA CONTRATANTE. 1. A condição de trabalhador autônomo não afasta a incidência dos princípios fundamentais da dignidade humana e do valor social do trabalho consagrados na Constituição da Republica (art. 1º, III e IV). Por sua vez, a natureza autônoma da relação de trabalho não se mostra incompatível com a responsabilidade civil da empresa contratante pelo acidente de trabalho ocorrido na execução do serviço contratado. 2. Na hipótese vertente, a Corte de origem, valorando o conjunto fático-probatório, firmou convicção acerca da caracterização da responsabilidade objetiva da demandada em reparar o dano sofrido pelo trabalhador. 3. Os fatos delineados no acórdão recorrido, quais sejam o dano (morte do trabalhador autônomo, marido e pai dos autores) e o nexo causal (acidente de trabalho ocorrido no desempenho da atividade contratada – pintura do estabelecimento), autorizam o enquadramento jurídico nas disposições contidas no art. 927, parágrafo único, do Código Civil, não havendo margem para a alegação de afronta aos art. 186 e 927, -caput-, do Código Civil, dispositivos que tratam da responsabilidade civil subjetiva. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL E MATERIAL PROPOSTA PELOS SUCESSORES DO TRABALHADOR AUTÔNOMO VÍTIMA DE ACIDENTE DE TRABALHO. A ação foi proposta pelos sucessores do trabalhador autônomo vítima de acidente de trabalho, ou seja, a pretensão não decorre da relação de emprego, mas de direito próprio, à indenização por dano moral e material, em razão do falecimento do marido e pai. Pertinente, pois, a incidência da parte final do item III da Súmula nº 219 do TST, segundo o qual são devidos os honorários advocatícios nas lides que não derivem da relação de emprego. Recurso de revista de que não se conhece. (TST – RR: 4664005920095120032, Relator: Walmir Oliveira da Costa, Data de Julgamento: 14/05/2014, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 16/05/2014)” (grifo nosso)

“RECURSO DE REVISTA. ATLETA PROFISSIONAL DE FUTEBOL. ACIDENTE DE TRABALHO. INDENIZAÇÃO POR DANO MATERIAL E MORAL. 1. O Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, não obstante reconhecer que o acidente ocorreu enquanto o autor desenvolvia sua atividade profissional em benefício do clube réu, bem como que, em virtude do infortúnio, o atleta não teve condições de voltar a jogar futebol profissionalmente, concluiu que a entidade desportiva não teve culpa no acidente de trabalho, além de haver adotado todas as medidas possíveis para tentar devolver ao autor a capacidade para o desenvolvimento de suas atividades como atleta profissional, não sendo possível a sua recuperação porque a medicina ainda não tinha evoluído ao ponto de permitir a cura total. Razões pelas quais a Corte a quo rejeitou o pedido de indenização por dano material e dano moral. 2. Ocorre, todavia, que, conforme o disposto nos arts. 34, III , e 45 , da Lei nº 9.615/98, são deveres da entidade de prática desportiva empregadora, em especial, submeter os atletas profissionais aos exames médicos e clínicos necessários à prática desportiva, e contratar seguro de vida e de acidentes pessoais, vinculado à atividade desportiva, para os atletas profissionais, com o objetivo de cobrir os riscos a que eles estão sujeitos . 3. Em tal contexto, incide, à espécie, a responsabilidade objetiva prevista no art. 927, parágrafo único, do Código Civil, segundo o qual, haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. 4. Dessa orientação dissentiu o acórdão recorrido. Recurso de revista parcialmente conhecido e provido” (RR-393600-47.2007.5.12.0050, 1ª Turma, Relator Ministro Walmir Oliveira da Costa, DEJT 07/03/2014)”. (grifo nosso)

Cumpre esclarecer ainda que a competência material da Justiça do Trabalho para as ações de indenização por dano moral ou patrimonial nesses casos decorre de se tratar de relação de trabalho, já que a Emenda Constitucional n. 45/2014, alterando o artigo 114 da Constituição Federal, ampliou significativamente a competência material desta Justiça Especializada, incluindo textualmente as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho (CF/88, artigo 114, VI), tendo o STF pacificado a questão no julgamento do Conflito de Competência n. 7204.

