Estamos nos aproximando do momento da votação da nova Lei Geral do Esporte; um momento importante para o esporte brasileiro, já que, se aprovada, a nova lei modificará aspectos importantes no movimento esportivo brasileiro. O Lei em Campo tem diversas matérias e artigos sobre a nova Lei Geral do Esporte, não deixe de conferir!
Nesta semana, decidi dedicar meu espaço neste portal para falar sobre o Esporte sob uma perspectiva macro; uma reflexão sobre o Esporte como direito fundamental e sobre sua a contribuição na sociedade.
A Constituição Federal de 1988 aloca o esporte como direito social; isso fica muito claro quando da leitura da redação do caput do artigo 217 que prevê que “é dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um (…)”.
Neste sentido nos ensina Leonardo Ferraro[1]:
A ligação do desporto com o direito, e, mais especificamente, com os direitos fundamentais, é bastante intensa, e se consolidou principalmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988, que, aliás, foi a primeira no Brasil a tratar do desporto como um direito social e fundamental, garantido aos indivíduos a condição de cobrar do Poder Público o fomento das atividades desportivas, através de várias ferramentas, como a Ação Civil Pública e a Ação Popular, por exemplo.
O artigo 217 refere-se tanto à prática desportiva formal quanto à não formal como “direito de cada um”, revelando a importância que a Constituição dá à proteção do esporte. Na lição de Álvaro Melo Filho[2]:
A magnitude do fenômeno desportivo na sociedade brasileira e o alcance socioeconômico-cultural do desporto justificam o mandamento constitucional de que ‘é dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais como direito de cada um (art. 217, caput, da CF/1988 (LGL/1988/3)’. Por isso é dever do Estado massificar a prática desportiva transfundindo os espectadores passivos em atores, contribuindo para a melhoria do nível de vida, para divisão mais racional do tempo entre trabalho e lazer, para a elevação da taxa de escolaridade e para implementar uma efetiva política de democratização desportiva.
O autor deixa claro que o tratamento que se deve dar ao esporte como direito fundamental, portanto, vem, principalmente, do fato de que este está estreitamente vinculado ao princípio da dignidade da pessoa humana, que norteia os Direitos e Garantias Fundamentais e até mesmo da própria Constituição Federal. Sobre a relevância dada ao esporte na Constituição Federal, destaca Tatiana Mesquita Nunes[3]:
A primeira parte do artigo 217 – seu caput – prevê, desde logo, dois conceitos fundamentais: o fomento ao esporte é dever do Estado e as práticas desportivas formais e não-formais são direitos dos cidadãos. A posição topológica do dispositivo, no Capítulo da Ordem Social (ao lado de assuntos como saúde, educação e cultura), permite inferir a relevância dada ao tema e sua inserção na estrutura do Estado como agente promotor, não apenas como ente regulador. A Constituição inaugurou, assim, o dispositivo sobre o esporte apresentando-o como direito social, cujo usufruto pelos cidadãos deve ser possibilitado por ação específica estatal.
A despeito de não constar de forma expressa na Constituição Federal de 1988 que o esporte é um direito fundamental, assim o considero. Esta posição é sustentada pelo disposto no § 2º do Art. 5º da Carta Magna[4] que não limita a existência de direitos fundamentais àqueles listados no artigo 5º; em uma interpretação sistemática, tão pouco limita os direitos fundamentais àqueles previstos também no artigo 6º e 17 da Constituição Federal de 1988.
Sobre esta questão, é relevante destacar o posicionamento do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes[5]:
O parágrafo em questão dá ensejo a que se afirme que se adotou um sistema aberto de direitos fundamentais no Brasil, não se podendo considerar taxativa a enumeração dos direitos fundamentais no Título II da Constituição. Essa interpretação é sancionada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (…). É legítimo, portanto, cogitar de direitos fundamentais previstos expressamente no catálogo da Carta e de direito materialmente fundamentais que estão fora da lista. Direitos não rotulados expressamente como fundamentais no título próprio da Constituição podem ser tidos como tal, a depender a análise do seu objeto e dos princípios adotados pela Constituição. A sua fundamentalidade decorre da sua referência a posições jurídicas ligadas ao valor da dignidade humana; em vista da importância, não podem ser deixados à disponibilidade do legislador ordinário (…). O propósito da norma é afirmar que a enumeração dos direitos não significa que outras posições jurídicas de defesa da dignidade da pessoa estejam excluídas da proteção do direito nacional.
