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O combate ao doping e a Lei Geral de Proteção de Dados

Na coluna “Sem Olé na Lei” do dia 12.08.2020[1], abordei as questões que envolvem a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e suas repercussões no contrato especial de trabalho desportivo, em especial o tratamento de dados em períodos de descanso do atleta como forma de assegurar um melhor desempenho e até mesmo prevenir lesões.

A LGPD prevê a possibilidade de tratamento de dados pessoais sensíveis sem fornecimento de consentimento do titular, nas hipóteses em que for indispensável para o exercício regular do contrato[2].

Um outro exemplo marcante de tratamento de dados pessoais relacionados ao desporto pode ser extraído da prática de compartilhamento de dados por organizações dedicadas à luta antidopagem, coordenada em nível global pela Agência Mundial Antidopagem – AMA (World Anti-Doping Agency-WADA).

O fato dos servidores da WADA estarem estabelecidos no Canadá já traz um primeiro embate, na medida em que todas as transferências de dados pessoais realizadas para países ou organizações internacionais não integradas à União Europeia deverão se submeter às restrições listadas no Capítulo 5 do Regulamento Geral de Proteção de Dados – RGPD. Também observarão essas restrições as transferências subsequentes realizadas pelo destinatário (onward transferes), mesmo que abarquem mera consulta de bases de dados situadas fora do continente europeu.

A finalidade do Capítulo 5 do RGPD é, justamente, assegurar que os parâmetros de proteção de dados pessoais vigentes no âmbito da União Europeia não sejam atenuados no caso de transferências internacionais. Em nome dessa finalidade, um dos permissivos de transferência internacional, previsto no artigo 45 (3) do RGPD, é a emissão de certificação de que o destinatário observa níveis de proteção considerados adequados, o que abrange a existência e o funcionamento contínuo de autoridades independentes de proteção de dados pessoais.

Cumpre observar que o descompasso entre a legislação brasileira antidopagem e a tutela de dados pessoais mundialmente praticada está estampado nos artigos 163 e 164 do Código Brasileiro Antidopagem – CBA, que admitem a presunção de que o titular de direitos ofertou consentimento para divulgação de seus dados pessoais.[3]

Trata-se de normas absolutamente incompatíveis até mesmo com as disposições contidas nos arts. 7º, 8º, § 4º, e 33, VIII, da LGPD, asseguradoras de que o consentimento deve ser esclarecido e referir a finalidade determinada, sendo vedadas autorizações genéricas.

Não por acaso, a Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem – ABCD recentemente abriu consulta pública com vistas à implementação de um novo diploma normativo e à sua adequação ao novo Código Mundial Antidopagem (The World Anti-Doping Code), elaborado pela AMA. (FELIZOLA : 2020)[4]

Um aspecto que se deve destacar é que a transferência de dados com propósito antidopagem encampa hipótese expressamente mencionada no Recital 112 do RGPD (UE 2016/679), espécie de chave interpretativa à leitura das normas de proteção de dados pessoais.

A referida previsão significou um grande avanço para os atores envolvidos na luta antidopagem, por erigir expressamente a eliminação do doping no desporto como razão de interesse público que legitimaria a transferência de dados pessoais. A relevância da matéria fica evidenciada pelo fato de o Recital 112 conferir idêntico tratamento ao compartilhamento de dados que visa resguardar a integridade física do titular de direitos.

Todavia, ainda que o Recital 112 do RGPD possa ser invocado por autoridades nacionais de proteção de dados como fundamento para a permissão de transferências relacionadas à luta antidopagem, por associá-las à proteção do interesse público, não há norma que garanta caráter cogente ou vinculante a esse tipo de autorização administrativa. Em outras palavras, há risco de que a transferência de dados de atletas profissionais com propósito antidopagem careça de base legal específica e, dessa forma, não seja recepcionada por autoridades nacionais de proteção de dados ou pelos ordenamentos jurídicos de cada estado nação.

Sob outra perspectiva, as regras dispostas no Código Mundial Antidopagem, embora suportadas pela maioria dos países do mundo e por importantes organizações não governamentais transnacionais, também não possuem efeitos vinculantes.

As convenções antidopagem adotadas pelo Conselho da Europa[5] e pela UNESCO,[6] com efeito, demonstram que todos os estados membros da União Europeia são comprometidos com a luta antidopagem, cujos parâmetros normativos são definidos, justamente, no Código Mundial Antidopagem. Nada obstante, nenhum desses instrumentos permite que a transferência internacional de dados realizada com propósitos antidopagem seja realizada independentemente de previsão legislativa expressa.

