Por Fernanda Soares
A terrível tragédia ocorrida no CT do Flamengo lançou um holofote sobre as categorias de base dos grandes clubes brasileiros, especialmente sobre as condições nas quais os jovens treinam, se alimentam e dormem. As circunstâncias do ocorrido ainda precisam ser apuradas para que os responsáveis sejam devidamente punidos.
Em entrevista coletiva realizada no dia 9 de fevereiro, um detalhe na fala do CEO do Flamengo, Reinaldo Belotti, me chamou atenção. Belotti listou três instituições que “fiscalizaram e aprovaram” os alojamentos da categoria de base do clube: o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, a Federação de Futebol do Rio (Ferj) e a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Desconheço os termos e condições do certificado emitido pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, mas o Certificado de Clube Formador (CCF), emitido pela CBF e com prévio parecer da Ferj, não exige a apresentação de licenças concedidas pelo poder público para o funcionamento dos alojamentos. Usar, portanto, o CCF para comprovar a segurança dos alojamentos dos garotos da base do Flamengo não está correto.
O Certificado de Clube Formador é um documento extremamente importante e de difícil obtenção; dos mais de 800 clubes profissionais no Brasil, apenas 42 contam com ele. Os clubes que têm o CCF fazem um investimento financeiro importante nas suas categorias de base para garantir a boa formação dos atletas e têm certos direitos a eles garantidos que não são usufruídos pelos clubes que não dispõem do CCF. Destaco, dentre tais direitos, o de celebrar o primeiro Contrato Especial de Trabalho Desportivo com o atleta da base, com duração de 3 meses a 5 anos, e a preferência na hora de renovar esse contrato. Além disso, caso o atleta não deseje permanecer no clube, este terá o direito de receber indenização correspondente a 200 vezes os gastos feitos na formação do atleta, desde que devidamente comprovados.
O Certificado de Clube Formador é concedido ao clube que preenche os requisitos estabelecidos no artigo 29, § 2º, I e II, da Lei Pelé, que institui normas gerais sobre desporto nacional. Em linhas gerais, são requisitos que exigem o mínimo de qualidade para que o clube consiga formar bons atletas, levando em conta não apenas o aspecto desportivo, mas também a saúde física e mental dos jovens, bem como sua formação pessoal.
Mas no que tange, especificamente, a condições físicas dos centros de formação da base, a lei limita-se a exigir do clube “manter alojamento e instalações desportivas adequados, sobretudo em matéria de alimentação, higiene, segurança e salubridade”. O legislador não mencionou a necessidade de comprovação de tal exigência por meio da obtenção de licenças concedidas pela Prefeitura, pelo Corpo de Bombeiros ou por qualquer outro órgão do poder público.
Na mesma esteira, temos o Decreto nº 7.984/13, que regulamenta a Lei Pelé. Esse dispositivo legal enumera, no artigo 49, como características do clube detentor do CCF aquele que “assegure gratuitamente ao atleta em formação, sem prejuízo das demais exigências dispostas na Lei nº 9.615, de 1998, o direito a: […] II – alojamento em instalações desportivas apropriadas à sua capacitação técnica na modalidade, quanto a alimentação, higiene, segurança e saúde”. Novamente, não há exigência da comprovação das condições das instalações por meio de licenças concedidas pelo poder público.
Voltando nossas atenções à Lei Pelé, vemos que o § 3º do artigo 29 estabelece que “a entidade nacional de administração do desporto certificará como entidade de prática desportiva formadora aquela que comprovadamente preencha os requisitos estabelecidos nesta Lei”. No caso do futebol, a CBF é a entidade responsável por atestar que um clube está apto a receber o Certificado de Clube Formador. Embora a previsão legal date de 1998, ano de publicação da Lei Pelé, o CCF só foi regulamentado em 2012, ano em que a CBF, por meio da Resolução da Presidência (RDP) nº 01/2012, estabeleceu normas, procedimentos, critérios e diretrizes para CCF.
Esse documento que possibilitou a operacionalização do CCF a partir de 2012 delega às federações estaduais poderes para emitir prévio parecer conclusivo quanto ao preenchimento dos requisitos legais pelos clubes interessados. É por isso que Belotti menciona que a Ferj é uma das três entidades que “fiscalizaram e aprovaram” os alojamentos da categoria de base do clube: de acordo com o artigo 3º do RDP 01/2012, a obtenção do CCF está condicionada à prévia manifestação favorável, em parecer conclusivo, da federação a que estiver filiado o clube formador. Portanto, há, de fato, a chancela da Ferj quanto às condições dos alojamentos dos atletas da base, mas, novamente, ressalto, sem qualquer necessidade de apresentação das licenças oficiais.
O RDP 01/2012 também estabelece uma série de critérios para a obtenção do CCF, que vão ao encontro do já estabelecido nos dispositivos legais que vimos anteriormente, mas que especificam tais requisitos e os regulamentam de forma um pouco mais objetiva. Novamente nos debruçando sobre a questão dos espaços físicos utilizados pelos atletas, o documento estabelece como requisito o seguinte: “garantir aos atletas em formação e que sejam residentes no clube o mínimo de três refeições diárias (desjejum, almoço, jantar), planejadas por nutricionista e servidas no clube ou fora dele, sendo exigível local adequado e em boas condições de higiene e salubridade. Aos atletas em formação não residentes no clube será assegurado lanche e cada período de treinamento de que participar. (ANEXO II, V, “k”)”.
Salta aos olhos o fato de que o documento nem ao menos dedica uma cláusula inteira à exigência de comprovação de padrões mínimos de segurança nas instalações do centro de treinamento, a despeito de tratar-se de norma reguladora de dispositivo legal que deveria, em teoria, detalhar as condições estabelecidas em lei. O documento não passa nem perto de exigir qualquer tipo de licença concedida por autoridade pública que ateste a segurança das instalações.
Ora, se houvesse a preocupação em exigir tais licenças, o órgão regulamentador faria questão de citá-las. Assim como fez questão de listar a exigência de um “centro de reabilitação, próprio ou conveniado, sob a responsabilidade de profissional habilitado e inscrito no Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (CREFITO) […]”. Também quando exigiu “comprovar que propicia assistência psicológica, por profissional habilitado e inscrito no Conselho Regional de Psicologia (CRP) […]”. Não foi dedicado esse mesmo nível de especificação em relação às exigências de comprovação de segurança das instalações. Ademais, não parece razoável esperar que a CBF tenha capacidade técnica para, ela mesma, atestar tais condições de segurança, dispensando o aval do poder público.
Fica clara a necessidade de refletir sobre o quanto o CCF, efetivamente, atesta as condições do clube formador, principalmente à luz do trágico ocorrido no CT do Flamengo. O fato é que, não havendo a exigência de meios específicos de comprovação dos requisitos de segurança, emitidos por autoridade competente, o CCF não deve ser mencionado como comprovante de fiscalização devidamente efetuada.
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Fernanda Soares é formada em Relações Internacionais pela PUC Minas, pós-graduada em Direito, Logística e Negócios Internacionais pela PUC PR. Graduanda em Direito pela PUC Minas e pós-graduanda em Negócios no Esporte e Direito Desportivo pelo CEDIN.