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O crime de Brumadinho e o esporte como intervenção em situações pós-desastre

Inauguro aqui a coluna intitulada “Direitos Humanos em Jogo” (DHJ), espaço que utilizarei semanalmente para discutir as múltiplas relações entre o esporte e os direitos humanos. O espaço-tempo em que vivemos tem mostrado a importância de expor o que vem acontecendo em nossa sociedade na temática dos direitos humanos, referenciados por Joaquín Herrera Flores como as práticas sociais e os processos de luta pela dignidade humana¹.

Neste espaço-tempo – Brasil, janeiro de 2019 –, não me parece ter sentido tratar de qualquer questão que não seja o gravíssimo crime ocorrido em Brumadinho e que ficará marcado na história como uma das maiores violações de direitos humanos ocorridas no país.

Para além de todas as medidas ora discutidas, como desmobilização de barragens, intensificação da fiscalização pelo poder público e revisão das regras de licenciamento, é fundamental que possamos olhar o quadro de forma mais ampla e crítica. Como já alertou o cientista social Michael Löwy, devemos trabalhar para a reorganização do conjunto do modo de produção e de consumo, levando em conta critérios exteriores ao mercado capitalista, ou seja, posicionando em primeiro plano as necessidades reais da população e a defesa do equilíbrio ecológico².

Os resultados da tragédia são devastadores. Até o momento, 30 de janeiro, 110 mortes foram confirmadas, 231 pessoas estão desaparecidas e os impactos no ecossistema do rio Paraopeba ainda são incalculáveis.

Dos destroços emergem os traumas. Após o ocorrido, ficam os traumas que alteram para sempre a vida das vítimas, mudando a forma de pensar, sentir e agir, bem como a visão que as pessoas têm de si mesmas e do mundo.

Tragédias como a de Brumadinho causam impactos ainda maiores em crianças e adolescentes, sobretudo em sua organização psicoemocional-social, que pode ter seu desenvolvimento comprometido e suas funções alteradas em decorrência dessas experiências.
A prática de esportes e de atividades físicas pode ser um importante aliado no tratamento de traumas e na melhoria do bem-estar de crianças e adolescentes. O campo do esporte para o desenvolvimento e para a paz (SDP, na sigla em inglês) tem se consolidado como estratégia de intervenção social, ao propor o uso de jogos e atividades físicas como forma de prevenção de conflitos e construção da paz.

Em 2003, o relatório da ONU “Esporte para o Desenvolvimento e a Paz: em Direção à Realização das Metas de Desenvolvimento do Milênio” destacava que o “esporte oferece um sentido de normalidade que fornece uma estrutura em ambientes desestabilizados e serve como meio de canalizar energias positivamente”³.

Ainda em 2003, o Conselho da Europa adotou uma recomendação que ficou conhecida como “Ballons Rouge”, a qual ressaltava a contribuição do esporte para aliviar as consequências de desastres humanitários⁴.

O esporte e a atividade física são capazes de ajudar a construir resiliência e de aprimorar as relações sociais de crianças e adolescentes a partir do contato com treinadores capacitados e da interação constante com outros jovens em um ambiente seguro e acolhedor.

Para isso, durante o planejamento do programa esportivo a ser implementado em momentos logo após desastres, a adequação à realidade cultural da localidade, a sustentabilidade do programa, a manutenção de canais de comunicação e escuta ativa, bem como a adoção de estratégias de avaliação, são alguns dos elementos que devem ser levados em conta⁵.

O foco aqui é o indivíduo, e não a prática competitiva em si, em consonância com o que apregoa a pedagogia do esporte⁶. Sob essa perspectiva, a prática esportiva passa a ser um meio facilitador no processo de formação integral do indivíduo. É fundamental que a criança e o adolescente possam se reconectar à sua própria corporeidade.

