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O clube-empresa

Por Bernardo Accioly, Bernardo Coelho da Rocha e Alexandre Eskenazi Pernidji

Nada tem animado mais o mundo do futebol nos últimos tempos do que os debates sobre a criação do assim chamado “clube-empresa”. Como não existem disposições na legislação brasileira que vedem a criação do “clube-empresa”, as discussões gravitam, na verdade, em torno da identificação dos benefícios que poderiam ser concedidos na esteira da cessão da prática do futebol profissional pelas associações sem fins lucrativos, para sociedades empresariais. A penúria que assola a maior parte dos clubes de futebol no Brasil, inclusive clubes tradicionais das Séries A e B, com raras exceções, alcança, em alguns casos, níveis alarmantes, e são percebidos sinais de perigo muito acentuados sobre a capacidade de sobrevivência desses clubes. Administrações desastrosas, irresponsabilidade dos dirigentes quanto às dívidas assumidas, mau uso dos recursos financeiros disponíveis, necessidade de alcançar resultados a curto prazo, e muitos outros, são alguns dos fatores, ou razões determinantes para a alarmante situação financeira em que se encontram alguns dos principais clubes brasileiros de futebol.

Por óbvio, a simples transformação do clube em empresa não será capaz de resolver os problemas financeiros dos clubes. Assim como a personagem Cinderela, do conhecido conto de fadas, a transformação do clube poderá, em um primeiro momento, equiparar-se à transformação da pobre menina em uma bela moça, elegantemente vestida, transportada por uma carruagem puxada por cavalos brancos, mas que encontra o badalo do relógio à meia noite. E não haverá sapatinho de cristal que revele a princesa ao príncipe depois que a carruagem voltar a ser abóbora.

Há exemplos recentes de clubes que mantiveram sua natureza jurídica de associações sem fins lucrativos, e vêm colhendo os frutos de administrações responsáveis e profissionais, como é o caso do Flamengo, do Grêmio e do Bahia, e no outro lado do espectro, infelizmente, há o caso do Figueirense, que muito embora tenha cedido a gestão do clube de futebol a uma empresa no ano de 2017, vem colhendo experiências e resultados financeiros desastrosos, que culminaram no recente desfazimento da parceria comercial entre o clube e a referida empresa.

O que se denota a partir das discussões e opiniões sobre o tema é a falta de percepção geral acerca dos muitos desafios e consequências que envolvem a simples escolha de um clube em adotar o formato de clube-empresa. O clube-empresa nada mais é do que uma sociedade empresária como qualquer outra e, como tal, passará a ter sócios investidores que visam o lucro, e para a qual a associação cederá, de forma temporária ou permanente, os direitos desportivos de participar em campeonatos, símbolos, ativos (contratos de jogadores), centros de treinamento, equipamentos, etc., e tudo o mais que seja necessário para a continuidade da prática desportiva.

A associação cedente poderá, ou não, possuir uma participação no clube-empresa, dependendo dos ajustes que serão feitos, caso a caso, e da situação de negociação de seus passivos que serão assumidos pelo clube-empresa. Em qualquer hipótese, não fará nenhum sentido que a associação mantenha o controle do clube-empresa, pois uma das questões fundamentais do conceito clube-empresa é justamente a de desvincular e substituir o antigo “poder de controle” de associados e conselheiros, sujeito a influências políticas não necessariamente vinculadas às melhores práticas empresariais, por uma administração moderna, profissional e comprometida com o resultado econômico. Os sócios que exercerão o controle do clube-empresa deverão ser aqueles que irão aportar capital para o desenvolvimento do negócio e poderão assumir, também, a posição de credores do próprio clube-empresa, elegendo a forma que melhor lhes aprouver para financiar a operação, seja através de capital de risco, com a aquisição de participações societárias, seja através de empréstimos, por meio de debêntures, ou outros instrumentos de créditos típicos do mercado de capitais.

Não se pode esquecer que as sociedades comerciais estão sujeitas às vicissitudes do mundo empresarial. Sua atividade pode, como qualquer outro empreendimento ou negócio, desenvolver-se bem, ou mal. Como é sabido, as receitas dos clubes têm como fontes principais a cessão de direitos de transmissão de jogos para a TV, venda de jogadores, patrocínios, bilheteria e contribuições de programas de sócio torcedor. A cessão dos direitos de transmissão é a receita que representa, em média, cerca de 60% a 70% do faturamento da grande maioria dos clubes. A venda dos jogadores e os patrocínios podem se alternar como segunda fonte de receita, seguidos pela bilheteria e, por último, as contribuições dos sócios torcedores. Exceção a essa regra, é o programa de sócio torcedor do Flamengo, que recentemente ultrapassou o marco histórico de 150.000 sócios torcedores adimplentes, fruto do excelente momento que vive a equipe de futebol profissional, e que hoje representa importante fonte de recursos do clube.

