Neste ano de 2021 a Justiça do Trabalho celebrou os seus 80 anos de existência, que merecem ser celebrados, tendo em vista o seu fundamental papel na promoção do equilíbrio entre o capital e o trabalho.
O tema tratado neste derradeiro artigo do ano tem a finalidade de demonstrar o pioneirismo da Justiça do Trabalho, durante oito décadas, ao enfrentar casos que dizem respeito a relação entre o atleta profissional e o seu clube empregador, que passou por uma evolução criteriosa, na medida em que, no início da década de 1950, a prática desportiva do futebol sequer era considerada uma profissão.
As regras do desporto (e até mesmo as do direito desportivo) surgiram a partir de uma atividade elaborada pela própria sociedade, desenvolvida de forma espontânea e independente da atividade técnica dos corpos legislativos oficiais, sendo que o direito que surge desta atividade espontânea da sociedade é definido por Oliveira Viana como o direito-costume, o direito do povo-massa, desconhecido e ignorado propositalmente pelas elites, nada obstante, em alguns momentos, sejam compelidos a reconhece-los e a legaliza-los (VIANA : 1999. p. 44).
Em célebre caso julgado na década de 1950, o jurista Antônio Chaves relata que o Tribunal Superior do Trabalho, ao analisar recurso em Reclamação Trabalhista, movida em face do São Cristóvão Futebol e Regatas, o Ministro Rômulo Cardim já proclamava ser necessário “que uma legislação especial venha amparar esses profissionais que consomem as suas energias físicas na prática de uma profissão esgotante.” (CHAVES : 1988. p. 24).
Desta forma, pode-se concluir que durante a primeira metade do século XX havia aspectos que poderiam ser solucionados à luz das leis então vigentes e aplicadas ao trabalhador comum, contudo já havia o justo anseio pela existência de uma legislação específica que regulamentasse a matéria.
Com efeito, o Direito do Trabalho ordinário não se coaduna com a realidade do desporto, razão pela qual a prática social naturalmente criou um ordenamento próprio, capaz de abranger um regime diferenciado para o trabalho desportivo.
As peculiaridades do desporto acabam refletindo no contrato especial de trabalho desportivo (CETD), assim denominado pela própria Lei Pelé (Lei n. 9.615/1998), a fazer com que, em razão das especificidades da prática desportiva o legislador viu-se compelido a formular normas distintas daquelas aplicadas para o trabalhador ordinário.
A atividade do atleta profissional é regida pela Lei Geral do Desporto e não pela CLT, sendo que esta somente será aplicada de forma subsidiária e apenas quando não houver incompatibilidade com os princípios do desporto, conforme previsão constante no art. 28 § 4º da Lei Pelé.
Ao citar Arturo Majada, o jurista brasileiro que é considerado o “pai do Direito Desportivo” no Brasil, João Lyra Filho, afirma que “o contrato desportivo, não podendo ser enquadrado em nenhum dos tipos admitidos pelo legislador, deverá ser fixado em seus elementos legais, em função de um exame concreto das singulares consequências jurídicas pretendidas pelos contratantes.” (LYRA FILHO : 1952. p. 307)
O CETD tem características próprias e deverá ser celebrado, obrigatoriamente, de maneira formal mediante a elaboração de um contrato de trabalho, com período de duração mínimo de 3 meses e máximo de 5 anos. Após o registro do referido contrato na respectiva entidade de administração do desporto terá início o vínculo desportivo.
Até mesmo rubricas trabalhistas clássicas sofrem severas restrições quando transportadas para o desporto. À guisa de exemplo, o tempo de trabalho sofre limitação semanal e não diário; o repouso semanal remunerado pode ser concedido dentro do próprio clube, com treino regenerativo, sem que tal fato seja configurado como tempo à disposição do empregador; o adicional noturno, via de regra, não é devido, assim como a equiparação salarial.
O próprio poder disciplinar do empregador tem características particulares, conforme assinala, tendo em vista que no contrato de trabalho desportivo raramente se verificam despedimentos, na medida em que o praticante desportivo constitui um “ativo patrimonial” (BAPTISTA : 2006. p. 21).
Os deveres do atleta estão enumerados no artigo 35 da Lei Pelé. A saber: a) Participar dos jogos, treinos, estágios e outras sessões preparatórias de competições com a aplicação e dedicação correspondentes às suas condições psicofísicas e técnicas; b) Preservar as condições físicas que lhes permitam participar das competições desportivas, submetendo-se aos exames médicos e tratamentos clínicos necessários à prática desportiva; c) Exercitar a atividade desportiva profissional de acordo com as regras da respectiva modalidade desportiva e as normas que regem a disciplina e a ética desportivas.
Não se trata de um rol exaustivo de deveres, tendo em vista que o atleta profissional, além dos deveres acima mencionados, também deve observar a obediência, diligência e fidelidade, esta última entendida como respeito ao caráter ético da relação contratual.
Até mesmo fatores extra-campo podem afetar o regular desempenho da atividade do atleta, ou seja, este poderá ser punido em razão de conduta praticada fora do período em que está à disposição do empregador, fato este que raramente poderia afetar a vida de um trabalhador comum.
Desta forma, conclui-se que, ao contrário do que ocorre com os demais trabalhadores celetistas, o atleta profissional, além dos deveres inerentes ao desempenho da atividade desportiva, possui obrigações “extra-campo”, envolvendo sua alimentação, ingestão de bebidas alcoólicas, descanso, prevenção de lesões, restrição de uso de medicamentos, dentre outras. (VEIGA : 2018. p. 61).
No tempo em que foi presidente do Botafogo, tradicional clube carioca que cedeu vários atletas para a seleção brasileira de futebol, João Lyra Filho formulou regras que tinham como objetivo contemplar um regime disciplinar permanente e que era parte integrante do contrato celebrado entre atletas e clube, com as seguintes disposições (LYRA FILHO : 1952. p. 320/321):
É claro que tais previsões dizem respeito há uma realidade de 80 anos e muitas delas já caíram em absoluto desuso. Contudo, determinados princípios, guardadas as devidas proporções, têm pertinência e aplicação nos tempos atuais. Há, portanto, uma possibilidade de ingerência, por parte do empregador, que extrapola a vida profissional deste trabalhador e que invade a sua esfera pessoal, sem que tal fato, contudo, se configure ato ilícito, na medida em que é justificável pela natureza da atividade desempenhada.
Com efeito, a Justiça do Trabalho é pioneira e fonte de inspiração para diversos ramos da justiça brasileira, conforme se infere da lei que originou os juizados especiais e inúmeros princípios incorporados ao Código de Processo Civil.
Em razão de sua natureza peculiar, a atividade do atleta é de curta duração e muitas das vezes um lapso temporal de meses de um trabalhador comum pode equivaler a anos de um atleta profissional, razão pela qual muitas das vezes é necessária a adoção de medidas judiciais ousadas para seassegurar o tempo de vida útil necessário à própria sobrevida do atleta.
O contrato de trabalho desportivo é especial em razão da necessidade de se compatibilizar o aspecto laboral com o aspecto desportivo. O grande desafio, porém, é o de conciliar essa intromissão na vida íntima do atleta com a preservação da dignidade da pessoa humana e da liberdade individual. Trata-se de uma tarefa complexa, mas não impossível.
Deve haver a harmonização da boa-fé, proporcionalidade, adequação, necessidade e legítimo propósito e o magistrado do trabalho tem a sensibilidade para solucionar esses desafios e promover o equilíbrio social, não à luz das normas constantes na CLT, mas sim naquelas insculpidas na legislação desportiva em razão de suas peculiaridades.
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