Esse panorama de insegurança jurídica se destaca radicalmente se sopesado o poder político das organizações que administram a prática desportiva mundialmente. A realidade no mundo desportivo, – em que transferências internacionais de dados pessoais ocorrem de forma maciça  –, aponta para uma provável e indesejável ineficácia das provisões garantidoras de direitos aos atletas profissionais titulares de dados pessoais.[7] No âmbito brasileiro, basta verificar que diversos dispositivos do CBA se referem à utilização do sistema informacional denominado ADAMS (Anti-Doping & Administration Management System), recomendado pela AMA.[8]

É oportuno destacar o teor dos arts. 162 e 163, do CBA, que tratam especificamente da transferência internacional de dados pessoais sensíveis para a AMA por meio da utilização do ADAMS:

Art. 162. A ABCD deve reportar à WADA-AMA todos os Testes Em Competição e Fora-de-Competição, utilizando o ADAMS, o mais breve possível depois da sua realização, deforma a facilitar um planejamento coordenado de distribuição de Testes e evitar duplicação desnecessária de Testes pelas Organizações Antidopagem.

Parágrafo único. As informações estarão acessíveis pelo ADAMS ao próprio Atleta, à ABCD, à respectiva Federação Internacional, à respectiva entidade nacional de administração desportiva e a quaisquer outras Organizações Antidopagem com autoridade de Teste sobre o Atleta.

Art. 163. A ABCD pode coletar, armazenar, processar ou divulgar informações pessoais relativas aos Atletas ou outras Pessoas, sob sua jurisdição, pelo ADAMS, ou outro sistema criado pela ABCD e aprovado pela WADA-AMA, quando necessário e adequado para realizar suas atividades antidopagem, nos termos deste Código e dos Padrões Internacionais da WADA-AMA, especialmente o Padrão Internacional para a Proteção da Privacidade e Informações Pessoais.

Aliadas à disposição do artigo 164 do CBA, que, conforme mencionado, admite o consentimento tácito com relação às transferências internacionais de dados pessoais, essas normas podem representar grave risco da perspectiva dos atletas profissionais titulares de direitos sobre seus dados pessoais. Nesse sentido, segundo KORNBECK (2016), o caso Maximillian Schrems vs. Data Protection Commissioner (C-362/14)[9] desponta como um importante e conhecido precedente do Tribunal de Justiça da União Europeia que auxilia organizações dedicadas à luta antidopagem a definir a base legal adequada para fundamentar transferências internacionais de dados pessoais.[10]

Referido julgado se desdobrou, de um lado, na declaração de invalidade de acordo vigorante desde 2004 que autorizava a transferência de dados de cidadãos europeus para serem processados em estabelecimentos empresariais situados em território estadunidense e, de outro, na conferência de maiores poderes fiscalizatórios às autoridades nacionais de proteção de dados pessoais.[11]

O paradigma aponta para a necessidade de que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados discipline a transferência de dados pessoais com o propósito de auxiliar a luta antidopagem e a chave interpretativa do Recital 122 do RGDP se revela como um ponto de partida pertinente.

……….

[1] Disponível em: https://leiemcampo.com.br/lgpd-e-a-monitorizacao-das-informacoes-pessoais-dos-atletas/ . Acesso realizado em 25.08.2020

[2] Art. 1, II, d da LGPD, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm#. Acesso realizado em 25.08.2020

[3] BRASIL. Código Brasileiro Antidopagem. Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem. Disponível em: https://www.gov.br/abcd/pt-br/composicao/regras-antidopagem-legislacao-1/codigos/copy_of_codigos/codigo_brasileiro_antidopagem_2018_-_art_149.pdf.

[4] Felizola, Ana Cláudia. ABCD abre para consulta pública o novo Código Brasileiro Antidopagem. Brasil, 2020. Disponível em: https://www.gov.br/abcd/pt-br/composicao/noticias/abcd-abre-para-consulta-publica-o-novo-codigo-brasileiro-antidopagem

[5] Conselho da Europa. Treaty nº 153. Anti-Doping Convention. 1989. Disponível em: https://www.coe.int/en/web/conventions/full-list/-/conventions/treaty/135.

[6] UNESCO. International Convention against Doping in Sport. 2005. Disponível em: https://en.unesco.org/themes/sport-and-anti-doping/convention.

[7] Kornbeck, Jacob. Transferring athletes’ personal data from the EU to third countries for anti-doping purposes: applying Recital 112 GDPR in the post Schrems era. International. Data Privacy Law, Volume 6, Issue 4, Oxford University Press, 2016.

[8] Ver, nesse sentido, os artigos 36, 48, § 2º, 49, II, V, 52, § 2º, 53, § 3º, 64, 70, 75, 77, 162,

[9] União Europeia. Processo C-362/14. Tribunal de Justiça da União Europeia, 2015. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:62014CJ0362&from=PT.

[10] Trata-se litígio decorrente da recusa de comissário de proteção de dados em investigar uma queixa apresentada por M. Schrems pelo fato de o Facebook transferir para os Estados Unidos dados pessoais dos seus utilizadores e os conservar em servidores situados neste país.

[11] REINALDO FILHO, Demócrito. A Decisão da Corte Europeia Que Invalidou o Acordo de Transferência de Dados Pessoais. LexMagister, 2015. Disponível em:  http://www.lex.com.br/doutrina_27076672_A_DECISAO_DA_CORTE_EUROPEIA_QUE_INVALIDOU_O_ACORDO_DE_TRANSFERENCIA_DE_DADOS_PESSOAIS.aspx.

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