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O Estatuto do Torcedor resistirá à Covid-19 ou será contagiado por mudanças?

Por Milton Jordão [1]

O mundo mudou definitivamente. Dizer isso em meio à maior crise global devido à pandemia de covid-19 soa arriscado, posto que os avanços na medicina poderão surpreender e transformar este que vos escreve num profeta do caos. Mais um que sucumbirá.

Entretanto, minha assertiva que descortina esse pequeno texto não está relacionada necessariamente aos efeitos da pandemia ao longo do tempo. Certo, para mim, é que o isolamento que foi imposto aos mais diversos povos em todo o globo deixará efeitos permanentes nas relações humanas, no mundo do trabalho, no meio do entretenimento, etc.

É impressionante perceber que o coronavírus promoveu alterações em costumes simples como pegar em corrimões, encostar-se em paredes ou no elevador, coçar os olhos ou nariz sem antes lavar as mãos. Isso sem avançarmos em estudos sobre os efeitos psicológicos e sociais que derivarão do pós-pandemia (se e quando ela passar efetivamente).

Descobriu-se, a fórceps, que haviam ferramentas tecnológicas que eram subutilizadas, nós as víamos apenas como figurantes em nosso corrido dia-a-dia, agora subiram ao palco principal como protagonistas, seja para viabilizar as atividades profissionais, diminuir a sensação de solidão e distanciamento social. Até creio que não queríamos nos apartar dos costumes secularizados nas relações humanas, presos ainda ao século XX. Mesmo que surja uma vacina o nosso ontem não se repetirá amanhã.

O mundo do Esporte foi apanhado de surpresa e de forma acachapante, de uma hora para outra as competições das mais diversas modalidades, como se fossem peças de dominó arrumadas em pé e enfileiradas ao se derrubar a primeira as demais foram caindo. A paralisação das mais valiosas competições esportivas foi como uma adaga no mercado esportivo. Porém, ninguém pode a ela oferecer qualquer resistência, pois a proteção à vida falou mais alto – nunca demais o que o Presidente da FIFA, Gianni Infantino, tem dito abertamente: “nenhuma partida merece colocar em risco uma vida[2]. Os números de contágio e mortes derivadas da covid-19 são impactantes e reclamaram medidas extremadas de isolamento ante ausência de terapia médica ou vacina.

No Brasil, a pandemia expôs quadro similar ao que foi na Europa e na Ásia, forçando adoção de medidas restritivas de contato social que culminaram com a suspensão de partidas e a interrupção dos campeonatos estaduais, da Copa do Nordeste e da Copa do Brasil. Dia a dia, num cenário de descontrole da pandemia[3] e sem unidade de desígnio das três esferas de poder (federal, estadual e municipal) para lutar contra o seu avanço, a perspectiva de retorno se distancia cada vez mais.

Nesse cenário nacional que beira o caos (em algumas cidades do país já se vive), como ficará a preservação do que estabelece o Estatuto do Torcedor, posto que, muito embora, se vivencie momento incomum até mesmo da história humana recente (a última pandemia de similar alcance ocorreu em 1918), mister que a lei em vigor não seja suplantada somente pelo primado da realidade.

Todavia, seria necessário, enfim, que fosse submetida a adequações ou ajustes em face desta novel realidade?

Esta é uma questão das mais interessantes, porquanto atiça sentimentos dois mais fleumáticos aos atávicos sobre o retorno do futebol. No

 entanto, força convir que as entidades de administração estão corretas em se planejar e pensar o retorno do futebol profissional.

Inegável, com uma pitada de racionalidade em nosso pensar, que o futebol é uma atividade econômica que traz para a mesa de muitas famílias o sustento, não somente me refiro aos atletas e técnicos. A cadeia produtiva é bem extensa, vai do vendedor de alimentos e bebidas nas imediações dos estádios, o funcionário da loja do clube que vende muito em dias gloriosos até o garçom que atende aos torcedores eufóricos e desiludidos – no antes, durante e após das partidas, friso.

Naturalmente, esta cadeia também foi atingida e não se reverberará de imediato em nossa realidade pós-pandêmica, será um aprendizado para todos os players deste mercado. Mas, de forma alguma, o construir a nova realidade é algo equivocado e insensível, como fala-se imaturamente por ai, ao revés, é sim se preparar para o porvir de forma mais adequada.

A volta dos jogos não é apenas uma questão econômica e sim tem relação direta com a nossa sensação de querer viver um pouco do que vivíamos e fomos tolhidos tão abruptamente que sonhamos em ver na televisão no ângulo direito superior da tela o “ao vivo”. Pouco importará de joga o Real Madri, o Barcelona, a Juventus ou o Bahia. Queremos ver jogo e ponto.

Certamente, a retomada dos jogos é um balsamo para os dias taciturnos do isolamento, uma fuga (ainda que somente mental) para aquele espaço (a arquibancada) onde falamos o que queremos (das juras de amor mais sublime ao mais execrável impropério), abraçamos o desconhecidos e somos felizes (mesmo triste com o resultado em campo) por pouco mais de 90 minutos.