Caberia agora à família do lutador buscar os promotores de suas lutas para que seja feito o devido ressarcimento pelos danos ao atleta e à família, que teve a privação do convívio com a lenda do boxe.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Adilson Rodrigues, o Maguila, com sua determinação, levou o boxe brasileiro a patamares internacionais. Dentro e fora dos ringues, Maguila sempre foi um exemplo de superação e de enfrentamento de desafios.

O estudo de sua condição pode fazer com que novas medidas de segurança surjam para melhorar o esporte de combate, criando protocolos que previnam lesões semelhantes nos atletas atuais, permitindo também que a legislação avance no sentido de criar mecanismos capazes de coibir a exploração desmedida dos atletas, a despeito de nem sempre estarem em condição de competir.

A luta é uma profissão como qualquer outra. É direito do atleta da luta ter a garantia de sua saúde e segurança no trabalho na mesma forma dada a outras profissões, que têm leis e normas regulamentadoras nesse sentido.

Que não deixemos outro ícone do esporte partir sem que olhemos com mais cuidado para essa questão.

Crédito imagem: Divulgação

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 [1] https://www.metropoles.com/celebridades/cerebro-de-maguila-e-doado-para-estudos-sobre-doenca-entenda.

[2] Mavroudis I, Balmus IM, Ciobica A, Luca AC, Gorgan DL, Dobrin I, Gurzu IL. A Review of the Most Recent Clinical and Neuropathological Criteria for Chronic Traumatic Encephalopathy. Healthcare (Basel). 2023 Jun 8;11(12):1689. doi: 10.3390/healthcare11121689. PMID: 37372807; PMCID: PMC10298260.

[3] OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Indenizações Por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional. 4ª ed. São Paulo: Ltr, 2008. p. 46/47.

[4] J Bras Pneumol. 2006;32(Supl 1):S41-S7. https://doi.org/10.1590/S1806-37132006000800008.

[5] INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. SILICOSE. O diagnóstico de doença profissional, silicose, em empregado que prestou serviços por longos anos em mina de subsolo assegura aos familiares a reparação pelos danos morais sofridos em virtude do estado patológico do ente querido, sem a mínima perspectiva de cura. (TRT-3 – RO: 00109011220185030091 MG 0010901-12.2018.5.03.0091, Relator: Cleber Lucio de Almeida, Data de Julgamento: 29/10/2019, Setima Turma, Data de Publicação: 30/10/2019).

[6] Espécie de dano extrapatrimonial, são lesões perpetradas algum tempo depois do término da relação de trabalho, porém, decorrentes do contrato de trabalho e da violação de um dever de conduta inerente aos sujeitos do contrato posteriormente à sua extinção, com fundamento na cláusula geral de boa-fé. ROCHA, Fábio Ribeiro da. Danos extrapatrimoniais e a competência da Justiça do Trabalho, p. 211. In: ARAÚJO, Andréa Eduardo Dorster; PESSOA, Flávia Moreira Guimarães; CONFORTI, Luciana Paula (org.). Os 20 anos da EC 45/2004 e a competência da justiça do trabalho. São Paulo: LTR Editora, 2024. p. 205-215.

[7] BELMONTE, Alexandre Agra. Danos patrimoniais e extrapatrimoniais na Justiça do Trabalho, p. 24. In: ARAÚJO, Andréa Eduardo Dorster; PESSOA, Flávia Moreira Guimarães; CONFORTI, Luciana Paula (org.). Os 20 anos da EC 45/2004 e a competência da justiça do trabalho. São Paulo: LTR Editora, 2024. p. 21-35.

[8] COSTA, Elthon José Gusmão da; BAALBAKI, Renata Campos Falcão. A ASSUNÇÃO DO RISCO E OS CONTRATOS NOS ESPORTES DE COMBATE, p. 31. In: BAALBAKI, Renata Falcão Campos; PEIXOTO, Márcia (org.). Além das Linhas: O direito desportivo e o mundo do esporte. Rio de Janeiro: Processo, 2024. p. 27-41.

[9] Ibid., p. 35.

[10] PETACCI, Diego. Acidentes de Trabalho no Esporte Profissional. 1ª. ed. São Paulo: Editora LTr, 2016, p. 170.

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