Também nos ensina Rafael Teixeira Ramos[6], aqui mesmo no Lei em Campo, sobre o esporte como direito fundamental:
A outra estirpe constitucional do desporto é o seu evidenciado cunho de direito fundamental, bastando para tanto, realizarmos uma hermenêutica sistemática a respeito do art. 5º, § 2º da CF/88, que dimana ser os direitos e garantias fundamentais capitulados no dispositivo em referência um rol exemplificativo de direitos fundamentais, nada impedindo que outros direitos fundamentais estejam assegurados por toda a Lei Ápice. É exatamente o que ocorre com os direitos sociais do art. 6º da CF/88, onde está luminosamente escrito o direito ao lazer, verbete minuciosamente condensado no art. 217, § 3º da CF/88, onde se identifica novamente a palavra lazer, porém, desta vez, como sinonímia de desporto, consequentemente, o direito ao desporto é assentamento reflexo do direito fundamental ao lazer, revestindo-se num autônomo direito social fundamental.
É inegável o aspecto social que traz consigo o esporte. Em sua essência, o esporte carrega em si o fato de ser um instrumento de agregação, permitindo a interação entre diferentes culturas, religiões, ideologias políticas, dentre outros. É a própria Lei 9.615/1998, a Lei Geral do Desporto, que prevê como um dos princípios do desporto o da democratização, “garantindo em condições de acesso às atividades desportivas sem quaisquer distinções ou formas de discriminação” (BRASIL, 1998, online). Há de ser exaltado e preservado o poder de inclusão social do esporte, especialmente numa sociedade excludente.
Álvaro Melo Filho entendia que o desporto pode “influenciar processos de mudança social, formação educacional e consolidação da identidade cultural”. De fato, o esporte é uma sólida ferramenta de desenvolvimento humano (físico e mental).
As entidades de administração e de prática desportivas cumprem importante papel social, especialmente se levarmos em conta o esporte na manifestação de formação. As entidades de administração exigem e fiscalizam entidades de prática desportiva para que estas forneçam aos jovens atletas educação, alimentação, moradia, acompanhamento de médicos, psicólogos, nutricionistas, dentre outros.
Isso porque a Lei Pelé, traz em seu artigo 29, § 2º, as características que as entidades de prática desportiva formadoras de atletas devem possuir para ser consideradas como tal:
Art. 29. A entidade de prática desportiva formadora do atleta terá o direito de assinar com ele, a partir de 16 (dezesseis) anos de idade, o primeiro contrato especial de trabalho desportivo, cujo prazo não poderá ser superior a 5 (cinco) anos.
§ 2º É considerada formadora de atleta a entidade de prática desportiva que:
I – forneça aos atletas programas de treinamento nas categorias de base e complementação educacional; e
II – satisfaça cumulativamente os seguintes requisitos:
a) estar o atleta em formação inscrito por ela na respectiva entidade regional de administração do desporto há, pelo menos, 1 (um) ano;
b) comprovar que, efetivamente, o atleta em formação está inscrito em competições oficiais;
c) garantir assistência educacional, psicológica, médica e odontológica, assim como alimentação, transporte e convivência familiar;
d) manter alojamento e instalações desportivas adequados, sobretudo em matéria de alimentação, higiene, segurança e salubridade;
e) manter corpo de profissionais especializados em formação técnico desportiva;
f) ajustar o tempo destinado à efetiva atividade de formação do atleta, não superior a 4 (quatro) horas por dia, aos horários do currículo escolar ou de curso profissionalizante, além de propiciar-lhe a matrícula escolar, com exigência de frequência e satisfatório aproveitamento;
g) ser a formação do atleta gratuita e a expensas da entidade de prática desportiva;
h) comprovar que participa anualmente de competições organizadas por entidade de administração do desporto em, pelo menos, 2 (duas) categorias da respectiva modalidade desportiva; e
i) garantir que o período de seleção não coincida com os horários escolares.
