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O desafio de fazer do limão uma limonada

Por Marcelo Azevedo

A expressão popular “se a vida te der um limão, faça uma limonada”, é recheada de simbolismos, mas algo que gosto nela é que ela traz consigo uma orientação aparentemente simples, mas bastante objetiva. Se te entregarem problemas, tente descobrir como tirar deles uma solução. E é com base nisso que escrevi este texto.

Como estamos em ano de Copa do Mundo, vou me arriscar a tratar aqui do comportamento do torcedor brasileiro que foi ao estádio do Maracanã para assistir a partida entre os selecionados brasileiro e chileno na última quinta-feira, dia 24 de março de 2022. As cenas que observei e que acompanhei nos dias seguintes nas redes sociais parecem revelar um caminho que, se não for interpretado sob o prisma correto, pode ser a pá de cal para a já adoentada relação afetiva que existe (ou existia) entre a seleção brasileira e seus torcedores.

Bom, como quase tudo na vida pode (e deve) ser visto de mais de um único ângulo, que tal seguirmos o que dizia o ensaísta inglês Samuel Johnson: “o segundo casamento é o triunfo da esperança sobre a experiência”, e buscarmos entender o fenômeno, identificando formas promotoras de um novo matrimônio esportivo entre time e torcida que resgatem uma relação hoje apática e desprotegida?

Para começar, voltemos então a atmosfera da partida das eliminatórias da Copa. Estádio lotado, ambiência festiva, expectativa de grande jogo, última partida em casa antes do mundial para o qual já estamos classificados faz tempo, ou seja, um cenário perfeito para um belo reencontro da seleção com seu povo. E o que vi e ouvi neste dia? Cantos, muitos cantos vindos da torcida que fizeram o estádio ferver a ponto de fazer lembrar quando foi palco de atuações memoráveis dos maiores craques que por lá já desfilaram seus talentos. Só tinha um pequeno problema, os cantos não se dirigiam a seleção canarinho, eram para os times cariocas e os ídolos que um dia foram destes times. Confesso que aquilo me soou estranho, não era exatamente ruim, mas era esquisito. Li depois que isso vem sendo uma constante em partidas da seleção, o que reforçou algo que muitos desconfiam há algum tempo. Noves fora os dias que cercam os jogos realizados durante a Copa do Mundo, o brasileiro médio literalmente dá de ombros para a seleção, o que, vamos combinar, é uma constatação doída. E eu me sinto incluído neste sentimento de desdém.

E sabe por que considero assim? Porque ver jogar a seleção nacional sempre foi uma das coisas mais bacanas de se fazer, era como estar diante do Olimpo, sabíamos que estariam ali os melhores, os mais talentosos, sonhávamos que o jogador do nosso time fosse convocado, mas apreciávamos muito ver e torcer pelo craque do time adversário, quando nada para nos libertar da culpa de comemorar gols e feitos deles, impossíveis de acontecer a nosso favor se não fosse pela seleção. Era a época dos craques tão craques que eles estavam numa prateleira acima da rivalidade esportiva.

Sim, não fechemos os olhos à evidência de que hoje no Brasil os clubes são maiores que a seleção. Ainda assim, deveria haver um rito simbólico do que representa ver em campo a única seleção pentacampeã do planeta. Deveria. É melancólico constatar que isso parece estar dramaticamente se perdendo, ainda que seja necessário também entender que é legítimo um torcedor vibrar pelo atleta que ele viu surgir para o futebol vestindo a camisa do seu clube, normal, isso é identificação e pertencimento no seu estado mais puro.

Existem inúmeras razões para tentar explicar os motivos do rompimento afetivo entre torcedor e seleção canarinho, mas quando este estágio atinge os torcedores mais fanáticos, aqueles que acompanham o dia a dia do futebol, não resta dúvida, tem mais coisa aí.  Se um torcedor é capaz de vaiar um atleta que veste a camisa nacional simplesmente porque ele defende as cores do seu rival, e isso aconteceu também no jogo contra o Chile, então atingimos uma camada de rejeição e impopularidade rara. Tão rara como era a capacidade desta seleção de mobilizar um sentimento de identidade nacional.

E no que isso está se transformando?

Parece estar sendo substituído pelo ato quase incompreensível de secar com todas as forças o atleta do time rival. Ato contínuo, o de secar a sua própria seleção.