Seja como for, as receitas da TV variam ao longo do tempo, dependendo da performance do time, do número de torcedores, assim como também variam as receitas de patrocínio e de bilheteria. A receita da venda de jogadores, por sua vez, não é recorrente, existindo clubes melhores aparelhados para capturar essas receitas, por conta de maiores investimentos em centros de treinamento, ou seja, na própria estrutura, e na formação dos atletas das categorias de base. É claro, portanto, que as receitas da empresa que administra um time de futebol serão maiores ou menores em função da performance desportiva do time, lembrando que existem atualmente 3 principais campeonatos que podem ser disputados no Brasil: o regional, a Copa do Brasil e o Brasileirão, além da Copa do Nordeste e dos campeonatos regionais e nacionais das categorias de base, importantes para revelar e destacar novos talentos. Em nível internacional, podem ser disputadas as copas Sul Americana, Recopa e a Libertadores da América, além da Copa do Mundo de Clubes da FIFA, em que participa, pela CONMEBOL, o campeão da copa Libertadores. Essas são as grandes vitrines nas quais as empresas poderão exibir seus times para angariar receitas de exibição, patrocínio, venda de jogadores e contribuições de sócios torcedores. Eventuais insucessos nessas competições reduzirão drasticamente as receitas da empresa, o que poderá exigir volume de capital de giro para fazer frente às despesas necessárias à manutenção de sua atividade fim (tais como aluguel de estádios, folha salarial dos jogadores, etc.), em montante totalmente desproporcional à capacidade de remuneração do investimento realizado a taxas atrativas, considerado o risco envolvido. O sucesso da empresa dependerá, essencialmente, da conquista dos títulos dos campeonatos, pela participação em finais, ou ainda por um desempenho satisfatório no campeonato. Usando como medida o Campeonato Brasileiro, não seria exagero afirmar que, dentre os 20 times que atualmente disputam a Série A, somente aqueles que alcançassem colocação do 10º ao 1º lugar poderiam, de fato, sustentar perante seus acionistas que o desempenho da empresa naquele ano foi satisfatório. Uma queda para a Série B do Brasileirão, por exemplo, pode ser catastrófica, diante do enorme impacto financeiro negativo em praticamente todas as receitas, especialmente aquelas oriundas da cessão de direitos de transmissão de jogos para a TV e de patrocinadores.

Os esforços para salvar os clubes brasileiros, embora meritórios, deixam de lado a forma de extrair, de forma verdadeiramente eficiente, valor do que é, sem sombra de dúvida, o maior ativo de um clube: a sua torcida. E quando isso for encarado no Brasil de forma empresarial séria, a equação para a solução da penúria dos clubes poderá estar próxima de estar resolvida, independentemente da discussão em torno da mudança de sua natureza jurídica do clube. É fato que a maioria esmagadora dos programas de sócios torcedores, e mais todos aqueles que foram desenvolvidos ao longo do tempo, mostraram-se até hoje falhos e incapazes de, por si só, garantir que os torcedores contribuíssem de forma eficiente e recorrente para ajudar o clube a manter um time de futebol competitivo. Mas, certamente, há de ser possível capturar a atenção dos milhões de torcedores de um time de futebol para permitir que estes transfiram recursos para o clube, de modo a permitir sua perenidade. A tecnologia está revolucionando o mundo dos negócios e o segmento do futebol profissional, como grande negócio que é, também pode e deve se reinventar. Conceitos empresariais que sustentaram empresas por décadas desaparecem por completo e são substituídos por outras soluções que utilizam a tecnologia e a capacidade de conexão. Os custos envolvidos na formulação e transferência de recursos são, hoje, muito inferiores aos que foram considerados no passado. Em tempos de criptomoedas como o Bitcoin, a tecnologia blockchain, ICO’s (Initial Coin Offering), aplicativos como Uber, Facebook, Instagram e Twitter, em que pessoas conseguem congregar dezenas de milhões de seguidores pelo simples aperto de um botão (o jogador Neymar possui 126 milhões de seguidores e o “Youtuber” Whinderson possui 35 milhões no Instagram), parece pouco razoável imaginar que torcedores de um clube não possam estar, de forma coordenada, vinculados ao clube de sua escolha através de aplicativos instalados em seus celulares. Apostas, prognósticos, créditos de navegação, sorteios, enfim, existe um mundo de aplicações que poderiam usar a identidade comum dos usuários, que é a de torcer apaixonadamente por um time de futebol, e gerar considerável renda para o clube. Dirão alguns que isso já foi tentado, e que ainda vem sendo desenvolvido, sem resultados significativos. É verdade. Mas é fato também que atualmente – diferentemente do que aconteceu em experiências passadas – estão disponíveis tecnologias inovadoras que poderão se mostrar extremamente úteis na formatação de modelos inéditos para capturar o torcedor como contribuinte ativo de receitas para os clubes.

Parece haver uma luz no fim do túnel. Aos poucos, velhas práticas e paradigmas estão sendo quebrados e novos projetos e iniciativas têm surgido na direção correta. Um bom exemplo disso é a recente criação da Arena Hub, em São Paulo, que tem como objetivo unir empresas, startups e projetos com foco na transformação social por meio do esporte. Trata-se do maior centro de inovações voltado para o esporte da América Latina, criado pelo Governo do Estado de São Paulo em parceria com a FPF – Federação Paulista de Futebol, e que será mantido por patrocinadores da iniciativa privada. A Arena Hub poderá receber até mil startups do segmento do esporte, voltadas para temas como engajamento dos fãs, performance humana, inteligência de negócios, e-sports etc.

A febre dos e-sports, que consegue angariar a atenção de milhões de jovens e cujos campeonatos têm, além da audiência estratosférica nas redes sociais e na Internet, premiações cada vez maiores, já chegou também aos clubes de futebol tradicionais (a equipe do Flamengo foi recentemente campeã do CBLOL – Campeonato Brasileiro de League of Legends).

Se os clubes brasileiros tiverem a coragem e ousadia de deixar a zona de conforto e pensarem “fora da caixa”, verão que a solução para muitos dos problemas por eles enfrentados dependem muito menos do tipo jurídico adotado, e muito mais da utilização da tecnologia e da inteligência para a exploração de seu maior e mais valioso ativo, que é a torcida.

Bernardo Accioly é sócio de Accioly, Mendonça e Camargos Advogados e ex-diretor jurídico do Clube de Regatas do Flamengo

Bernardo Coelho da Rocha e Alexandre Eskenazi Pernidji são sócios de Eskenazi Pernidji Advogados.

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