No dia 26 de dezembro de 2003, um terremoto devastou a histórica cidade de Bam, no Irã, deixando um rastro de aproximadamente 30 mil mortos, 75 mil pessoas desabrigadas e 6.500 crianças órfãs. Com foco neste último grupo, a Agência Suíça para o Desenvolvimento (SAD) instituiu o projeto piloto “Sport and play for traumatized children and youth”, e esportes como futebol, vôlei, ginástica, caratê, tênis de mesa e basquete foram oferecidos a 300 crianças.

Entrevistas foram realizadas em diferentes estágios do projeto com os treinadores, com as crianças e com seus pais. Ao final de um ano, os resultados apontados nos questionários já revelavam os impactos positivos nas vidas desses jovens. A partir de um ambiente acolhedor, as atividades esportivas foram conduzidas por profissionais habilitados e integrados à comunidade, criando relações de autoconfiança e laços de amizade entre as crianças. Os comportamentos agressivos foram sendo substituídos pelos esforços cooperativos e pelo espírito de equipe⁷.

Momentos prazerosos aumentam a prontidão do organismo para a cura. Estresse, raiva, aborrecimentos ou lembranças negativas enfraquecem o sistema imunológico. Por outro lado, alegrias, situações de empatia e lembranças positivas conduzem à coerência cardíaca e elevam a produção de imunoglubulina A⁸. Sentimentos positivos estimulam as forças de autocura.

A pedagogia de emergência, fundada em 2006 pelo professor Bernd Ruf e pautada em princípios da pedagogia Waldorf, incide diretamente nas primeiras semanas seguintes aos episódios de trauma, a partir da utilização de métodos que contam com atividades físicas e artísticas⁹.

Entre 2006 e 2011, foram realizadas em âmbito mundial quinze intervenções da pedagogia de emergência em situações pós-desastre (Líbano/2006, China/2008, Gaza/2009, Indonésia/2009 e Haiti/2010 foram alguns dos locais que receberam intervenções).

O principal objetivo é ativar as forças de autocura do próprio ser humano. O congelamento interior das vítimas precisa ser dissolvido para que o processo de luto necessário e até então bloqueado possa acontecer e se encaminhar para a sua conclusão¹⁰.

O esporte deve ser visto, portanto, como um componente do processo multidimensional e complexo que busca trazer algum alívio a comunidades afetadas. A adoção de programas esportivos com assistência psicossocial neste período logo após a tragédia em Brumadinho pode fazer com que centenas de crianças e adolescentes tenham acesso a melhores condições para lidar com o trauma sofrido.

Que possamos seguir juntos semanalmente aqui no DHJ discutindo as diversas possibilidades que emergem dessa estreita relação entre esporte e direitos humanos.

……….
¹ FLORES, Joaquín Herrera. La reinvención de los derechos humanos. Colección Ensayando. Andalucia: Atrapasueños, 2008.
² LÖWY, Michael. O que é o Ecossocialismo? São Paulo: Cortez Editora, 2014.
³ ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Esporte para o Desenvolvimento e a Paz: Em Direção à Realização das Metas de Desenvolvimento do Milênio. 2003.
⁴ CONSELHO DA EUROPA. Recommendation of the committee of ministers to member states on the contribution of sport to alleviating the consequences of humanitarian disasters: “Ballons rouges”. 2003.
⁵ ICSSPE. Sport and Physical Activity in Post-Disaster Intervention. Berlim, 2008.
⁶ GONZALEZ, Ricardo Hugo; MACHADO, Márcia Maria Tavares (Orgs.) Pedagogia do Esporte: novas tendências. Fortaleza, 2017.
⁷ KUNZ, Valeria. Sport as a Post-disaster Psychosocial Intervention in Bam, Iran. In. Sport in Society: Cultures, Commerce, Media, Politics. 2009
⁸ RUF, Bernd. Destroços e Traumas: embasamentos antroposóficos para intervenções com a pedagogia de emergência.
⁹ Para saber mais sobre a pedagogia de emergência: http://pedagogiadeemergencia.org/
¹⁰ RUF, Bernd. Destroços e Traumas: embasamentos antroposóficos para intervenções com a pedagogia de emergência.

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