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O caso Shakhtar: insurreição dos clubes às medidas provisórias

É notório que a eclosão de um conflito armado produz efeitos que ultrapassam a localidade da guerra, se espalhando por todo o mundo, nos mais distintos aspectos e setores. Sendo assim, é inegável que os acontecimentos na Ucrânia afetam também o esporte, setor que se enquadra o futebol, um dos mais relevantes economicamente para vários países do globo.

Durante a atual invasão à Ucrânia, que ainda persiste, a FIFA e a UEFA entraram no circuito, como poucas vezes se viu, visando a garantia dos direitos humanos, o que era previsto em seus estatutos, e sancionaram a Federação Russa e, automaticamente, seus jogadores e treinadores. Nesse contexto, resolveram suspender a seleção russa e os clubes locais de todas as competições internacionais, o que acabou se estendendo para atual temporada (2022/23). Recentemente, foi confirmado pelo TAS, que negou os recursos da Federação Russa e de clubes russos[1].

Dessa forma, somando-se a impossibilidade de continuação da prática do desporto na Ucrânia, com inúmeros desdobramentos nas relações laborais, e a dificuldade e alteração do status quo do esporte jogado em território russo – muito embora menos afetado pela disputa territorial – juntamente com o alto teor de imprevisibilidade gerado pela guerra, se chegou a um resultado de insegurança jurídica para todas as partes. Os membros da cadeia do esporte ficaram desemparados, mesmo que momentaneamente.

Por conseguinte, para solucionar esse terreno de incertezas, o que, por si só, poderia ser capaz de ocasionar numerosos litígios, a entidade máxima do futebol teve que se pronunciar sobre o tema, posto que os jogadores estavam impedidos de exercer a sua profissão, havia várias equipes interessadas em contar com as suas prestações, clubes que haviam feito um investimento por eles estando totalmente sem direção, e, ao mesmo tempo, conforme já mencionado, contratos em vigor de impossível prestação, ainda que de maneira instantânea.

Sob esse viés, foi feito algo semelhante ao que sucedeu durante a pandemia do COVID-19. A FIFA editou um anexo exclusivamente para tratar sobre esse assunto, que ganhou o nome de disposições transitórias relativas à situação excepcional derivada da Guerra na Ucrânia e o número 7 no Regulamento sobre Status e Transferência de Jogadores da FIFA (RSTJ)[2], o que já foi explicado detalhadamente nessa seção em outra oportunidade.[3]

Em suma, os pontos centrais das alterações promovidas pela FIFA, que tiveram que ganhar diversas adaptações em seu regulamento, foram: i) os contratos dos profissionais estrangeiros que atuassem na Ucrânia, salvo se fosse acordado de maneira distinta entre partes, estaria automaticamente suspenso até 30 de junho deste ano; ii) por outro lado, não houve uma suspensão automática para aqueles que atuassem na Rússia, uma vez que seria considerada uma escolha do jogador/treinador, que poderia suspender, de maneira unilateral, desde que não tivessem chegado a um mútuo acordo com o clube até o dia 10 de março ou se tivesse sido pactuado algo diferente.

Ato contínuo, perante o prosseguimento do conflito armado, no dia 21 de março, a FIFA publicou a Circular nº 1800[4], aprovada pelo Conselho Bureau, que estendeu os efeitos das medidas transitórias trazidas pelo anexo 7. Desse modo, os jogadores e treinadores estrangeiros que atuassem na Rússia e Ucrânia poderiam suspender os contratos unilateralmente até 30 de junho de 2023 desde que não chegassem a um acordo com o clube antes de 30 de junho deste ano, um dia antes da abertura da janela de transferência[5] na Ucrânia e cerca de 10 dias após a publicação da circular.

No dia 2 de julho, foi divulgada a circular nº 1804, que impôs algumas normas administrativas que pudessem estimular e prestigiar o mútuo acordo entre as partes, especialmente para os treinadores/jogadores estrangeiros que atuassem na Ucrânia. Ressalte-se que, um dos objetivos da FIFA fixados em seu Estatuto, detidamente no artigo 5º, é promover a relação cordial entre todos os seus membros, oferecendo os meios necessários para resolver qualquer tipo de disputa entre eles.

Nessa esteira, ciente de que a extensão do anexo 7 poderia resultar em um número maior de saídas diante das circunstâncias excepcionais, para garantir que todas as transferências internacionais envolvendo jogadores estrangeiros estivessem em conformidade com o regulamento e para que os futebolistas tivessem seu direito legítimo de poder exercer sua profissão, o clube adquirente não poderia iniciar os trâmites no TMS (Transfer Matching System – TMS)[6] antes de 1º de agosto de 2022. Ou seja, não poderia contar com os serviços do atleta que não tivesse chegado a um acordo com o clube cedente, antes dessa data, posto que o registro é fundamental para a atuação em qualquer campeonato.

Em primeiro lugar, cabe analisar a medida pelo seu aspecto formal antes de enfrentar o conteúdo material. O Conselho Bureau é um órgão previsto no artigo 38 do Estatuto da FIFA[7], é formado pelo presidente da FIFA e os das seis confederações, que possui dentre suas competências, a tomada de decisões sobre temas que requeiram uma imediatez entre as duas reuniões do Conselho. As resoluções tomadas por esse órgão deverão ser ratificadas pelo Conselho na próxima reunião. Portanto, formalmente, o primeiro requisito está cumprido e o segundo está pendente de ratificação, quando da próxima reunião.

Por sua vez, no âmbito material surgiu uma das maiores polêmicas atuais. Priorizando a liberdade de locomoção e o direito do futebolista em exercer sua profissão, a FIFA pode ter causado prejuízos econômicos aos clubes que tinham feito um investimento anterior na aquisição de direitos econômicos e em salários. Nasce, então, o caso do Shaktar, um dos principais clubes ucranianos, que possuía 14 estrangeiros em seu elenco.

