Normalmente ouvimos que o futebol sempre está a passos largos de distância do que se passa no mundo corporativo. É comum ouvir que o futebol no Brasil está atrasado em relação ao que acontece com as empresas em outros setores da economia.
Mas há uma situação curiosa: o caso das luvas. Uma figura que se faz presente há tempos no futebol e que, acreditem se quiser, acabou servindo de inspiração para o ambiente corporativo, onde passou por um retrofit passando a ser chamada de hiring bonus ou sign on bonus.
O bônus de contratação teve origem na transferência de jogadores entre clubes de futebol profissional. Como forma de atrair os melhores atletas, os clubes passaram a oferecer valores para que eles firmassem um contrato de trabalho.
A prática acabou se disseminando entre as empresas de várias áreas, particularmente dentre aquelas que tinham necessidades de contar com profissionais com competências específicas e altamente especializados, disputados no mercado de trabalho.
Essa prática, apesar de não ser nova, tem gerado discussões recorrentes, especialmente em matéria tributária. Se por um lado é pacífica a necessidade de tributação dos valores pagos a título de luvas pelo Imposto sobre a Renda Retido na Fonte (IRRF), com posterior ajuste na declaração da pessoa física, o mesmo não ocorre quando o assunto é a cobrança das contribuições previdenciárias.
A discussão se volta a entender a figura das luvas, se seriam contraprestações de natureza salarial ou não. Em sendo salário, sobre o montante das luvas o empregador deve recolher as contribuições previdenciárias. Por outro lado, se corresponderem a simples remunerações, não haveria a cobrança desses encargos.
Como o universo corporativo é mais amplo do que o do futebol, essa discussão iniciada no âmbito esportivo se alastrou pelo mundo dos negócios. O resultado são centenas de casos sobre o tema que tomam conta dos tribunais administrativos e judiciais.
De um lado o Fisco, defendendo a natureza salarial das luvas, ou como é mais conhecido no ambiente dos negócios, do hiring bonus. Por outro lado, os contribuintes, que defendem a descaracterização da verba como sendo decorrente de uma relação laboral e, por consequência, uma menor carga tributária.
A posição adotada pela Receita Federal se ampara em manifestações doutrinárias da área trabalhista e, principalmente, em julgados dos Tribunais Regionais do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho, que endossam seu entendimento.
Sergio Pinto Martins[1], eminente professor de Direito do Trabalho, afirma que as luvas não possuem caráter indenizatório, sendo espécie de pagamento antecipado no momento da contratação do trabalhador em função do reconhecimento pelo desempenho e pelos resultados alcançados pelo profissional em sua carreira.
Na mesma linha Luciano Martinez[2] destaca que as luvas são forma de incentivo à assinatura do contrato, tendo seu valor relacionado ao prestígio ou fama que o trabalhador angariou ao longo de sua carreira, sendo um “complemento salarial próprio”.
Esse entendimento da doutrina trabalhista se reflete na Justiça. Abaixo, alguns julgados dos Tribunais Regionais do Trabalho:
HIRING BONUS OU BÔNUS DE CONTRATAÇÃO – A parcela denominada Hiring Bonus ou Bônus de Contratação, paga com o objetivo de tornar mais atrativa a contratação de bancário, por se equiparar às “luvas” ofertadas aos atletas, assume natureza salarial, ainda que efetivada de uma só vez, devendo, portanto, ser integrada à remuneração do empregado para todos os efeitos. (TRT-1 – RO: 00110872620145010028 RJ, Relator: ANA MARIA SOARES DE MORAES, Data de Julgamento: 23/05/2017, Primeira Turma, Data de Publicação: 26/05/2017)
LUVAS. NATUREZA SALARIAL. INTEGRAÇÃO À REMUNERAÇÃO. A quantia paga visando o convencimento do trabalhador para a manutenção do contrato se assemelha às luvas pagas ao atleta profissional e tem natureza salarial. (TRT-1 – RO: 00114609720145010047 RJ, Relator: MARCOS DE OLIVEIRA CAVALCANTE, Data de Julgamento: 27/02/2018, Sexta Turma, Data de Publicação: 20/04/2018)
O Tribunal Superior do Trabalho segue semelhante linha de posicionamento:
AGRAVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. ATLETA PROFISSIONAL. NATUREZA JURÍDICA DAS LUVAS. O TRT , ao consignar que a verba paga a título de “luvas” tem natureza salarial, decidiu em conformidade com a jurisprudência pacífica do TST. Incidência da Súmula 333 do TST e do artigo 896, § 7º, da CLT. Precedentes . Não merece reparos a decisão. Agravo não provido. (TST – Ag-AIRR: 117018420145010075, Relator: Maria Helena Mallmann, Data de Julgamento: 03/10/2018, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 05/10/2018)
Em vista disso, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), tribunal administrativo especializado em matéria tributária, ainda que não de forma pacífica, tem proferido diversos julgados[3] de forma a caracterizar as luvas (ou hiring bonus) como remuneração de natureza salarial e, com isso, demandando do contribuinte o pagamento das contribuições previdenciárias.
