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O dia em que o STF julgou se a FIFA interferia na soberania do Brasil

Em 2014, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.976, na qual a Procuradoria-Geral da República questionava dispositivos da Lei Geral da Copa (Lei 12.663/2012), o Supremo Tribunal Federal (STF) se debruçou acerca de vários pontos de alegado vício de inconstitucionalidade, porém, um dos temas chamou bastante a atenção: seria a Lei Geral da Copa inconstitucional por ferir a soberania nacional de nosso país?

O relator da ADI, ministro Ricardo Lewandowski, proferiu um voto em que desafiou a relação complexa entre uma entidade mundial integrante da Lex Sportiva, o sistema transnacional do esporte e um Estado soberano. De um lado a FIFA e seu Comitê Organizador da Copa do Mundo de 2014 (COL), que sediava o Mundial de futebol daquele ano, e do outro uma soberania, o Brasil. Para basear seu voto, o relator citou uma obra que eu havia escrito com o amigo Luiz Felipe Santoro, denominada “Lei Geral da Copa Comentada”, da Editora Thomson Reuters/RT, e que já aparecia no processo em razão da manifestação do então Advogado-Geral da União, ministro Luís Inácio Adams. O trecho do meu livro em citação direta no voto do ministro Lewandowski assim estava transcrito:

Acerca das garantias oferecidas pelo governo brasileiro à FIFA, Wladimyr Vinycius de Moraes Camargos e Luiz Felipe Guimarães Santoro, trazem o seguinte entendimento: ‘(…) a FIFA solicitou ao Governo Federal a assinatura de doze garantias governamentais para a realização do evento no Brasil. Mais ainda, esta própria entidade que é reconhecida pelo ordenamento jurídico brasileiro como integrante de um sistema que possui a prerrogativa de regrar suas atividades especiais voltadas à organização do esporte, solicitou à União a edição de normas que possibilitem a aplicação das mesmas garantias acima citadas em território nacional.

Desse modo, ainda à época da candidatura do Brasil a sediar a Copa de 2014, houve a decisão soberana de nosso país em se comprometer com o conjunto de garantias apresentadas. É justamente por se portar como potência soberana, respeitante de sua construção enquanto um estado democrático de direito, que a aplicação dos compromissos internamente se dará sempre de acordo com o que dita a Constituição Federal e os princípios regentes de nossa República”. (STF – ADI 4.976-2013/DF – Rel. Min. R. Lewandowski, fls. 10 do Acórdão).

E é a partir dessa referência que o ministro relator vence dois dos principais questionamentos da PGR contra a Lei, ou seja, a assunção de efeitos da responsabilidade civil da FIFA em face de possíveis danos a ela imputados, bem como a concessão de isenção no pagamento de custas e emolumentos no âmbito da Justiça mantida pela União à entidade esportiva. Quanto a esse primeiro ponto, a manifestação do min. Lewandowski foi exposta como se lê abaixo:

[…] cuida-se de compromisso livre e soberanamente contraído pelo Brasil à época de sua candidatura para sediar a Copa de 2014, consubstanciado em um conjunto de garantias, dentre as quais figura a responsabilidade por eventuais danos decorrentes do evento. (idem ibidem, fls. 18 do Acórdão).

Imagino que o leitor já deve ter percebido que a autora da Ação, a PGR, preocupava-se em impugnar as chamadas garantias governamentais que o Poder Executivo brasileiro havia prestado à FIFA quando de sua candidatura a sediar a Copa de 2014. Recordo que qualquer outro país que almejasse receber o evento seria levado a assinar as mesmas garantias, como já havia ocorrido com as sedes anteriores. África do Sul e Alemanha também firmaram documentos de teor bastante próximo ao que nosso país havia garantido, conforme provamos no livro citado.

E foi assim que a ampla maioria do Plenário do Supremo (10 x 1) decidiu que não havia ferimento à soberania nacional nas normas da Lei Geral da Copa que positivavam as garantias governamentais que o Brasil havia – soberanamente – prestado à FIFA.

Minha tese no livro citado no acórdão em referência é que justamente por agir como nação soberana é que o Brasil pôde assumir as garantias perante a detentora plena dos direitos de realização da Copa do Mundo de Futebol. Se não fosse um Estado que agisse de modo soberano, as garantias não seriam negociadas, assinadas – sem qualquer vício de consentimento – e, depois, convertidas em leis, decretos e portarias, conforme o rito constitucional que se impõe a um Estado democrático de direito, a uma soberania.

Agora, pergunto ao respeitoso e paciente leitor que conseguiu chegar até aqui neste texto cheio de citações e transcrições: as negociações entre Brasil e FIFA em torno das garantias necessárias à realização da Copa de 2014 se deram entre dois entes soberanos? Trata-se de uma relação típica do Direito Internacional Público?

Para ajudar a responder tão complexas questões, vamos inicialmente examinar mais um caso que não envolve diretamente o Brasil. A situação que proponho adicionarmos à nossa análise rapidamente para nos auxiliar envolve a Nigéria.

