Por Tom Assmar
Que momento mágico vive o nosso futebol dentro e fora de campo. Estádios lotados, lindas festas das torcidas e times com bons jogadores tem proporcionado partidas emocionantes e maior interesse e audiência nesses eventos esportivos. O ambiente positivo criado pela nova regulação da SAF trouxe a todos os clubes a chance de encontrarem novos caminhos para solucionarem seus graves e históricos problemas financeiros e de gestão. Os movimentos em torno da formação de uma liga nacional de clubes parecem se consolidar, e novos ventos nos trarão a possibilidade de navegar novamente em águas internacionais. Podemos realmente estar no início de um inédito ciclo de profundas transformações positivas.
Esse cenário é completamente incompatível com a baixa qualidade da nossa arbitragem. Uma indústria que movimenta tantos recursos e interesses não pode tratar de forma amadora e displicente um assunto de tamanha importância. Aqui e em outros países, há no passado recente provas robustas sobre esquemas de corrupção que beneficiaram e prejudicaram diversas equipes. Mas hoje não parece ser o caso. Não há como apontar explicitamente que haja favorecidos. Escolha qualquer um e veja como ele foi prejudicado por alguma decisão absurda em um jogo recente. Os erros são muitos, alguns grosseiros, e seu conjunto prejudica a qualidade do espetáculo, a confiabilidade do produto e a sustentabilidade do negócio. Como clubes ainda aceitam conviver com isso ?
Vamos ser justos: futebol é um jogo extremamente difícil de apitar. Tudo joga contra: o campo é grande para um único juiz acompanhar tão de perto jogadas cada vez mais rápidas, a hostilidade e a violência das torcidas influenciam no seu estado psicológico e consequentemente nas suas decisões, e para piorar jogadores e técnicos criam e estimulam um ambiente de simulações que torna tudo ainda mais complexo. Por ser um jogo intenso e de frequente contato físico entre os jogadores, é imensa a quantidade de situações que pedem um olhar interpretativo sobre a regra. Há faltas e faltas, das mais óbvias e explícitas àquelas que dividem opiniões mesmo após repetidos replays. No futebol sempre haverá espaço para zonas cinzentas, que dependerão da capacidade individual e coletiva da arbitragem de tomar as melhores decisões. E por isso é imperativo investir no uso intensivo de tecnologia, padronização de procedimentos e qualificação de equipes. Tudo o que não temos feito.
Foi esse o caminho seguido pelo mundo da aviação. Mesmo sendo uma das indústrias que mais investem em ciência e tecnologia, a qualificação dos pilotos e equipes de bordo ocupa um lugar fundamental nos protocolos de segurança e eficiência operacional. Há horas de voo mínimas para cada modelo de aeronave, com certificações e procedimentos que seguem modelos e padrões internacionais. E por mais que a tecnologia avance de forma exponencial, não se entrega um equipamento que vale US$ 200 milhões e transporta 200 vidas nas mãos de pilotos desqualificados. Essas máquinas maravilhosas e fantásticas não voam sozinhas. O início, o fim e o meio são sempre as pessoas.
O cérebro eletrônico faz tudo, faz quase tudo, faz quase tudo, mas ele é mudo
O cérebro eletrônico comanda, manda e desmanda, ele é quem manda, mas ele não anda
Cérebro Eletrônico – Gilberto Gil
Sem qualquer surpresa, a quantidade de erros cometidos pela nossa arbitragem após a implantação do VAR é absurda e inaceitável. Não fomos sequer capazes de fazer coisas básicas como definir critérios claros para a interpretação das regras, cumprir seus protocolos de aplicação durante os jogos e qualificar as equipes de forma contínua. Nossos jogos hoje têm mais tecnologia e imagens disponíveis, e ainda assim erramos demais. É muita informação e pouco conhecimento. Times que valem mais que aviões entram em campo para disputarem partidas mediadas por árbitros semiprofissionais, despreparados e inseguros. Depois da onda recente dos técnicos, já há um movimento para trazer juízes estrangeiros para apitar nossos jogos. Devemos estar fazendo algo muito errado, não ?
Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial
Fora da Ordem – Caetano Veloso
A tecnologia é um meio, uma mera ferramenta a serviço das habilidades e conhecimentos humanos. Ela existe para ampliar nossos olhares e capacidades, não para substitui-los. Mal preparada, mal remunerada, mal assessorada e mal liderada, a arbitragem brasileira já entra em campo derrotada. É fácil colocar a conta dos erros apenas nos árbitros, punindo-os individualmente. Mas como em toda resposta simples a problemas complexos, essa também é uma solução errada. E os clubes – os grandes protagonistas desse maravilhoso espetáculo – permanecem assistindo seus projetos e investimentos serem continuamente prejudicados como se esse problema não fosse seu.
Aos 6 anos de idade, meu amado filho João Vitor chegou um dia da escola e foi logo me fazendo uma daquelas perguntas que aterrorizam qualquer pai: “quais são as coisas fundamentais na vida sem as quais não podemos viver” ? Que pânico … quem já passou por essa experiência sabe que é impossível acertar. E então ele disse: “ar, água, alimento e regras de convivência”. Uma resposta magnífica para me deixar sem palavras, com o bônus de ser acompanhada por um sorriso, um abraço e um beijo que só os filhos sabem dar. É verdade, não há ação coletiva que se sustente sem o respeito às regras de convivência, e dentro de campo cabe aos árbitros o papel de garantir que elas sejam aplicadas, criando um ambiente seguro para que os resultados das partidas sejam predominantemente justos. De todas as ações que possam transformar e evoluir o futebol brasileiro, qualificar a arbitragem é sem dúvida uma das mais importantes, além de ser aquela que trará os resultados mais rapidamente. Esse papel cabe aos clubes e a todos os profissionais do esporte, mas especialmente à CBF, que encerrou o ano fiscal de 2021 com R$ 720 milhões disponíveis em caixa e tem a obrigação de liderar esse processo. É difícil, mas não é impossível. Vários esportes já se beneficiam do uso correto da tecnologia, e mesmo no universo do futebol outros países já estão muito mais avançados. De qualquer forma, peço que me avisem caso tenham alguma dificuldade, pois terei imenso prazer em passar o contato da escola onde meu filho estudou. Se esses professores maravilhosos conseguiram ensinar regras de convivência muito mais complexas a crianças de 6 anos, com pequenas adaptações eles podem ajudar a formar melhores árbitros para o nosso futebol. Fica a dica …
Crédito imagem: CBF
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Tom Assmar tem graduação e mestrado em Administração, e atua há mais de 25 anos com gestão, planejamento e finanças. Acredita que o futuro do nosso futebol passa necessariamente pela formatação de um produto que atenda aos interesses coletivos e pela qualificação da gestão dos clubes. É sócio do Futebol S/A.