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O confisco

No tempo em que a praça do bairro era uma só, o território sagrado era disputado entre aqueles que acabavam de entrar na escola e os que há muito saíram dela.

Lado a lado, a convivência entre os movimentos das peças no tabuleiro, meticulosamente calculados, e a irreverência da bola, transgressora de espaços.

Naquela tarde de domingo, a ocorrência parecia não ter salvação. Depois de um chute mal dado, a pelota ia dar direto no meio dos pinos que, não sem muita confusão, conseguiriam retornar ao lugar em que estavam antes da tragédia.

Segundos antes do estrago, quem estava no local tinha a benesse de ver a cena acontecer em câmera lenta. Foi sair do pontapé que levou, e a trajetória da bola desenhava uma parábola perfeita até o malfadado destino final. Bem no meio do tabuleiro. O que aconteceria depois eram capítulos do inevitável. Bola recolhida. Gritos ao fundo. Não! Não! Não! Para buscar a redonda de volta, só na igreja, logo à frente. Aquele grande monumento ornado ocupando o espaço nobre do perímetro.

Nesse caso, se enganava quem pensava que era só o caso de entrar e proceder ao recolhimento do item confiscado pelos mais velhos. Era preciso entrar, claro. Mas de resto, pra reaver a diversão, a penitência era longa. E os meninos já sabiam. Bola e perdão não seriam concedidos antes do sermão. Aproveitavam pra se livrar das maldições conjuradas no exato momento em que a pelota jogou tudo pelos ares. Rainha, bispo, cavalos, as peças do gamão. Tudo quanto repousava sobre as mesas de cimento numa variedade de outros jogos mais sérios disputados naquela tarde de domingo.

Felizmente, entre os times em peleia pelo espaço da praça, encontrava-se um árbitro. O padre. Parecia que usava a roupa preta de propósito. Pronto pra entrar em ação na ocorrência do lance duvidoso que colocava a posse da bola em xeque. Os meninos imploravam pela devolução. Os senhores, pela interdição sumária da diversão dos rebentos. Afinal, chegaram ali primeiro. Os senhores. Muito primeiro. Questão de décadas. Uma importunação sem cabimento, diziam. E também tinha que o futebol era um jogo que, na escala entre os jogos mais respeitados, não competia com aqueles do tabuleiro. Vinha depois. Que encontrassem seu próprio espaço. De preferência, bem longe das árvores que faziam sombra naquela quina de calçada. Ou que esperassem a hora da missa, quando estavam todos do lado de dentro da igreja.

Nessa hora, era o padre quem fazia oposição. Como se haveria de rezar a missa com o alvoroço dos miúdos do lado de fora? Que se resolvessem sem atrapalhar a cerimônia. Oras. Haveriam de negociar. Chegar à paz. Pelo menos, até o próximo domingo.

……….

Foto: @o_dibre

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