O Estatuto da FIFA obriga seus membros a administrar suas atividades independentemente e a salvo de influências de terceiros. E foi justamente essa norma que baseou a decisão do Comitê de Emergência da FIFA de suspender a Federação de Futebol da Nigéria (FFN) de todas as atividades internacionais relacionadas à modalidade, incluindo os clubes a ela filiados. O motivo da suspensão foi uma decisão da Suprema Corte da Nigéria que ordenou, em 2014, ao ministro do Esporte do país, nomear um servidor público para administrar a entidade até que uma sentença final do tribunal acerca da gestão da federação fosse definitivamente prolatada. O caso só foi resolvido definitivamente em 2018, com a normalização da situação da FFN perante a FIFA.

Bom, passemos a analisar os dois casos do ponto de vista do Direito Esportivo e do Direito Internacional.

No que concerne à suspensão imposta pela FIFA à Federação Nigeriana de Futebol, venho insistindo que aqui temos um caso totalmente contido no sistema transnacional do esporte, a Lex Sportiva, porém provocado por um agente extrassistema, a Suprema Corte daquele país, que decidiu por intervir na forma de eleição na entidade nacional de futebol que também integra a Lex Sportiva.

Assim como no Caso Bosman, já explicado em ótima coluna de Andrei Kampff aqui para o Lei em Campo, uma decisão judicial abalou o sistema não estatal, e que também não está no mundo do Direito Internacional Público, por ser transnacional, desterritorializado, a qual conhecemos justamente por Lex Sportiva.

No caso Bosman, UEFA e FIFA internalizaram em seu sistema o acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (ente de Direito Comunitário, e não um tribunal estatal típico) e modificaram o regime de contratação de atletas europeus e puseram fim ao instituto do “passe”. No caso nigeriano, a FIFA suspendeu o grau de membro da federação de futebol do país por ela ter atendido a uma determinação da Suprema Corte nacional, estatal.

Os dois fatos demonstram que, ao contrário do que dizem os luhmanianos, os sistemas sociais são sempre abertos. Na nossa área, a reação da Lex Sportiva no caso Bosman foi de absorver internamente a decisão externa, tornando-a norma própria, como se linguagem de seu próprio sistema fosse. Já no affair da Nigéria, o resultado foi drástico, atingindo a representação do país mundialmente no que tange às competições da modalidade futebol.

Houve interferência da FIFA na soberania da Nigéria? Claro que não. A FIFA não exigiu que sua filiada nigeriana desobedecesse à ordem judicial da Suprema Corte do país. Contudo, por não entender como devida na Lex Sportiva a permanência de uma federação que estava sob intervenção direta de um órgão estatal – o Ministério do Esporte nigeriano –, ainda que por ordem judicial, a entidade mundial do futebol suspendeu a FFN de todas as atividades relativas à modalidade fora do território daquela nação. Em resumo, ainda que a Nigéria e seus poderes estatais exerçam sua soberania internamente, essas decisões não precisam ser acatadas no sistema transnacional que a FIFA compõe.

No Caso Bosman, as consequências da decisão judicial do TJUE abalariam a estrutura europeia do futebol, e não havia defesa que a UEFA e a FIFA pudessem fazer quanto ao mérito (sua postura era errada, injusta e ilegal, principalmente perante as normas de Direitos Humanos), ainda que perfeitamente defensável o respeito à autonomia do sistema. Desse modo, autonomamente, tanto a UEFA como a FIFA decidiram absorver a ordem judicial europeia/comunitária como comunicação interna – obrigatória – para a Lex Sportiva. Do mesmo modo, autonomamente, a FIFA suspendeu sua filiada nigeriana por entender que já não gozava de autonomia e, portanto, não poderia continuar a ser membro, compor a Lex Sportiva, ao menos até que normalizasse sua situação.

Por fim, voltando ao caso da ADI que julgou a Lei Geral da Copa, o Brasil não negociou as garantias com a FIFA no âmbito do Direito Internacional Público, até mesmo por não ser ela um ente desse sistema. Houve na verdade uma negociação de um Estado soberano, componente de um sistema internacional de soberanias estatais regido pelo Direito Internacional Público, o Brasil, com uma entidade transnacional, regida pela legislação suíça quanto às suas obrigações por ali estar sediada, porém integrante da Lex Sportiva e, portanto, autorreferente e autônoma perante o Direito Internacional Público e o direito interno do Brasil.

Uma soberania estatal, o Brasil, não deixou de se portar enquanto Estado soberano por negociar garantias governamentais com um ente privado, transnacional, a fim de trazer a Copa do Mundo ao seu território, assim como a entidade privada transnacional, a FIFA, não se fez menos autônoma por pedir ao Brasil que respeitasse suas peculiaridades justamente autônomas, transnacionais, desterritorializadas, autorreferentes e de autogoverno.

E se o STF decidisse pela inconstitucionalidade da Lei Geral da Copa? Bom, avaliados os prejuízos e riscos a ambas as partes, juridicamente falando, o Brasil soberanamente manteria a decisão do Poder Judiciário intacta, e a FIFA poderia autonomamente decidir pela manutenção ou não da Copa em nosso país.

Assim se faz no mundo complexo, plurissistêmico e político-juridicamente global em que vivemos.

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