Nessa semana, o clube ajuizou uma demanda ante ao CAS[8] requerendo uma compensação de 50 milhões de euros pelos supostos prejuízos causados pela FIFA com a prorrogação dos efeitos do anexo 7 do RSTJ por mais um ano. Para isso, aduz que não foi consultado sobre essa mudança e que a divulgação da extensão, 9 dias antes do prazo para o mútuo acordo e 10 dias para a abertura da janela, foi fundamental para a mudança de rumo em diversas tratativas em que se negociava a venda de direitos econômicos de jogadores para outros clubes. Dentre eles, podemos citar os jogadores Manor Solomon, que deverá seguir para o Fulham, da Inglaterra, e do brasileiro Tetê, que acabou renovando seu empréstimo com o Lyon, da França, por mais um ano.

Evidentemente, em termos financeiros, se um clube pode esperar o prazo para poder registrar o jogador que optar pela suspensão unilateral (1º de agosto), seja em virtude da disponibilidade na data do fechamento da janela, como ocorre com o mercado europeu, ou a desnecessidade técnica de contar com o atleta imediatamente, será a decisão mais adequada, posto que não haverá taxa de transferência, reduzindo o custo e adiando um investimento.

Ao meu ver, esse estímulo ao mútuo acordo se torna inoperante quando não há necessidade de se registrar um jogador antes do dia 1º de agosto, a equipe posterior pode simplesmente esperar a data e não pagar nada pelo atleta, salvo os casos de bônus por assinatura e comissões aos agentes, por exemplo.

Aos que precisam registrar os jogadores imediatamente, é fundamental que haja o mútuo acordo entre as três partes, como ocorreu no caso do Pedrinho, do Atlético Mineiro, que foi anunciado antes da publicação da Circular 1804 e tinha suspendido o contrato de maneira unilateral. Além disso, a janela de transferências aqui no Brasil ainda não estava aberta quando da assinatura do contrato, logo passou-se a ter que negociar com o clube ucraniano para poder contar com o jogador antes de 1º de agosto.

Igualmente, essa garantia de suspensão unilateral ao jogador pode forçar os clubes ucranianos a negociarem os futebolistas por um preço abaixo do mercado ou abaixo da cláusula rescisória, colocando-os em uma posição extremamente vulnerável, tendo em vista a crise econômica gerada pela interrupção das suas atividades e, consequentemente, das receitas, enquanto as dívidas e obrigações, pelo menos em parte, seguem crescendo. Do mesmo modo, poderia ter sido dado mais tempo para a adequação ou para acordos entre atletas e clubes, o que permitiria a obtenção de situações menos danosas às entidades de desporto.

Ocorre que, entretanto, o caminho para a reversão da medida adota pela FIFA e a pleiteada indenização ao clube ucraniano, que detém bons argumentos, parece ser pouco provável. Tudo isso, em razão do direito ao trabalho ser tratado como objetivo essencial para a dignidade humana e para a melhoria na condição de vida da população e, juntamente com a livre circulação de trabalhadores, são imprescindíveis e estão inseridos dentro de um contexto internacional, tanto em termos do Tratado de Funcionamento da União Europeia como na Carta das Nações Unidas.

Sendo assim, qualquer tipo de empecilho criado para que o jogador, que já está naturalmente impedido de exercer sua profissão devido a guerra e a inatividade do esporte, possa trabalhar em outro país ou até se ausentar de um local onde ocorra conflitos armados e exponha sua vida em perigo, seria violar todo esse disposto.

Conforme o exposto, a questão suscitada pelo Shaktar não é, de nenhuma forma, desprovida de razão, pois o anexo da FIFA realmente gerou dificuldades financeiras e até prejuízo ao clube ucraniano. Sem embargo, o peso dos direitos que se intentava tutelar do outro lado é muito mais robusto do que o dos clubes ucranianos. Há de se esperar o laudo do Tribunal Arbitral do Esporte quanto ao tema, que promete ser bem didático.

Não podemos, no entanto, descartar outros meios alternativos de resolução desse impasse, como, por exemplo, a criação de um fundo de solidariedade ao esporte, à Federação e aos clubes ucranianos pela FIFA, destinado a sustentar e ajudar a modalidade, tão combalida nesses tempos de guerra.

Crédito imagem: Getty Images

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[1] CAS Media Release (tas-cas.org) – última consulta: 20.07.2022

[2] RSTJ – Reglamento-sobre-el-Estatuto-y-la-Transferencia-de-Jugadores-Edicion-de-julio-de-2022.pdf (fifa.com) – última consulta: 20.07.2022

[3] Comentários ao anexo 7 do RSTJ, a reação imediata ao conflito na Ucrânia – Lei em Campo – última consulta: 20.07.2022

[4] Circular 1800 da FIFA –  -1800-Ampliacion-de-las-enmiendas-transitorias_ES.pdf (fifa.com) – última consulta: 20.07.2022

[5] Calendário com as datas das janelas de transferência –  Portrait Master Template (fifa.com) – última consulta: 20.07.2022

[6] TMS – uma plataforma criada pela FIFA para o armazenamento de dados das transferências internacionais de jogadores de futebol – última consulta: 20.07.2022

[7] Estatuto da FIFA – FIFA_Statutes_2022-ES.pdf – última consulta: 20.07.2022

[8] Shakhtar Donetsk cobra 50 milhões de euros da FIFA no CAS por regra que suspende contratos de jogadores estrangeiros. Tribunal terá difícil missão de encontrar equilíbrio – Lei em Campo – última consulta: 20.07.2022

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