Começo a coluna de hoje chamando a atenção para um longo trecho que transcrevo abaixo. Trata-se da explicação de um dos mais importantes e queridos autores do Direito Esportivo nacional, “discípulo” direto de João Lyra Filho e advogado da CBD/CBF até sua morte. Estou falando de Valed Perry. Nela ele comenta justamente o tema sobre o qual estou debruçado nas últimas edições do “A lei é clara[?], a outorga pelo Estado Novo do Decreto-lei n° 3.199, de 1941:
Fora de tais normas legais, o desporto regia-se pela sumária legislação das entidades dos diversos ramos desportivos, com obediência relativa aos preceitos internacionais, sem a menor interferência do Governo, em qualquer sentido, com organização precária, circunstâncias que mais põem em relevo o esforço e o sacrifício dos dirigentes da época, plantando as sementes que frutificariam na potência esportiva em que se torna, aos poucos, o nosso país.
Tal desorganização e a falta de preceitos legais estruturais do desporto ocasionaram, então, cisões que tantos malefícios causaram, sobretudo no futebol, onde se digladiaram entidades nacionais e entidades estaduais de direção, num desgaste de valores, de esforços e de trabalho, umas à margem da filiação internacional, outras desfrutando dela, mas desfalcadas pela luta.
E assim chegamos a 1941. [clara alusão ao Decreto-lei n. 3.199, de 1941, n.a.]
Não sabemos se ao legislador inspirava o amor ao desporto e quando nos referimos a legislador vemos Governo e não a figura ímpar de João Lyra Filho, que esse, autor de toda a nossa legislação básica sobre desportos, é um nome do desporto pelo amor ao desporto.
É que o mundo estava em plena convulsão com a deflagração da 2ª Grande Guerra, havia uma reformulação de ideias em contorno nitidamente totalitário, eis que, pelo menos, aparentemente, grandes potências eram as que se organizavam dentro dessa filosofia de força, e o nosso país também atravessava difícil fase de sua vida, sob um regime ditatorial. (PERRY, Valed. Comentários à legislação desportiva brasileira. [s.l, s.r.], 1965)
Antes de comentar o texto em si, uma pequena ressalva. Nem todos os queridos leitores sabem, mas tive um episódio do qual me muito orgulho na vida do Dr. Valed, como o chamávamos. Foi minha, enquanto presidente da Comissão de Estudos Jurídicos Desportivos do Conselho Nacional dos Esportes, a iniciativa de propor ao então ministro Orlando Silva que levasse ao presidente da República a indicação de Valed Perry para a mais alta comenda que se concede a um esportista em nosso país: a Medalha do Mérito Esportivo. E assim foi feito.
Feita essa explicação inicial e exposta minha admiração pessoal e profissional por ele, tenho certeza de que o Dr. Valed gostaria, como eu, que sua obra fosse não somente lida, como também criticada academicamente. Desde minha tese de doutorado na UnB e seus reflexos no meu último livro, “Constituição e Esporte no Brasil” (Ed. Kelps, 2017), comento o excerto acima de sua autoria em tom de crítica.
Então, vamos lá.
É bastante peculiar a explicação de Valed Perry sobre o ato de intervenção do Estado Novo na área esportiva, justificando-o inicialmente como uma reação à desordem que reinava no ambiente esportivo do país e, em segundo plano, deixando clara a referência autoritária do governo, que retirava das instituições esportivas sua autonomia. Porém, o autor não vincula um fato ao outro. O primeiro, uma consequência lógica para pôr fim à “anarquia”. O segundo, uma decorrência da prática política a que se filiava o Estado Novo, o totalitarismo. Isso em um cenário de 2ª Guerra Mundial (idem, ibidem, p. 16), em que os governos autoritários do Eixo eram combatidos por uma ampla coalizão internacional integrada tardiamente pelo Brasil.
Há ainda um terceiro motivo encontrado por Perry como justificante da tutela estatal: “Impedir que atividades contrárias à segurança, quer do ponto de vista interno como do externo”. O recurso à segurança nacional, tão recorrente na história do Brasil, foi um fator motivador da edição do decreto-lei esportivo (ibidem).
Ainda há duas partes problemáticas no que relatou Valed Perry. Primeiramente, um erro histórico, como o próprio João Lyra Filho narrou em seu livro “Introdução ao Direito Esportivo”: ele mesmo não participou da elaboração da minuta do Decreto-lei 3.199, de 1941. Essa tarefa foi confiada a uma comissão instituída para esse fim, como explico na coluna passada.
Segundo, porque o autor defende, na passagem transcrita, que haveria uma anarquia no movimento esportivo brasileiro e que a intervenção estatal seria uma virtude para se resolver a “Cisão Esportiva”.
Ora, sabemos que essa visão não se coaduna com a necessária autonomia do sistema esportivo, da possibilidade de que seus problemas sejam resolvidos do conflito à responsabilidade e resolução interna, sem necessidade de interferências externas, muito menos a de uma ditadura.
Esse é um problema histórico no Brasil. Sempre que o conflito se instaura no seio da área esportiva, muitos dirigentes, de forma pouco madura, buscam o Estado para intervir, como veremos mais adiante nos casos do Campeonato Brasileiro de 1987 e do recente PROFUT e seu “doping tributário”.
O resultado é que a “autonomia tutelada” vai insistindo em não deixar de ser uma tônica nas nada simples relações entre Lex Sportiva e Estado no nosso país.
Na próxima edição continuarei a analisar a primeira Lei Geral do Esporte do Brasil.