Mas cabe aqui trazer alguns pontos importantes que justificam a modificação desse posicionamento. Inicialmente trago os elementos técnicos. Primeiro, os pagamentos das luvas, em regra, são feitos em decorrência de um acordo prévio ao início da relação laboral, de forma pontual e sem recorrência. Segundo aspecto, na maior parte das vezes, a obrigação de pagar do empregador não está contraposta à obrigação de fazer do trabalhador. Um terceiro e último ponto, se inexiste relação laboral entre as partes, não se pode falar em pagamento de salário.
Ainda que superados esses argumentos – o que de fato ocorreu em muitos dos julgados da Justiça Trabalhista e no âmbito tributário – há um novo elemento a ser considerado e que não foi avaliado em grande parte das decisões existentes, sejam elas de natureza trabalhista ou tributária.
A Reforma Trabalhista, representada pelas alterações promovidas pela Lei 13.467/2017 na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), foi um ponto de inflexão quanto ao tema, na medida em que a nova redação dada ao parágrafo segundo do artigo 457 da CLT[4] deixou claro que os valores pagos a título de ajuda de custo, auxílio-alimentação, diárias para viagem, prêmios e abonos, não têm natureza salarial, bem como não constituem base de incidência de qualquer encargo trabalhista e previdenciário.
Ainda que o artigo não fale expressamente das luvas ou dos bônus, faz referência ao termo “prêmios”, que se assemelha a essas verbas. As gratificações, aquelas pagas por mera liberalidade pelo empregador não integram o salário do trabalhador.
A própria doutrina trabalhista aproxima os termos luvas, bônus e prêmios. Maurício Godinho Delgado[5], traz em suas lições que prêmios e bônus devem ser considerados como uma só verba:
De fato, em decorrência do novo texto do § 2º do art. 457 da CLT, combinado com a nova redação do § 4º do mesmo artigo (ambas mudanças inseridas pela Lei da Reforma Trabalhista), além do disposto no art. 28, § 9º, “z”, da Lei Previdenciária n. 8.212/1991 (alínea “z” também conforme redação conferida pela Lei n. 13.467/2017), os prêmios deixaram de ter natureza salarial, por expressa determinação legal. E passaram a ser tipificados da seguinte forma:
“§ 4º Consideram-se prêmios as liberalidades concedidas pelo empregador em forma de bens, serviços ou valor em dinheiro a empregado ou a grupo de empregados, em razão de desempenho superior ao ordinariamente esperado no exercício de suas atividades”.
Em que pese haver entendimentos divergentes na doutrina e jurisprudência, especialmente tributária, fato é que atualmente nos tribunais hoje prevalece o posicionamento no sentido da natureza do bônus é salarial, compondo o cálculo de contribuições previdenciárias, FGTS, 13º salário, e férias, nos meses do seu pagamento.
Porém, como apresentado, há bons fundamentos pela não caracterização dos bônus por contratação como salário; não é o fato de haver uma relação laboral, que faz com que todos os rendimentos pagos pelo empregador ao empregado sejam necessariamente salário (e.g. as indenizações); e, principalmente, em vista das alterações legais dadas pela Reforma Trabalhista na CLT, acreditamos que a tendência é a alteração do entendimento jurisprudencial, já que a doutrina tem se amoldado aos novos termos da lei.
Se o futebol foi positivo para o mundo corporativo com a criação da figura das luvas não lhe cairia nada mal um engajamento de outros setores da economia para impulsionar essa necessária mudança e adequação da jurisprudência trabalhista e tributária, para, de uma vez por todas, afastar a natureza salarial dos hiring bonus (sign on bonus). Agora é aguardar para ver como o tema avança em nossos tribunais.
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[1] MARTINS, Sergio Pinto. Direitos Trabalhistas do Atleta Profissional de Futebol. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 130.
[2] MARTINEZ, Luciano. Curso de direito do trabalho: relações individuais, sindicais e coletivas do trabalho. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 551.
[3] Acórdãos 2201-005.160 (05/06/19), 2202-005.188 (08/05/19), 2202-005.193 (08/05/19), 2202-005.054 (13/03/19), 2201-004.830 (16/01/19), 2202-004.830 (07/11/18), 2402-006.068 (03/04/18), 2402-006.049 (07/03/18), 2402-006.048 (07/03/18), 2202-003.438 (14/06/16), 2401-004.194 (08/03/16), 2401003.708 (07/10/14) e 2302-002.843 (19/11/13).
[4] § 2o As importâncias, ainda que habituais, pagas a título de ajuda de custo, auxílio-alimentação, vedado seu pagamento em dinheiro, diárias para viagem, prêmios e abonos não integram a remuneração do empregado, não se incorporam ao contrato de trabalho e não constituem base de incidência de qualquer encargo trabalhista e previdenciário.
[5] DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. – 18. ed. – São Paulo: LTr, 2019. Págs. 920 e 921.