O dispositivo legal acima transcrito elenca os requisitos que devem ser cumpridos pelas entidades de prática desportiva que desejam ser reconhecidas como entidades formadoras de atletas. Caberá às entidades de administração do desporto administrar e fiscalizar as certificações das entidades formadoras[7].
O inciso I do dispositivo acima transcrito prevê a exigência de complementação educacional. O inciso II complementa as exigências, dentre elas a garantia da assistência educacional e a obrigatoriedade de ajuste do tempo de treinamento do atleta de forma a não impedir a continuidade dos seus estudos.
Este é um dos exemplos de como a relação entre o desenvolvimento esportivo e o desenvolvimento do cidadão são pensadas de forma imbricada, demonstrando que a entidade de prática desportiva tem um enorme potencial transformador de vidas. É neste sentido que afirma Antônio Jorge Gonçalves Soares[8] que “o esporte é representado socialmente como uma instituição educativa, associada a saúde e à qualidade de vida, e serve como saudável opção aos perigos do mundo da rua e/ou das drogas”.
A Lei Pelé, portanto, impõe às entidades de prática desportiva formadoras a associação da formação técnica e física do jovem atleta ao desenvolvimento educacional. A Lei o faz com o objetivo de garantir que, caso a carreira de atleta seja frustrada, o jovem possua uma base educacional e cultural que o permita optar por outros caminhos na inserção no mercado de trabalho. Sobre esta questão, complementa Antônio Jorge Gonçalves Soares:
O acompanhamento profissional nas áreas médica, odontológica e psicológica proporciona ao jovem o desenvolvimento enquanto atleta e enquanto cidadão. A entidade de prática desportiva, ao dispor de tais recursos em função dos jovens nos quais investe, auxilia o Estado na promoção da saúde e presta um expressivo serviço à sociedade.
É de se destacar a importância da parceria entre Estado e entidades de administração e prática desportiva que, como frisa o autor acima citado, “contribui na promoção da saúde, prestando um expressivo serviço à sociedade”. É significativo, pois, o papel social que tais entidades exercem.
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[1] FERRARO, Leonardo. Direitos Fundamentais e Desporto. In: MACHADO, Rubens Approbato et al (Coord.). Curso de Direito Desportivo Sistêmico. v. 2. São Paulo: Quartier Latin, 2010.
[2] MELO FILHO, Álvaro. Direito Desportivo – Novos Rumos. Belo Horizonte: Del Rey, 2004
[3] NUNES, Tatiana Mesquita. Olímpia e o Leviatã: a Participação do Estado para Garantia da Integridade no Esporte. 2020. Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade de Direito da USP, São Paulo.
[4] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
[5] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
[6] RAMOS, Rafael Teixeira. Direito ao desporto (esporte): por que um direito social fundamental?. Lei em Campo. 19 jul. 2021. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/direito-ao-desporto-esporte-por-que-um-direito-social-fundamental/.
[7] Art. 29, § 3º, Lei 9.615/98. A entidade nacional de administração do desporto certificará como entidade de prática desportiva formadora aquela que comprovadamente preencha os requisitos estabelecidos nesta Lei. (BRASIL, 1998, online)
[8] SOARES, Antônio Jorge Gonçalves et al. Jogadores de futebol no Brasil: mercado, formação de atletas e escola. In: Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Florianópolis, v. 33, n. 4, p. 905-921, out – dez. 2011. Disponível em: http://rbceonline.org.br/revista/index.php/RBCE/article/view/902/704.