Apesar do sonho idílico, a realidade nos chama a atenção. E como ficam as questões legais?

Trago uma discussão bem interessante deduzida do artigo do advogado espanhol Toni Roca sobre o possível retorno da La Liga, publicado no Iusport[4]. Ali, ele questiona a volta do desfecho da temporada 2019/2020, abordando por diversos vieses, entre eles discorre sobre a integridade da competição, que se vê vulnerada com potencial risco de descumprimento do regulamento, já que ao contrário do que foi idealizado quando do seu início, portanto, as condições já não são as mesmas, bem como o risco à flexibilização de regras e também o novo formato do calendário (possivelmente as partidas serão mais realizadas com menor tempo entre elas).

Para a realidade nacional, além das questões normativas desportivas existentes, há a imposição legal do artigo 9° da Lei n° 10.671/2003, que prevê a transparência na organização desportiva em relação aos seus regulamentos e calendário. Além disso, o § 5° do mesmo artigo que proíbe as alterações regulamentares de competições, excepcionando-se a apresentação de novo calendário anual a ser aprovado pelo Conselho Nacional do Esportes e após dois anos de vigência do mesmo regulamento.

Assim sendo, advém a indagação: como os certames que foram interrompidos poderão modificar, eventualmente, regras previstas no regulamento sem ferir a lei de regência?

E mais, será que a delonga na retomada da temporada, poderá ensejar risco à posterior que resulte em pontual modificação regulamentar para evitar prejuízos maiores?

Ao meu sentir, as duas questões que trago nos incitam à discussão sobre a necessária criação de regra de transição a ser inserida no Estatuto do Torcedor que possa garantir segurança jurídica aos players do negócio futebol (federações e clubes, principalmente).

Imagine-se que ao retomar os jogos um resultado de campo que gere insatisfação de um clube pode desaguar nos foros judicantes das entidades do esporte ou até mesmo no Poder Judiciário fora desalinho ao texto legal. Não basta apenas a anuência ante novo regulamento ou fórmula imprevista, pois rege-se pelo império da lei.

O momento vivido reclama profunda reflexão sobre o que se pretende no futuro próximo. Naturalmente, pouco a pouco, se alcançará uma “normalidade” (nova ou velha não nos importará), como, por exemplo, enquanto escrevo estas linhas, se encontra em campo clubes e atletas pela Bundesliga.

Fato inequívoco é que o Futebol reclamará sempre por segurança jurídica, dentro e fora do campo de jogo, para que se consolide como potente atividade econômica e, exatamente neste período de incerteza e fluidez exacerbada (Ah, Bauman, que falta você nos faz agora!), o ajuste legal é preciso. Não é oportunismo como alguns podem sugerir, ao menos neste caso; porém, é adequar-se ao porvir – que já bate à porta-, para “fazer a roda girar”.

E como será esta alteração? O que se deve prever ali?

Não quero responder esta questão agora, somente trago aqui o alerta da sua necessidade e reflexão, tenho que urge mudar e se adequar para que não sofra mais em 2020 e também nos próximos anos, com fantasmas como foi o título da Copa União de 1987 (aliás, foi ou é ainda?)!

O Direito e o Futebol, muitas vezes, andam em descompasso dado a velocidade deste em relação à aquele, mas, o contágio com os efeitos da covid-19 nos demanda modificações legais para ajustar, sejam elas transitórias ou definitivas! Isso é inconteste!

Deixarei a minha reposta para um novo escrito.

Meu caro leitor, tenha certeza de que isso farei, por enquanto, se cuidem!

……….

[1] Advogado. Mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSAL. Mestrando em Direito Desportivo pela Universidade de Lleida (Espanha). Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB Nacional. Membro das Comissões de Direito Desportivo da OAB/BA e da OAB/SE. Presidente do Instituto de Direito Desportivo da Bahia (IDDBA). Ex-presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB/BA. Presidente do STJD do Judô. Ex-procurador do STJD do Futebol. Autor de artigos e obras jurídicas sobre Direito Desportivo.

[2] Disponível em <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2020/04/10/nenhuma-partida-merece-colocar-em-risco-uma-vida-afirma-infantino.htm> Acessado 16 maio 2020.

[3] Escrevo este texto em 16 de maio, quando o Brasil registra 14.817 óbitos fruto da covid-19, e ao olharmos 30 dias atrás, em 16 de abril, este era de 1.933. Desconsideramos as subnotificações de ontem e hoje. Um cenário fúnebre e desolador. Disponível em <https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,entre-trocas-numero-de-mortes-avanca-666-no-pais,70003304976> Acessado em 16 maio 2020.

[4] ¿Hay razones por las que la liga debería anularse? Disponível em <www.iusport.com> Acessado em 16 maio 2020.

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