Elthon José Gusmão da Costa*
INTRODUÇÃO
Desde o seu advento, a Internet sempre teve uma grande participação nos esportes de combate. No caso do MMA, que começou a ganhar popularidade no início dos anos 90, assistir a eventos ao vivo ou comprar DVDs ou fitas VHS era a única maneira de assistir às lutas, tendo o esporte se expandido além de sua base original de fãs com a revolução da Internet.
Hoje, os lutadores estão em uma posição única em que suas carreiras dependem não apenas de suas habilidades físicas, mas também de sua visibilidade e comercialização, sendo as mídias sociais as mais importantes ferramentas de divulgação de seu trabalho.
O problema é que, apesar de os lutadores serem classificados como contratados independentes (autônomos), os eventos costumam colocar cláusulas nos contratos dos atletas que os obrigam a trabalhar para divulgar o evento e seus patrocinadores (mesmo em treinamento), nada recebendo os atletas por isso, os colocando numa situação de hiperdisponibilidade, que destoa do modelo de autonomia que os eventos querem que os atletas sejam classificados.
A CESSÃO SEM ONEROSIDADE DOS DIREITOS DE IMAGEM DO ATLETA
No UFC, os lutadores são obrigados a usar uniformes fabricados pela Venum durante os treinos e outras participações na mídia, havendo compensação apenas quando o lutador tem luta marcada.
Os lutadores ficam então sujeitos a seguir uma política de vestuário, deveres promocionais e código de conduta para receber um bônus por luta, de acordo com o contrato.
No entanto, os lutadores não podem usar logotipos ou roupas de seus próprios patrocinadores. De acordo com seus contratos, os lutadores do UFC não têm controle sobre sua própria propriedade intelectual e direitos de imagem.[1] De acordo com o contrato, o UFC tem um
direito mundial exclusivo e irrestrito de garantir, promover, organizar e apresentar toda e qualquer competição de artes marciais mistas …. a ser realizada pelo Lutador durante o Prazo … e qualquer Prazo de Extensão … incluindo todos os direitos de encenar cada luta e vender ingressos de admissão (os “Direitos Promocionais”) e explorar os Direitos Conexos para cada Luta em todas as mídias, agora conhecidas ou futuramente concebidas em todo o mundo, perpetuamente”. (tradução e destaque nossos)
De fato, isso significa que o UFC pode usar a imagem/marca de um lutador indefinidamente sem que nenhum royalty seja pago ao lutador. O UFC também detém todos os direitos de imagem do lutador para sempre, como indica o documento.
Vale lembrar também que o atleta em seu contrato uma cláusula de exclusividade, comum nos grandes eventos de luta, que o obriga a não aceitar combates em outros eventos.[2]
Isso implica dizer que, quando a imagem do lutador, que é exclusivo do evento, é divulgada no streaming da promoção, o atleta nada recebe, criando uma situação no mínimo curiosa: se algum fã, influenciado pela contratação pelo UFC de um atleta famoso, assina o streaming (porque viu que agora o atleta faz parte do plantel do evento e passou a ser exclusivo do mesmo), o atleta recém-contratado nada recebe pela assinatura, pois sequer lutou (inexistindo o pagamento a título de “luvas”[3] na luta).
O “DIGITAL INFLUENCING” E A HIPERDISPONIBILIDADE DO ATLETA
Não se pode dizer que tais termos contratuais sejam do melhor interesse dos lutadores, que não apenas passam por um imenso desgaste físico, mas também se colocam em risco financeiro ao competir para serem os melhores.
De acordo com os termos mencionados acima, os lutadores não podem complementar qualquer prêmio em dinheiro que recebam com royalties do uso de suas imagens ou de sua própria propriedade intelectual. Isso tem o potencial de criar situações financeiras terríveis, pois muitos lutadores têm gastos significativos para pagar seus próprios regimes de treinamento.
Embora os lutadores possam buscar acordos de patrocínio, quaisquer taxas potenciais decorrentes de tais relações provavelmente serão diminuídas devido às limitações do contrato.
Ainda, os lutadores, bem como seus treinadores e equipe, são obrigados a usar o uniforme antes, durante e depois de cada luta.
Esse acordo significa que os lutadores não podem mais usar roupas que sejam fabricadas ou ostentem o logotipo/marca de seu patrocinador pessoal durante esses períodos específicos. Isso, por sua vez, sem dúvida limita quaisquer taxas de patrocínio que eles poderiam estar recebendo de seus próprios patrocinadores, já que o tempo máximo de exposição será antes, durante e imediatamente após a luta.
Isso acaba colocando o atleta em posição de investir em sua imagem para chamar mais atenção do público, o que lhe traria mais lutas e, consequentemente, mais dinheiro.
É obvio que, quanto mais popular for o lutador, mais dinheiro este ganhará. Mas isso envolve um trabalho de promoção pessoal do lutador através de suas redes sociais, do qual o evento se beneficia sem diretamente investir.
