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O clube sucessor, as dívidas na FIFA no contexto da SAF e suas consequências

Nos últimos anos, a dívida dos clubes brasileiros vem sendo uma grande bola de neve. Cada clube com a sua particularidade e sua natureza de passivo. A Lei das Sociedades Anônimas do Futebol (SAF), 14.193/2021[1], embora não seja tão benéfica para quem espera receber o crédito, veio justamente para conceder uma alternativa para as entidades de desporto, apresentando um caminho viável para o adimplemento dessa extensa lista de credores. Contudo, um dos grandes problemas, assim como uma das grandes dúvidas, tem sido a questão das dívidas oriundas dos litígios na FIFA e as sanções desportivas que elas implicam.

Nesse sentido, esses débitos geralmente são de natureza trabalhista a um atleta estrangeiro ou relativos a um contrato de transferência com uma equipe estrangeira, que não teve sua quantia abonada pelo devedor. Uma vez inadimplidos e tão somente após uma decisão definitiva descumprida, que ordena o pagamento, eles são capazes de gerar sanções desportivas aos clubes e também aos jogadores devedores em certos casos. São previstas pelo artigo 15 do Código Disciplinar da entidade máxima do futebol[2].

Entre elas, constam a proibição de registro de jogadores (transfer ban), a perda de pontos na competição nacional, o rebaixamento do clube e, por seu turno, proibição de atuação aos futebolistas devedores. O Cruzeiro foi um dos principais afetados com essas punições no passado e, após a conversão em SAF, o assunto voltou à tona, devido a algumas dívidas com clubes estrangeiros, que foram parcialmente pagas nessa semana[3].

No âmbito nacional, a Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD), exercendo a sua competência contidas nos artigos 40 e 42 do seu Regulamento[4], também já puniu alguns clubes brasileiros por descumprimento das decisões que impuseram o pagamento de valores econômicos[5].[6] No entanto, não há a possibilidade de perda de pontos ou rebaixamento no Regulamento desse órgão, diferentemente do da FIFA.

Com efeito, com a criação da SAF e a possibilidade de escolha entre o Regime Centralizado de Execuções ou da recuperação judicial/extrajudicial (mais rígida) para o pagamento das dívidas, indagou-se como seriam consideradas essas obrigações financeiras, advindas desses órgãos decisórios no seio do sistema federativo privado, diante dessa nova realidade.

O Regime Centralizado, usado de maneira desproporcional e injustificada por equipes que ainda não se transformaram em sociedade anônima, tem sido a preferência entre as entidades. Nessa estratégia, o clube se compromete a empenhar 20% das receitas e 50% dos dividendos para o pagamento das obrigações trabalhistas e cíveis, inicialmente durante os 6 primeiros anos. Nesse interregno, deve ser pago 60% do valor da dívida. Posteriormente, cumprido o objetivo exordial, pode ser prorrogado por mais 4 anos, com destinação de 15% das suas receitas mensais.

Para tanto, a entidade de desporto deverá apresentar um plano de credores, diante do Juízo Centralizador, após o deferimento pelo presidente do Tribunal de Justiça para as cíveis e pelo presidente do Tribunal Regional do Trabalho para as causas laborais, juntamente com uma série de documentos, como, por exemplo, o balanço patrimonial, o fluxo de caixa e a sua projeção de 3 anos, assim como as obrigações consolidadas em fase de execução e a estimativa das suas dívidas que ainda estão em fase de conhecimento.

Superado o prazo estabelecido para o Regime Centralizado, sejam os 6 anos iniciais ou os 10 anos totais, a Sociedade Anônima do Futebol responderá subsidiariamente pelo pagamento das obrigações civis e trabalhistas anteriores à sua constituição.

Posto isso, se parte para a explicação do conceito de clube sucessor aos olhos do Tribunal Arbitral do Esporte (TAS ou CAS), já absorvido pela FIFA em seu Regulamento. A quebra dos clubes, que atingiram um estado de insolvência irreversível, era e ainda é muito comum. As novas entidades, ocupando a lacuna deixada pela antiga equipe, tentavam se eximir das obrigações financeiras contraídas pelo falido com outros times e jogadores.

