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O espelho

“O Espelho” (1882) é um conto de Machado de Assis que fala de Jacobina, homem de origem humilde que ganhou um grande espelho de presente de sua tia, por haver conseguido um cargo militar. A partir de então, a percepção que tinha de si mesmo passou a ser aquela que os outros tinham dele e Jacobina deixou de ser o que ele sempre foi.

Às vezes esquecemos do que realmente somos e das responsabilidades que temos nas nossas vidas. Certas autoridades paulistas, por exemplo, parecem desconhecer suas próprias atribuições. Isto ficou bem espelhado no caso de centenas de torcedores do São Paulo, que se aglutinaram em volta do estádio do Morumbi para receber o ônibus da equipe antes do jogo contra o Flamengo.

Diante desse fato, a Secretaria Municipal de Saúde oficiou a CBF e a Federação Paulista de Futebol, pedindo que as entidades “amplifiquem as orientações” para “sensibilizar os clubes e suas torcidas organizadas quanto ao risco” de aglomerações como a que ocorreu durante São Paulo x Flamengo.

Insinuando que a responsabilidade pelo controle dessa situação incumbe às entidades desportivas, o ofício ainda cita o artigo 14 do Estatuto do Torcedor, que diz que “a responsabilidade pela segurança do torcedor em evento esportivo é da entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo e de seus dirigentes”.

Insinuou de forma equivocada. O mencionado dispositivo não se destina a responsabilizar entidades desportivas por contágio de pessoas, ainda mais quando ele possa ocorrer fora das arenas, já que se trata de algo completamente alheio ao espetáculo desportivo.

Com efeito, a norma almeja responsabilizar entidades desportivas por danos causados aos torcedores por atos de violência e em virtude de acidentes ocorridos no interior dos estádios. A aglomeração aconteceu do lado de fora e não havia “torcedores”, no sentido próprio do termo, uma vez que o jogo aconteceu com portões fechados.

Antes de empurrar o problema para a CBF e a Federação Paulista de Futebol, a Secretaria de Saúde deveria lembrar que a competência para agir em tais casos é do próprio Poder Público, que dispõe do chamado “Poder de Polícia”, que vem a ser a prerrogativa para agir imediatamente a fim de impedir ou reprimir comportamentos nocivos ao interesse coletivo.

Como salienta Meirelles, “Poder de Polícia é a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado” (MEIRELLES, 2002p. 127).

É bom frisar, na companhia de Rafael Oliveira que “uma das características marcantes do poder de polícia é a sua autoexecutoriedade, que representa a prerrogativa conferida à administração para implementar os seus atos sem a necessidade de manifestação prévia do Poder Judiciário. (Direito Administrativo e coronavírus. Disponível em: content://com.sec.android.app.sbrowser/readinglist/1120184435.mhtml)

Além do amparo jurídico, a Prefeitura dispõe dos meios necessários para impedir ou coibir os atos de aglomeração. Seus fiscais e forças de segurança podem atuar aplicando sanções e dispersando a multidão, ou ainda convocar a polícia do Estado para agir em casos de maior gravidade.

Não se perca de mira, outrossim, que atualmente as aglomerações constituem-se num dos crimes contra a saúde pública. Com efeito, o art. 268 do Código Penal pune com pena de detenção de um mês a um ano, mais multa quemInfringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa” (art. 268 do Código Penal), o que só aumenta a legitimidade de atuação do Poder Estatal nesses casos.

Há igualmente a possibilidade de que a Prefeitura promova a responsabilização civil da Torcida Organizada responsável pela aglomeração, pois como adverte o Art. 39-B do Estatuto do Torcedor: ”A torcida organizada responde civilmente, de forma objetiva e solidária, pelos danos causados por qualquer dos seus associados ou membros no local do evento esportivo, em suas imediações ou no trajeto de ida e volta para o evento.

Pode-se perceber, portanto, que a Prefeitura de São Paulo detém todos os recursos para agir, diferentemente de Jacobina. O personagem de Machado de Assis, ao ser deixado sozinho, ficou sem saber o que ele era, pois sua personalidade havia se moldado de acordo com a imagem que os outros faziam dele.

A saída que aquele pobre homem encontrou foi a de vestir a sua farda e olhar-se no espelho presenteado pela tia, para recuperar a imagem positiva que todos tinham dele.

Talvez a ideia de Jacobina possa ajudar agora. Se as autoridades de São Paulo quiserem descobrir quem tem de atuar contra a aglomeração em volta dos estádios, sigam a estratégia do militar solitário.

Fiquem bem posicionadas diante de um grande espelho.

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