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O Caso Misha: de que modo a mascote foi utilizada como forma de Soft Power nas Olímpiadas de 1980?

Por Letícia Tokunaga João

De origem grega, os Jogos Olímpicos objetivam promover a união internacional por meio do desporto, fazendo com que todas as nações se harmonizem em prol de um interesse comum. Todavia, a celebração tem ganhado progressivamente caráter político, refletindo as inquietações e a “hierarquia” entre os países, tornando-se uma forma de expressão de poder dos Estados em âmbito internacional. Assim, o presente trabalho almeja destrinchar de que modo Misha, a mascote dos Jogos Olímpicos de 1980 de Moscou, foi utilizada como forma de Soft Power em face do momento latente entre as duas grandes potências em combate na Guerra Fria.

Assim sendo, cumpre discorrer brevemente a respeito do contexto histórico que permeava a Guerra Fria. De modo geral, o conflito consistia em uma disputa entre as duas grandes potências da época, os Estados Unidos e a União Soviética. Recebeu essa nomenclatura dada a ausência de embate físico e direto dos dois Estados, ficando a disputa restrita ao objetivo de hegemonia mundial, seja ela por meio econômico ou bélico, dando origem à corrida armamentista e espacial, que provocou uma série de inovações tecnológicas em ambos os Estados. Ademais, o conflito envolvia, ainda, o campo ideológico, visto que ambas eram líderes dos dois grandes blocos que dividiam o mundo: a ideologia socialista, liderada pela URSS, e o viés capitalista, administrada pelos EUA[1].

Desse modo, o conflito indireto consistia não só na disputa entre os Estados Unidos e a então União Soviética no campo bélico-tecnológico, mas também no âmbito político, em que ambas as potências objetivavam predominância das ideias capitalistas e socialistas, respectivamente, em todo o planeta. Nessa toada, importa destacar a Guerra do Afeganistão de 1979 como um dos maiores marcos da Guerra Fria, que influiu diretamente nas Olímpiadas de 1980, sendo relevante, portanto, que se entenda melhor a respeito desse conflito.

Com a duração de uma década, acontecendo entre os anos de 1979 e 1989, a Guerra do Afeganistão de 1979[2] surgiu a partir de uma crise política dentro do próprio território da República Democrática do Afeganistão, que há muito já possuía relações estreitas com o polo soviético. Após a Revolução de Saur, que destituiu Mohammed Daoud Kahn da presidência, e instituiu Nur Muhammad Taraki como o novo presidente afegão, houve diversas reformas que objetivavam instaurar os ideais socialistas no país, circunstância que não foi bem-visto por grupos conservadores islâmicos, os quais passaram a se rebelar contra o governo vigente.

Nesse contexto, Taraki foi assassinado, abrindo espaço para que Hafizullah Amin fosse empossado presidente, dando início a uma gestão de muito desgaste com a União Soviética, que resultou em sua invasão não só para que a potência evitasse a aproximação de Amin aos EUA, garantindo a manutenção dos ideais socialistas no território, mas também para o controle dos rebeldes do interior, denominados mujahidins. Assim, os EUA viram nesse conflito uma oportunidade não só de afastar o Afeganistão da URSS como também de desgastar a economia soviética, resultando na intervenção norte americana, por meio do fornecimento de armas e treinamento militar aos afegãos, no combate que acabaria com a derrota soviética e a consequente retirada de suas tropas do território, tornando evidente o ressentimento edificado entre as potências já adversárias na Guerra Fria, que culminou no boicote norte americano nas Olímpiadas de 1980.

Ocorridos entre os dias de 19 de julho a 03 de agosto, os Jogos Olímpicos de 1980 contaram com a participação de 5.179 atletas e 80 equipes, sendo composto, ainda, por 203 eventos[3]. Muito embora as olímpiadas sejam um momento destinado à união e incentivo ao convívio pacífico de todos os Estados, corroborando com os ideais de tolerância, justiça, equidade e a virtude expressos pela Carta Olímpica[4],  o evento daquele ano ficou justamente conhecido pelo boicote norte-americano à cerimônia, que carregou consigo a ausência de cerca de 50 outras equipes no evento[5].

