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O desenvolvimento do futebol feminino em perspectiva

A recente conquista da medalha de prata pela seleção brasileira feminina de futebol nos Jogos Olímpicos de Paris representou um momento de intensa comemoração entre os brasileiros, mas também deve funcionar como uma oportunidade de reflexão: de onde viemos, onde estamos e para onde vamos?

Em uma sociedade eminentemente machista, o desenvolvimento do futebol feminino sofreu historicamente com uma série de obstáculos que atrasaram a profissionalização da categoria no Brasil.

O principal deles foi a edição, durante o Estado Novo, do Decreto-Lei nº 3.199/1941, que proibiu a prática de esportes “incompatíveis com a natureza feminina” (art. 54). Coube, então, ao Conselho Nacional de Desportos (CND), regulamentar quais esportes seriam “compatíveis”, ficando o futebol de fora. Tal órgão, controlado diretamente pela Presidência da República, centralizava toda a política desportiva brasileira, cujo desenvolvimento tinha de ser necessariamente estatal, o que claramente refletia o ideário político da época. A partir daquele momento, a prática do futebol, esporte mais popular do país, tornou-se proibida para mulheres. Apesar disso, diversos são os relatos de mulheres que desafiaram os regimes autoritários e praticaram o esporte pelo país afora de maneira clandestina ou disfarçada de eventos beneficentes (quem nunca ouviu falar do futebol de vedetes no final dos anos 1950?), garantindo a profusão da cultura do futebol pelo público feminino ao longo dos 40 (quarenta) anos de proibição. De qualquer sorte, é sabido que um esporte vitorioso pressupõe investimento e um amplo espaço amostral de praticantes para viabilizar a seleção de talentos. Todo o referido contexto histórico ajuda a explicar, em grande parte, o atraso no desenvolvimento do futebol feminino no Brasil.

Apenas a partir da década de 1970 é que foi possível vislumbrar maiores movimentações a nível nacional e internacional que confrontavam a realidade jurídico-esportiva brasileira. Foi a partir da chegada do movimento mundial “Esporte para Todos” em solo brasileiro e dos manifestos de organismos internacionais é que foi possível um movimento de virada. Daí que, somente em 1983, finalmente, o CND regulamentou o futebol feminino através do Decreto nº 01/83. Nesse momento, vale pontuar, o futebol masculino contava com muito investimento, já sendo tricampeão da Copa do Mundo FIFA, o que demonstra, mais uma vez, a distância de amparo e valorização entre as categorias.

De qualquer maneira, apesar de então permitida, a prática de futebol por mulheres não foi estimulada, até aquele momento, por políticas públicas, pelas entidades de administração do desporto ou mesmo pela sociedade de forma geral, o que dificultava a difusão da cultura futebolística feminina. A FIFA, por sua vez, também demorou a amparar o exercício do esporte por mulheres, com a primeira Copa do Mundo de futebol feminino sendo realizada apenas em 1991, na China.

Felizmente, algumas medidas foram tomadas a nível nacional e internacional nos últimos anos para iniciar uma mudança de cenário, especialmente após o estrondoso sucesso da Copa do Mundo de 2019, na França, que quebrou recordes históricos de audiência e superou a audiência da Copa anterior em cerca de 50%. Era o empurrão que faltava: o futebol feminino mostrou-se um “negócio” viável e atrativo.

Dentre as providências precursoras para a realidade brasileira, a CBF e a CONMEBOL passaram a exigir que os clubes interessados em participar de suas competições garantissem em seu quadro também um time de futebol feminino. A entidade internacional determinou regra válida para os times que quisessem participar da Copa Libertadores do ano de 2019. A CBF fez a exigência para o mesmo ano: os clubes que disputariam a Série A do Campeonato Brasileiro de 2019 deveriam ter time feminino. Em um primeiro momento, o resultado não foi o ideal. Inúmeros clubes iniciaram parcerias ou montaram equipes femininas apenas para garantir a participação dos times masculinos nas referidas competições. Atualmente, em 2024, tem-se um cenário um pouco melhor. Uma parcela dos clubes que iniciaram seu time feminino por obrigação hoje conta com equipes fortes e competitivas, garantindo um crescimento, ainda pequeno, porém visível, no futebol feminino do país. Como se nota, o desenvolvimento do futebol praticado por mulheres no Brasil teve de ser induzido.

