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O consumidor na arquibancada

Por João Lucas de Brito

O ano era 2007, Atlético MG e Botafogo/RJ duelavam pela vaga nas semifinais da Copa do Brasil. Era um jogo tenso, após o empate sem gols no Mineirão, o jogo de volta era no Maraca lotado. O Botafogo até meados dos 40 minutos do segundo tempo ganhava o jogo por 2×1 do galo, e o time da estrela solitária ainda estava com um jogador a menos a essa altura. Nos minutos finais o lance polêmico: o atacante Tchô, do Atlético/MG, é derrubado na área pelo zagueiro botafoguense, todos já esperavam a marcação do pênalti, mas a história é diferente. O árbitro Carlos Eugênio Símon manda o jogo seguir, os atletas do time mineiro se aglomerarem protestando pela falta não marcada e em seguida, o apito final. O time carioca fica com a vaga, e ao final da partida o árbitro teve que sair escoltado por seguranças.

Era pra ser mais um episódio de debates entre comentaristas esportivos, discussão numa rodas de amigos ou provocação por parte do time classificado no campeonato. Mas o caso tomou outro caminho e se estendeu para a justiça. E o mais inusitado, não foi provocada por nenhum dirigente, presidente, jogador do Atlético/MG, mas sim de um torcedor que estava presente nas arquibancadas.

Pra você, leitor, o que seria um torcedor de futebol? Um mero espectador de uma partida, a simples definição do dicionário: “instrumento para torcer” ou talvez o símbolo de uma paixão enraizada num povo que ama o esporte? Todas essas definições estão corretas, entretanto há uma definição que ninguém enquadra o torcedor de futebol, a de consumidor.

O consumidor (torcedor) é toda a pessoa física ou jurídica que adquire bens de consumo, sejam produtos ou serviços. Já o fornecedor (clubes e seus respectivos patrocinadores) seria toda pessoa natural ou jurídica, nacional ou estrangeira, que coloca no mercado, em caráter de habitualidade e mediante remuneração, um produto ou serviço. O enquadramento de consumidor e fornecedor está presente no Estatuto do Torcedor[1] e na Lei Pelé[2]. Por conseguinte, a incidência das normas protetivas delimitada no Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Não é corriqueiro a menção, mas sim, os frequentadores do estádios são consumidores de um serviço cuja prestação não se esgota no mero direito de assistir a uma partida de futebol, mas pelo contrário atinge toda a cadeia que envolve o dito evento, como um lugar para sentar, entradas e saídas decentes, estacionamento sem preços abusivos, alimentação de qualidade e com preço compatível com o mercado, ingressos a preço compossível com o evento, segurança, acesso a transporte de qualidade, se estendendo ao arredores dos estádios.

Porém, o direito de consumidor destinado ao torcedor não para por aí. As condições da partida são de responsabilidade do fornecedor e direito do consumidor, tais como: horário da partida, iluminação, condições do gramado, comportamento dos atletas e por incrível que pareça, até a imparcialidade do juiz. Seria algo improvável ou estranho? O direito e o futebol andam lado a lado, e o Maracanã é prova disso.

Antes de relatar sobre o caso jurídico, cabe destacar que o próprio árbitro da partida, Carlos Eugênio Simon, declarou no programa “Globo Esporte” o erro na jogada do pênalti que culminou no conflito jurídico. Este relato foi o pontapé inicial para o torcedor Custódio Pereira Neto questionar seus direitos.

O autor da ação declarou-se como consumidor, conforme enquadramento já apresentado acima, e apontou falha do serviço prestado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), destacando a entidade como gestora do futebol e “dona dos corações apaixonados por futebol”, alegando nos autos os seguintes termos: “como integrante do quadro de árbitros da FIFA e exercendo a profissão há 20 anos, com atuação nacional e internacional, em todos os continentes e em duas Copas do Mundo, JAMAIS o Sr. SIMON poderia inobservar, de forma brutal e grosseira, uma das 17 Regras do Futebol”.

Além disso o demandante continua seu argumento pautado no art. 30 da Lei n. 10.671/2003 que prevê ser direito do torcedor que a arbitragem das competições desportivas seja independente, imparcial, previamente remunerada e isenta de pressões. Ratificou, como consumidor, que tem direito à arbitragem correta e de exigir reparação por erros dela decorrentes. Reconheceu que o árbitro não é livre de falhas, “mas embora errar seja humano, acertar é ainda mais”

Como se não bastasse, a indenização requerida foi de 60 salários mínimos pelos supostos danos morais sofridos.