Objetivando manifestar sua tristeza e indignação com o contexto de guerra que vinha se perdurando há anos em solo mundial, a URSS aproveitou o contexto dos Jogos Olímpicos para investir na mascote da competição, que entraria para a história como responsável pela revolução no entendimento acerca de sua importância nos eventos desportivos. Criada pelo ilustrador soviético Victor Chizkov, a mascote, que recebeu o nome de Mikhail Potapych Toptygin (mais conhecida pelo vulgo Misha), é uma ursa, fazendo jus a popularidade do animal na Rússia, que protagoniza diversos contos e canções populares. De mais a mais, ela possui, ainda, um cinto com as 5 cores dos arcos olímpicos, e os 5 anéis que representam os continentes[6]. Muito embora a mascote não apresentasse aparentemente nada excepcional com relação às demais que a precederam, fez história na cerimônia de encerramento dos Jogos que, formada por placas coloridas na arquibancada, chorou, lamentando o clima hostil que imperava no planeta, e pedindo pelo fim da guerra[7], contexto que notadamente demonstrou de modo o Soft Power pôde ser usado naquela ocasião.

Cunhado por Joseph Nye, cientista político da Universidade de Harvard, o termo Soft Power faz referência a um “poder suave”, isto é, a habilidade de um país dominar o contexto internacional, mas não por meio de sua força bélica (Hard Power), e sim através da perpetuação de sua cultura, valores, política e estilo de vida. Nesse contexto, exercer-se-á influência “indireta” sobre os demais Estados, inserindo-se neles por meio da música, cinema, vestimentas, alimentos etc, resultando, nessa toada, na incorporação de seus objetivos por outros Estados, que cooperarão para o seu alcance.[8].

Hodiernamente, uma reconhecida potência no que tange seu Soft Power é a França. Isso ocorre, pois ela, por meio da indústria do cinema, bem como do universo audiovisual como um todo, almeja a manutenção de seus laços com os demais países francófonos, perpetuando nestes os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, oriundos da Revolução Francesa e símbolos absolutos da supremacia da burguesia francesa. Assim, muito embora a França já tenha deixado de ser uma potência bélica e econômica, ela foi capaz de se posicionar como um grande eixo cultural em âmbito internacional, fazendo com que o mundo, todos os anos, se vire para ela para assistir ao Festival de Cannes, por exemplo, tornando-se incomparável nessa seara[9].

 Diante do exposto, é nítida a relevância da mídia para a concretização do Soft Power: ela é a principal responsável pela divulgação de informações, detendo o poder de manipulação do acesso da população aos meios de comunicação. Assim, levando-se em consideração que os Jogos Olímpicos figuram entre as festividades esportivas mais acompanhados pela mídia, eles representam também uma oportunidade para o país que abrigará a competição se colocar em evidência no contexto mundial, visto que o planeta se concentra nessa nação afim de acompanhar o campeonato. Nessa toada, torna-se um momento oportuno para uma verdadeira “propaganda nacional”, e a consequente perpetuação disfarçada de seus valores e ideais, intenção essa sustentada pelas mascotes, que devem ostentar a identidade cultural do país que sediará a competição, seja por meio de suas cores, formato ou adornos.

Nesse contexto, pôde-se notar a maneira sagaz com que a URSS utilizou o choro da mascote das Olímpiadas de 1980: aproveitando-se da ampla cobertura midiática não só das Olímpiadas, mas sobretudo da sua cerimônia de encerramento, o país soviético amparou-se no emocional do público, posicionando-se como o polo “bom” da guerra, e colocando, por conseguinte, os EUA como os “vilões”, não só do conflito, importando-lhes também a qualidade de responsáveis pelos males decorrentes à época. Assim sendo, tornou-se evidente a utilização da mascote como forma de Soft Power, a qual eternizou os supostos valores soviéticos de paz e bondade na memória dos espectadores, que até os dias de hoje rememoram o episódio, que ficou imortalizado não só no universo esportivo, como também na mídia mundial.

Crédito imagem: COI

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Letícia Tokunaga João

Letícia Tokunaga João, acadêmica de direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (campus Higienópolis – SP), membro do Grupo de Estudos de Direito Desportivo Empresarial do Mackenzie (GEDDE MACK)

Referências Bibliográficas

BRITES, Alessandra Scangarelli. O conceito de Soft Power e o exemplo francês (texto bilíngue). 12 nov. de 2018. Disponível em: <https://revistaintertelas.com/2018/11/12/o-conceito-de-soft-power-e-o-exemplo-frances-texto-bilingue/>. Acesso em: 2 abr. 2022.