Em novembro de 2020, a FIFA editou as primeiras regras voltadas às atletas mulheres com o intuito de garantir condições apropriadas de trabalho relacionadas à maternidade através do documento Women’s Football: Minimum Labour Conditions for Players[1]. Tais normativas buscaram atingir três objetivos principais, quais sejam, garantir a estabilidade contratual (a), proteger o direito ao trabalho das atletas antes, durante e depois do parto (b), e,  fornecer um ambiente de trabalho seguro às jogadoras grávidas ou que tiveram filhos recentemente (c). Já as primeiras modificações regulamentares efetivas foram implementadas a partir do Regulamento de Status e Transferências de Jogadores (RSTP) do ano de 2021, com a inclusão dos artigos 18, parágrafo 7º, e 18quater, os quais foram alterados na edição de 2024 do mesmo diploma[2].

Ficaram estipulados os direitos à licença-maternidade, licença por adoção e licença familiar das jogadoras durante toda a vigência do contrato, garantindo o pagamento de salário equivalente a dois terços do previsto contratualmente durante o período, o que evitaria abusos por parte dos clubes. Caso a legislação nacional do país do clube ou acordo coletivo de trabalho garantam normas mais vantajosas, deverão estas prevalecer. Também ficou terminantemente proibido qualquer condicionante contratual quanto à gravidez, adoção ou maternidade, de sorte que, caso o clube encerre unilateralmente um contrato com uma atleta alegando gravidez ou adoção, as licenças acima descritas ou a utilização de direitos relacionados à maternidade no geral, tal rescisão será considerada “sem justa causa” e a atleta terá direito a uma compensação financeira, a depender se a mesma já tenha ou não assinado contrato com outra agremiação, fora a possibilidade de o clube ser punido esportiva (transfer ban) e financeiramente. Quanto à maternidade, o clube deve elaborar um plano pós-parto e fornecer suporte médico contínuo e adequado, além de garantir à atleta, ao retornar, um espaço adequado para que possa amamentar o bebê ou extrair o leite materno nos momentos necessários.

Reconhecendo o efeito positivo das reformas, porém ainda insuficientes, a FIFA também apresentou um novo movimento para acrescentar dispositivos mais abrangentes, desta vez estendendo os direitos adquiridos a pais adotivos e mães não-biológicas e abordando a saúde menstrual da mulher. Nestes casos, as atletas, após apresentar atestado médico do ginecologista pessoal ou de outro médico especialista, poderão se ausentar de treinos ou jogos sempre que necessário, não podendo ter qualquer alteração na remuneração integral.  Além disso, todos os direitos foram ampliados para as treinadoras de futebol, quando houver compatibilidade.

No Brasil, apesar de haver um certo vácuo normativo no sentido da previsão de direitos específicos para as atletas mulheres, a CLT continua a ser aplicada subsidiariamente para efeito de incidência das regras gerais das empregadas mulheres. De qualquer maneira, a Lei Geral do Esporte (Lei n. 14.597/2023), avançou ao prever, no art. 3º, § 3º, que “é direito da mulher, em qualquer idade, ter oportunidades iguais de participar em todos os níveis e em todas as funções de direção, de supervisão e de decisão na educação física, na atividade física e no esporte, para fins recreativos, para a promoção da saúde ou para o alto rendimento esportivo”.

Como se nota, as novas circunstâncias tendem a criar um ambiente mais igualitário na modalidade e buscam reverter parcela do atraso ao qual o futebol feminino foi submetido por conta do ambiente machista que sempre dominou o futebol mundial. É forçoso compreender tantas mudanças como um grande e necessário avanço após tamanho atraso. O novo comportamento do futebol mundial, com um olhar justo para as atletas e suas peculiaridades, garante o desenvolvimento da modalidade e permite a criação de um ambiente de trabalho mais saudável, resultando em um futebol com mais técnica e, consequentemente, com mais recursos para um melhor espetáculo.

A boa notícia é que o futebol feminino já se consolidou um grande negócio e como um espaço receptivo a proteger direitos fundamentais das atletas mulheres. Que venham novos tempos.

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[1] Disponível em https://digitalhub.fifa.com/m/033101649cc3c480/original/f9cc8eex7qligvxfznbf-pdf.pdf. Acesso em 03/05/2024.

[2] Disponível em https://digitalhub.fifa.com/m/69b5c4c7121b58d2/original/Regulations-on-the-Status-and-Transfer-of-Players-June-2024-edition.pdf. Acesso em 06/08/2024.

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