O ingresso da ação causou espanto, mas o entendimento dos magistrados no caso, não. Como previsto, o Juízo da 7ª Vara Cível da Barra da Tijuca julgou improcedentes os pedidos formulados. O autor então interpôs apelação para o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que negou provimento ao recurso. Não satisfeito, o caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça, mas a decisão da 4ª Turma rejeitou as justificativas.

Foi reconhecida a equiparação dos torcedores como consumidores, nos termos do Estatuto do Torcedor, porém os juízes e o ministro do STJ Luís Felipe Salomão destacaram que o caso envolveu apenas erro de arbitragem, ou seja, equívoco não intencional: “Não há legítima expectativa, amparada pelo direito, de que o espetáculo esportivo possa transcorrer sem que ocorra erro de arbitragem”. Ou seja, não ficou demonstrado ato ilícito nem nexo de causalidade entre a ação e o suposto dano moral.

Vale lembrar que a conversão do pênalti em gol era fato incerto, e a penalidade poderia não ter sido marcada mesmo se fosse outro o árbitro do jogo. Em suas conclusões finais o ministro ao negar o pedido de indenização, conclui: “A derrota de time, ainda que atribuída a erro grosseiro de arbitragem, é mero dissabor que também não tem o condão de causar mágoa duradoura, a ponto de interferir intensamente no bem-estar do torcedor, sendo recorrente em todas as modalidades de esporte que contam com equipes competitivas”.[3]

Trata-se de um caso inusitado sobre as leis que permeiam o futebol. É evidente que a “brecha” utilizada pelo torcedor Custódio Neto para adentrar nas vias judicias, pautada num erro de arbitragem, teve intuito de suprir o mero aborrecimento da desclassificação do seu time.

De fato, aborda uma situação incomum, mas não isolado. A “Máfia do Apito”, episódio da manipulação de resultados no campeonato paulista e brasileiro em 2005, com o objetivo o favorecimento de um grupo de pessoas que fazia apostas em sítios de internet, retratou bem esse cenário de que as organizadoras destes eventos, CBF e Federação Paulista de Futebol, equiparam-se a fornecedores e tiveram, portanto, também a responsabilidade consumerista. Assim, o Ministério Público requereu a condenação dos réus a indenizarem os danos materiais e morais causados aos torcedores, invocando o Estatuto do Torcedor, o qual os equipara aos consumidores.

O fato é que os torcedores não tem apenas um adjetivo que o caracterize. Mas dentre elas, a de consumidor veio nos apresentar de como devemos ser valorizados, saudados e prestigiado por ser a alma e a voz do futebol.

Ainda que torcedor atleticano não tenha obtido êxito na lide apresentada contra a CBF, o caso trouxe reflexão importante: No Brasil, a modalidade de relação consumerista não obtém o reconhecimento e respeito devidos, quer por parte do Poder Público, quer por parte das empresas privadas envolvidas na organização do evento e ainda das próprias agremiações desportivas.

A última década foi repleta de grandes eventos esportivos no país, prometendo desenvolvimento, estruturação e um novo rumo para o esporte brasileiro. Mas o que restou ao torcedor, foi apenas a elitização das arquibancadas.

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Referências

[1] Lei 10.671, de 15 de maio de 2003. Art. 3o Para todos os efeitos legais, equiparam-se a fornecedor, nos termos da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, a entidade responsável pela organização da competição, bem como a entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo.

[2] Art. 42. Pertence às entidades de prática desportiva o direito de arena, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que participem. (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011).

§ 3º O espectador pagante, por qualquer meio, de espetáculo ou evento desportivo equipara-se, para todos os efeitos legais, ao consumidor, nos termos do art. 2º da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990.

[3] https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1231457&num_registro=201102917390&data=20130701&formato=PDF

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João Lucas de Brito é estudante do curso de Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie, é coordenador e fundador do Grupo de Estudo de Direito Desportivo do Mackenzie (GeedMack) e integrante da comissão de Direito Desportivo da OAB/SP.

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