Em reação a esses acontecimentos cada vez mais frequentes, foi criado o conceito de sucessão desportiva, para identificar se um clube é considerado sucessor ou não, a depender da análise do caso concreto. Todavia, a jurisprudência massiva do CAS, o artigo 15.4 do Código Disciplinar da FIFA e 24ter do Regulamento sobre Status e Transferência de Jogadores (RSTJ)[7], apontam alguns critérios para o reconhecimento da sucessão: a sede, o nome, a forma jurídica, as cores da equipe, os jogadores, acionistas ou proprietários, a categoria competitiva, a apropriação da história e sala de troféus do antigo clube, o estádio, o público ao que o clube se direciona e até mesmo menções ao ex-clube em seu site oficial ou redes sociais já foram utilizadas.

Ressalte-se que, apesar do conceito de sucessão ter sido implementado para evitar abusos e para satisfazer os credores, as práticas fraudulentas da parte que tenta se esquivar dos pagamentos, não constituem uma condição essencial para se chegar a uma conclusão se um clube é ou não é sucessor.

Outrossim, o mesmo se aplica à inexistência de processo falimentar, ou seja, ela também pode existir na ausência de falência ou insolvência total, como ocorre no Brasil, por exemplo. Da mesma forma, a sucessão desportiva também não se limita exclusivamente a entidades que adquiram clubes por concurso público ou leilão.

Outro argumento utilizado pelos devedores e absorvido pelos órgãos decisórios é que a diligência do credor, quando não se habilita para receber o crédito ao longo do processo falimentar, é uma questão relevante na decisão de continuar, suspender ou até encerrar o procedimento disciplinar na FIFA, decorrente do incumprimento das decisões. Por isso, em tese, o clube sucessor não pode ser punido desportivamente quando o credor não tomou as medidas legais apropriadas para fazer valer o direito de receber seu crédito.

Ocorre que, entretanto, quando o assunto é falência, recuperação judicial ou concurso de credores é inevitável a colisão entre a normativa pública e a privada. Isso porque, todos os entes privados, participantes do sistema piramidal do esporte, estão sujeitos aos regulamentos e estatutos privados da modalidade. Todavia, ao mesmo tempo, estão submetidos às leis nacionais do seu país, que são as que regem esses procedimentos (falência e recuperação).

Diante disso, a FIFA reconhece a importância da normativa pública e deixa aberta, através do seu regulamento, precisamente no artigo 55 do Código Disciplinar, a possibilidade de se encerrar ou suspender o procedimento disciplinar se o devedor está em processo de insolvência ou falência, nos ditames das leis nacionais.

Sem embargo, a questão não parece ser tão simples. O clube deve demonstrar que foi impedido de efetuar o pagamento, em razão de uma decisão judicial tomada pelo juízo falimentar ou pelo administrador judicial ou pelo órgão competente. É um ônus da prova que recai em quem está alegando.

Ademais, o procedimento de recuperação judicial não é visto pelo TAS como capaz de ensejar o encerramento do procedimento disciplinar, ao contrário da falência, pois considera que a recuperação judicial é como um esquema para salvaguardar o direito dos credores, sob a supervisão do administrador judicial em consulta com um juiz. Para tanto, afirmam que não se pode suscitar que o clube recuperando está legalmente impedido de pagar os seus credores ou até de contratar, não obstante o pagamento estar aparentemente sujeito a autorização prévia.

Igualmente, as decisões do CAS caminham para fixar alguns critérios para impedir que a dívida não seja paga. Nesse sentido, umas das teses do Tribunal é que a suspensão e o encerramento do procedimento disciplinar, não podem ser intentadas se a dívida for contraída após o deferimento do pedido de falência ou recuperação judicial.