COMITÊ OLÍMPICO INTERNACIONAL. Carta Olímpica. Tradução: Alexandre Miguel Mestre e Filipa Saldanha Lopes. Lisboa: Instituto Português do Desporto e Juventude IP, 2012. Disponível em: https://www.fadu.pt/files/protocolos-contratos/PNED_publica_CartaOlimpica.pdf. Acesso em: 8 set. 2021.

DISLACIO, Flávio. Choro de Misha, superação de Muhammad Ali … relembre épicas cerimônias olímpicas. 24 jun. de 2020. Disponível em: < https://ge.globo.com/olimpiadas/noticia/choro-de-misha-superacao-de-muhammad-ali-relembre-epicas-aberturas-olimpicas.ghtml>. Acesso em 02 abr. 2022.

ENRICONI, Louise. Guerra Fria: a guerra ideológica entre duas potências. Politize!. 09 nov. de 2017. Disponível em: < https://www.politize.com.br/guerra-fria/>. Acesso em 02 abr. 2022.

IOC. Jogos Olímpicos de Verão Moscou 1980 – Atletas, Medalhas e Resultados. Disponível em: <https://olympics.com/pt/olympic-games/moscow-1980>. Acesso em: 2 abr. 2022.

IOC. Mascote Olímpico de Moscou 1980 – Fotos e História. Disponível em: <https://olympics.com/pt/olympic-games/moscow-1980/mascot>. Acesso em: 7 abr. 2022.

OLIVEIRA, Jorge Costa. 20 out. de 2021. Soft Power e a projeção de poder internacional. Disponível em: <https://www.dn.pt/opiniao/soft-power-e-projecao-de-poder-internacional-14235390.html>. Acesso em 02 abr. 2022.

SILVA, Daniel Neves. “Guerra do Afeganistão de 1979”; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/guerras/ocupacao-sovietica-afeganistao.htm. Acesso em 07 de abril de 2022.

[1] ENRICONI, Louise. Guerra Fria: a guerra ideológica entre duas potências. Politize!. 09 nov. de 2017. Disponível em: < https://www.politize.com.br/guerra-fria/>. Acesso em 02 abr. 2022.

[2] SILVA, Daniel Neves. “Guerra do Afeganistão de 1979”; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/guerras/ocupacao-sovietica-afeganistao.htm. Acesso em 07 de abril de 2022.

[3] IOC. Jogos Olímpicos de Verão Moscou 1980 – Atletas, Medalhas e Resultados. Disponível em: <https://olympics.com/pt/olympic-games/moscow-1980>. Acesso em: 2 abr. 2022.

[4] COMITÊ OLÍMPICO INTERNACIONAL. Carta Olímpica. Tradução: Alexandre Miguel Mestre e Filipa Saldanha Lopes. Lisboa: Instituto Português do Desporto e Juventude IP, 2012. Disponível em: https://www.fadu.pt/files/protocolos-contratos/PNED_publica_CartaOlimpica.pdf. Acesso em: 07 abr. 2022. P. 7.

[5] IOC. Jogos Olímpicos de Verão Moscou 1980 – Atletas, Medalhas e Resultados. Disponível em: <https://olympics.com/pt/olympic-games/moscow-1980>. Acesso em: 2 abr. 2022.

[6] IOC. Mascote Olímpico de Moscou 1980 – Fotos e História. Disponível em: <https://olympics.com/pt/olympic-games/moscow-1980/mascot>. Acesso em: 7 abr. 2022.

[7] DISLACIO, Flávio. Choro de Misha, superação de Muhammad Ali … relembre épicas cerimônias olímpicas. 24 jun. de 2020. Disponível em: < https://ge.globo.com/olimpiadas/noticia/choro-de-misha-superacao-de-muhammad-ali-relembre-epicas-aberturas-olimpicas.ghtml>. Acesso em 02 abr. 2022.

[8] OLIVEIRA, Jorge Costa. 20 out. de 2021. Soft Power e a projeção de poder internacional. Disponível em: <https://www.dn.pt/opiniao/soft-power-e-projecao-de-poder-internacional-14235390.html>. Acesso em 02 abr. 2022.

[9] BRITES, Alessandra Scangarelli. O conceito de Soft Power e o exemplo francês (texto bilíngue). 12 nov. de 2018. Disponível em: <https://revistaintertelas.com/2018/11/12/o-conceito-de-soft-power-e-o-exemplo-frances-texto-bilingue/>. Acesso em: 2 abr. 2022.

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