Diante disso, chama a atenção a cláusula no contrato dos atletas do ONE Championship, onde o atleta se obriga a estar disponível a qualquer momento para divulgar o evento, mesmo as lutas que não são suas, sem compensação adicional:
3.6 O Atleta deverá, sem qualquer compensação adicional, colocar-se à disposição em todos os momentos razoáveis e fornecer toda a assistência razoável à Empresa e suas afiliadas para anunciar, divulgar ou promover de outra forma:
(a) as Partidas;
(b) todas as transmissões, transmissões ou outras divulgações das Partidas ou de quaisquer outras competições, partidas, concursos, lutas, torneios ou eventos organizados ou promovidos pela Empresa ou em conexão com o ONE (quer os mesmos contem ou não com a participação do Atleta) em qualquer mídia que seja;
(c) outras competições, jogos, competições, lutas, torneios ou eventos organizados pela ONE ou a ela vinculados, quer tenham ou não a participação do Atleta;
(d) venda de qualquer mercadoria da ONE ou outros bens ou serviços fabricados, distribuídos ou vendidos pela Empresa ou suas afiliadas em conexão com os Direitos de Merchandising, incluindo aparições em coletivas de imprensa, entrevistas e outras atividades promocionais e de patrocínio que a Empresa possa razoavelmente determinar. A Empresa arcará com os custos razoáveis de viagem e acomodação do Atleta em relação a tais atividades.[4]
Tais termos contratuais contradizem totalmente a relação que o evento diz ter com o atleta. Se este não tem liberdade para escolher se quer ou não promover o evento (que sequer lhe paga pra isso!), como afirmar que o atleta não é um empregado da promoção?[5]
O contrato deixa claro que o atleta atua em tempo integral como um “digital influencer” do evento, tendo o mesmo que usar de sua rede social e sua imagem, sem contrapartida alguma, para divulgar seu contratante.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A popularidade dos esportes de combate continua a aumentar e, embora as promoções continuem a lucrar, o mesmo não pode ser dito da maioria dos lutadores, que continuam a ser explorados com termos contratuais injustos e baixos salários.
É difícil se que conceba que alguém que tem sua imagem usada pelo contratante e, ainda, é obrigado a divulgar a promoção, não recebe contrapartida alguma, sendo tratado ainda como trabalhador exclusivo do evento.
Os eventos precisam ser mais justos com os lutadores para negociar contratos, buscando o melhor interesse de ambas as partes, pois é apenas uma questão de tempo até que isso seja contestado nos tribunais.
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* Master in International Sports Law (Instituto Superior de Derecho y Economía – ISDE). Advogado, professor, palestrante e autor e organizador de livros jurídicos. É membro da Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho do Tribunal Superior do Trabalho no Grau Oficial, especialista em Direito Desportivo (CERS), pós-graduado em Direito Processual Civil (Unileya), diretor jurídico do CNB (Conselho Nacional de Boxe), diretor do Departamento Jurídico da CBKB (Confederação Brasileira de Kickboxing), diretor do Departamento Jurídico da WAKO Panam (World Association of Kickboxing Comissions Región Panamericana) e da CBMMAD (Confederação Brasileira de MMA Desportivo). É membro da Comissão Jovem da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD-Lab), membro do núcleo de estudos “O Trabalho além do Direito do Trabalho: Dimensões da Clandestinidade Jurídico-Laboral” (NTADT), da Faculdade de Direito da USP, auditor do TJDU-DF, membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB-DF (2022-2024), membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD) e colunista do website “Lei em Campo” (Coluna “Luta e Desporto”). [email protected].
[1] Ver contrato disponível em: BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Procedimento Comum Cível nº 5023009-13.2021.8.24.0005. Contrato de atleta do UFC. Documento: Evento 39, CONTR2. Balneário Camboriú, SC: Juízo da 3ª Vara Cível da Comarca de Balneário Camboriú, 2022. Acesso em 15 nov. 2024.
[2] COSTA, Elthon José Gusmão da. O fim da cláusula de exclusividade em contratos de atletas da luta. Consultor Jurídico, Brasil, 11 maio 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mai-11/o-fim-da-clausula-de-exclusividade-em-contratos-de-atletas-da-luta/. Acesso em 17 nov. 2024.
[3] RAMOS, Rafael Teixeira. Luvas na nova Lei Geral do Esporte. Lei em Campo, Brasil, 10 jul. 2023. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/luvas-na-nova-lei-geral-do-esporte/. Acesso em: 17 nov. 2024.
[4] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Manaus. Execução de Título Extrajudicial nº 0750699-31.2021.8.04.0001. Contrato de atleta do ONE Championship. Documento: Contrato. Manaus, AM: 9ª Vara Cível e de Acidentes de Trabalho da Comarca de Manaus, 2021.
[5] Ver mais sobre a a ausência de liberdade contratual do atleta da luta em: COSTA, Elthon José Gusmão da. Counterfeit Liberty: falsa liberdade contratual do trabalhador da luta nos EUA. Consultor Jurídico, Brasil, 13 set. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-set-13/counterfeit-liberty-a-falsa-liberdade-contratual-do-trabalhador-da-luta-com-base-no-modelo-dos-eua/. Acesso em: 17 nov. 2024.