Em outras palavras, um clube não pode alegar um processo de recuperação judicial ou falência para se eximir de pagar as contratações feitas após o início desses procedimentos, pois, nesse caso, estaria caracterizada a autonomia do clube em fazer o investimento. Outrossim, se assim fosse reconhecido, consistiria em uma tentativa de se valer de um procedimento em andamento, que era conhecido por todos, para se beneficiar, o que daria azo à cada vez mais condutas de má-fé por parte dos devedores.

Do mesmo modo, um caso bastante interessante demonstra que o TAS busca prestigiar o correto adimplemento do credor[8]. Na referida decisão, o antigo clube, que estava sendo demandado na Câmara de Resolução de Disputas, se dissolveu, através de um processo de falência, e se desfiliou da entidade máxima do futebol, logo, a lide foi encerrada. Anos depois, após a filiação do considerado clube sucessor, o jogador acionou novamente os órgãos decisórios.

Uma das teses de defesa do réu, ulterior apelante, foi a prescrição. No entanto, o Tribunal rechaçou esse entendimento e considerou que o prazo prescricional para a cobrança da dívida deveria ser contado do momento da filiação do clube sucessor e não do inadimplemento do acordo com o jogador, posto que somente a partir do momento do registro do clube é que ele adquire a legitimidade passiva para figurar em um litígio na FIFA.

Por conseguinte, em conformidade com o exposto, inegavelmente que a SAF, à luz do regulamento da FIFA e da vasta jurisprudência do TAS, será considerada sucessora desportiva e os desdobramentos já estão bem claros para os leitores. Por outro lado, como ficariam as dívidas da FIFA e também as da CNRD no Regime Centralizado de Execuções?

Como ainda é muito recente, os questionamentos sobre a natureza jurídica dessa centralização ainda são muito debatidos. Uma corrente doutrinária defende que esse dispositivo deve ser interpretado juntamente com a Lei da Recuperação Judicial e Falência (11.101/05). Em outra corrente se fala que ela foi inspirada no antigo regime das concordatas. Na terceira divergência, por sua vez, aduzem que é apenas um novo nome para a Plano Especial de Pagamento Trabalhista (PEPT) e Regime Especial de Execução Forçada (REE). Contudo, o consenso geral é que o Regime Centralizado não possui as mesmas características restritivas da falência.

Sob esse viés, não podemos olvidar que 80% das receitas continuam a ser utilizadas livremente pelo administrador da SAF, de maneira discricionária. Portanto, diante de uma decisão da FIFA, que imponha uma sanção desportiva, não se pode alegar que o clube está inviabilizado de executar o pagamento e requerer que a entidade suíça suspenda ou cancele o procedimento disciplinar.

Entretanto, o cenário ainda é incerto se o inadimplemento decorre de uma decisão judicial, que será explicada em seguida. As dívidas FIFA ou da CNRD possuem natureza cível, para dívidas com clubes, e trabalhistas, com funcionários, treinadores e trabalhadores. Em tese, deveriam estar listadas no plano de credores, que deverá ser único e entregue aos Juiz Centralizador na Justiça do Trabalho e na Comum.

Da mesma forma, é conteúdo da Lei da SAF que os créditos trabalhistas terão privilégio em relação aos cíveis. Ademais, há uma lista de credores preferenciais, como, por exemplo, idosos, pessoas com doenças graves e pessoas cujos créditos salariais sejam inferiores a 60 salários mínimos. O que ocorrerá se o pagamento de um clube estrangeiro, no papel de credor, for feito fora do plano ou simplesmente ignorar a ordem e privilégios acima mencionados?

Irresignados, os credores com direito a essa preferência podem provocar o Juízo Centralizador, tendo em vista a identicidade de características das dívidas. Sendo assim, uma hipotética decisão do juízo poderia suspender, vetar o pagamento ou bloquear os valores empenhados para o adimplemento dessa dívida na FIFA. Essa decisão seria suficiente para suspender um procedimento disciplinar ou até uma sanção já aplicada, no âmbito da FIFA e da CNRD?

