O esporte pode ser trabalho? Como se sentem esses atletas? E nós, amantes do jogo e espectadores assíduos, como os vemos?
Há exatos 20 anos, o rei do futebol entraria para a História, não apenas pelos mais de 1.000 gols marcados, mas também por dar nome à lei que mudaria para sempre o mercado esportivo. Promulgada em 1998, a Lei Pelé (9.615/98) consolidou o reconhecimento do atleta profissional como um trabalhador esportivo. Com a extinção do “passe”, o objetivo foi fazer com que os atletas deixassem de ser “do” clube para estar “no” clube.
Para entender o que o famigerado “passe” significava em termos de restrição da liberdade dos atletas e porque a sua extinção representa, hoje, o marco da profissionalização do esporte no Brasil e em grande parte no mundo, nada mais adequado (e famoso) do que a história de Jean-Marc Bosman – contada em detalhes aqui no Lei em Campo pelo nosso amigo Andrei Kampff.
Em resumo, o belga, então atleta de futebol profissional da equipe do Royal Club Liègeois AS (atualmente, RCL Liège), não teve o seu contrato de trabalho renovado ao recusar a proposta de redução salarial de 75% (setenta e cinco por cento) feita pelo clube para a temporada seguinte, e, em virtude da existência do “passe”, não poderia assinar contrato com nova equipe, nem mesmo mediante o pagamento de indenização, porque dependia de autorização do Liège.
Autorização que não veio, mesmo após o oferecimento da equipe do Sportive de L’union du Litoral de Dunkerque. Tudo porque o atleta era considerado “propriedade” do clube. Ficaria impedido de jogar a temporada seguinte, até que uma decisão do Tribunal Europeu considerou o instituto uma violação à liberdade de trabalho e o declarou ilegal.
Vinte anos depois, o fim do “passe” é considerado um marco por consolidar o esporte como profissão e o respeito ao atleta como um sujeito livre para exercê-la.
Há alguns meses, uma entrevista concedida por um medalhista olímpico chamou a minha atenção. Quando perguntado sobre com o que trabalhava, respondeu: “Não trabalho, sou atleta”. Aquilo me fez pensar. Ele treinava 6 horas por dia, 6 dias por semana, e tinha no esporte a sua fonte de renda. O esporte era o seu trabalho.
Pela legislação, é considerado profissional o atleta que tem contrato formal de trabalho registrado na entidade administradora da respectiva modalidade. Dentro desse conceito, várias dúvidas poderiam surgir. Por ora, não é meu objetivo discuti-las. Meu ponto é, além do requisito formal, questionar: o esporte é considerado um trabalho? Como se sentem esses atletas? E nós, amantes do jogo e espectadores assíduos, como os vemos?
Principalmente pelo fato de que o produto esportivo está intimamente vinculado ao “tempo-livre” do espectador, o esporte, mesmo profissional, carrega forte ligação com o lazer. Por essa razão, ainda existe grande dificuldade de compreender que, em determinado momento, sua capitalização deu origem a uma categoria de pessoas que têm na atividade um meio de subsistência.
Por muito tempo, essa íntima ligação entre esporte e lazer chegou, inclusive, a impedir a inclusão da atividade no rol de profissões. Chegaria a dizer Galeano que a beleza nasce da alegria de jogar porque sim¹. No entanto, o fato é que o transitar do esporte/recreação para o esporte/espetáculo o tornou fator de diversão apenas para quem o assiste, e não necessariamente para quem o pratica.
Perceber esse limite ainda parece ser desafio não só para os próprios atletas profissionais como também para outros players do mercado esportivo – como clubes, patrocinadores, imprensa esportiva e, claro, o consumidor/torcedor. Como disse uma vez Galeano: “Normalmente, os uruguaios pertencemos ao Nacional ou ao Peñarol desde o dia em que nascemos. A pessoa diz, por exemplo, ‘Eu sou do Nacional’. Se o torcedor pertence ao time, por que não os jogadores?”².
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¹ No original: “la historia del fútbol es un triste viaje del placer al deber. A medida que el deporte se ha hecho industria, ha ido desterrando la belleza que nace de la alegría de jugar porque sí”. (GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Tradução de Eric Nepomuceno e Maria do Carmo Brito. Porto Alegre: L&PM, 2014. p. 125. Tradução livre).
² GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Tradução de Eric Nepomuceno e Maria do Carmo Brito. Porto Alegre: L&PM, 2014.