Voltemos ao Maracanã na noite da quinta passada. Sabemos que é uma tradição no Maracanã que as torcidas ocupem espaços em que normalmente ficam durante os clássicos locais. Isso sempre aconteceu. Como já disse antes, festejar o atleta de seu clube não é nenhuma novidade. Vaiar aquele jogador que fez o treinador abrir mão do seu ídolo muito menos é, afinal quem nunca ouviu falar da maior e mais imerecida vaia da história do futebol, aquela dada a Julinho Botelho em função da escolha de Feola, que ousou colocar Garrincha, craque local e gênio da Copa de 1958, no banco de reservas. Naquela situação, o que se tem em registro é que Julinho conseguiu reverter a vaia em aplausos calorosos, diante de uma atuação magistral. Mas será que nos tempos atuais, veríamos tal comportamento do torcedor?

Como deve se sentir um jogador, no primeiro momento ovacionado pelo lado do estádio em que a torcida do seu time é maioria, mas que presencia um colega de seleção ser vaiado pela mesma massa, não por atuar mal, mas por ser visto como um rival?

Como assim rival cara pálida?

Bom, aqui chegamos ao ponto central do texto. É possível então se utilizar da força deste fenômeno para conseguir reativar a relação entre torcida e seleção brasileira? Não tenho a pretensão de ser conclusivo aqui, mas está claro que tem a CBF o insumo necessário para juntar sociólogos, historiadores, publicitários, jornalistas e quem mais precisar, num grande estudo que possa alicerçar esta reaproximação. Porque se nada for feito agora, a sensação que fiquei após ver o que vi e ouvi no Maracanã, é que o distanciamento só vai aumentar.

Antes que alguém me lembre disso, sim, eu sei que desde as manifestações de 2013 um lado da política nacional se apropriou da camisa da seleção, o que praticamente determinou que quem não está do lado desse grupo evite usar a amarelinha. Mas isso, na minha opinião, não é a razão primordial para o que vivemos hoje, como torcedor eu apontaria que o desinteresse pela seleção tenha se iniciado bem antes, talvez logo após a copa de 2006.

Sabemos ainda que a CBF teve três presidentes envolvidos em escândalos de corrupção nos últimos anos e isso também não é pouca coisa. Não bastasse, a seleção tem sido visto como o responsável por desfalcar os clubes de seus principais jogadores em momentos críticos da temporada, um absurdo que deriva de um calendário ruim e mal formulado.

Então o que busco é o caminho para uma reconciliação. No seu livro A dança dos deuses, Hilário Franco Júnior argumenta que o futebol tem em sua essência um espírito clânico, apresentando aquilo que disse o sociólogo e antropólogo francês Marcel Mauss: “Em qualquer lugar, os membros de um clã se reconhecem pelo nome, brasão e totem”. Portanto, é mesmo mais fácil adotar o nome de um clube, o seu brasão ou escudo (e suas cores) e o totem que o representa, ou seja, ele criar em torno de si uma identidade que se assemelha muito mais a um clã que uma seleção. Parece claro isso.

Mas como uma seleção de um país poderia então se aproveitar deste tipo de fenômeno para criar em torno dela este espírito clânico que uniria todo o país? Ainda há tempo e espaço para esta reconciliação? Faço estas perguntas e me vêm imediatamente à cabeça uma outra questão, talvez ainda mais filosófica, mas que se impõe nesta perspectiva de se compreender o que está ocorrendo: Será que o distanciamento do torcedor da seleção representa apenas uma distância do futebol, ou um momento de crise na relação entre o brasileiro e o seu país ? Não sei.

Mas o que já sabemos é que a seleção não pode se colocar entre o torcedor e o seu clube do coração, então cabe a CBF encontrar a maneira dela ser a  interseção entre as diversas torcidas (e clãs), estruturando uma ponte para que este espírito clânico resgate o amor do torcedor brasileiro pela sua seleção, fazendo deste limão uma bela limonada.

Deve então a CBF buscar implementar imediatamente as mais diversas iniciativas que aproximem o ídolo dos torcedores, tornando-o reconhecido por ser o guardião, o protetor de nossa seleção. São estes atletas (e ídolos) que poderão construir o caminho entre nós, humanos torcedores, com a maior representação do futebol nacional, a nossa seleção. Quem sabe assim não voltamos a constituir um clã nacional que se sinta representado pelos símbolos e cânticos que estão hoje subjugados e preteridos pelos cantos e símbolos dos clubes.

Crédito imagem: Carl de Souza/AFP via Getty Images

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Marcelo Azevedo é formado em Administração de Empresas com MBA em Gestão de Negócios. Publicitário por adoção, atua há mais de 30 anos liderando áreas de gestão e finanças. É convicto da força que o ecossistema do futebol pode produzir ao seu entorno.  Torcedor raiz, é um amante do jogo bem jogado, da boa disputa, mas gostar, gostar mesmo, ele gosta é do Botafogo, até mais do que do futebol. É sócio do Futebol S/A

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