Frise-se, não há dúvidas sobre a permanência da obrigação pecuniária, independente do regime do clube, seja falimentar, recuperação judicial ou Regime Centralizado. O que se discute é, única e exclusivamente, a sanção desportiva e a eficácia dessa medida, já que o clube poderia estar inviabilizado de executar o pagamento pelo Poder Judiciário.

Ao meu ver, será muito difícil o convencimento dos órgãos decisórios pela suspensão mediante essa teoria, posto que, se o clube seguir minuciosamente a destinação dos 20% das receitas e o plano de credores corretamente, ainda permaneceriam 80% de tudo aquilo que arrecada para gastar livremente. Logo, possui autonomia para empenhar a quantia para o pagamento das dívidas. Tampouco, o Juízo Centralizador poderá bloquear uma importância superior aos 20% da arrecadação, pois seria totalmente desproporcional.

Conforme todo o exposto, o advento da Sociedade Anônima do Futebol ainda deve provocar diversas discussões jurídicas e muitos pontos ainda devem ser esclarecidos pelas autoridades competentes. O conceito de clube sucessor é inafastável no exemplo da SAF no Brasil e a relação/conflito entre as normativas públicas e privadas se apresenta em sua mais nova faceta.

Além disso, o aumento do poder aquisitivo dos clubes brasileiros, gerado pela injeção de capital estrangeiro, fará com que o mercado interno esteja cada vez mais aquecido, com contratações com ou de clubes estrangeiros ou de jogadores estrangeiros, o que poderá levar a um crescimento do número de demandas no órgão máximo da modalidade. A internacionalização do futebol pátrio já é uma realidade.[9]

……….

[1] Lei 14.193/2021 –  L14193 (planalto.gov.br) – última consulta: 24.01.2022

[2] Código Disciplinar FIFA –  twc8yxh6fn0kjkgxhe9e-pdf.pdf (fifa.com) – última consulta: 24.01.2022

[3] Cruzeiro: Ronaldo paga mais de R$ 22 milhões em dívidas e espera Fifa encerrar ‘transfer ban’ (espn.com.br) – última consulta: 24.01.2022

[4] Regulamento CNRD – 20200901180541_597.pdf (cbf.com.br) –  última consulta: 24.01.2022

[5]CNRD pune Sport e determina bloqueio de registros de novos atletas por dívida de R$ 1,5 milhão | sport | ge (globo.com) – última consulta: 24.01.2022

[6] Goiás é proibido de registrar novos jogadores por dívida de Michael – 20/12/2021 – UOL Esporte – última consulta: 24.01.2022

[7] RSTP – Reglamento-sobre-el-Estatuto-y-la-Transferencia-de-Jugadores-agosto-de-2021.pdf (fifa.com) – última consulta: 25.01.2022

[8] CAS 2020/A/7290 ARIS FC v. Oriol Lozano Farrán & FIFA- TAS xxx (tas-cas.org) – – última consulta: 25.01.2022

[9] Laudos consultados:

CAS 2020/A/6745 Predrag Vujovic v. Andijon Futbol Sport PFK & FIFA –  TAS xxx (tas-cas.org)  – última consulta: 25.01.2022

CAS 2020/A/7290 ARIS FC v. Oriol Lozano Farrán & FIFA- TAS xxx (tas-cas.org) – última consulta: 25.01.2022

CAS 2013/A/3380 Club Atlético Independiente v. FIFA – TAS xxx (tas-cas.org) – última consulta: 25.01.2022

CAS 2018/A/5622 Londrina Esporte Clube v. FIFA – TAS xxx (tas-cas.org) – última consulta: 25.01.2022

CAS 2013/A/3049 Club Atlético Colón v. FIFA – TAS xxx (tas-cas.org) – última consulta: 25.01.2022

CAS 2012/A/2750 Shakhtar Donetsk v. FIFA & Real Zaragoza S.A.D. – Order on request for a stay (Farrelly – FINAL) (tas-cas.org) – última consulta: 25.01.2022

CAS 2011/A/2343 CD Universidad Católica v. FIFA – TAS xxx (tas-cas.org) – última consulta: 25.01.2022

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