Foi-se o tempo em que a gente batia o ponto e já não era mais o trabalho. Antes que pudéssemos perceber, fomos condenados à prisão perpétua. Regime integral. Isso porque, mais do que a função que ocupa as horas trabalhadas na rotina do “in and out”, o ofício de hoje também é rótulo.
Como uma espécie de etiqueta, somos o que fazemos. E o que fazemos se tornou cada vez mais imprescindível pra que sejamos capazes de nos reconhecer e catalogar mutuamente, como indivíduos e sociedade. Como tratamos os outros e como seremos tratados depende dessa fundamental explicação: “Mas o que você faz?”. Em meio a um mundo inundado de informações, já não basta que alguém seja o João, a Maria, o José. Isso não explica nada pra ninguém.
Pra que a gente consiga enquadrar o sujeito corretamente no nosso mapa mental pessoal, é preciso que os nomes venham com uma espécie de complemento qualificador. “Boa tarde, esse é o João, Advogado”. “Bom dia, sou a Maria, Engenheira”. “Aquele é o José, Médico”. Pensando bem, talvez nem isso seja o suficiente. Melhor que sejam “João, Advogado do Escritório X”; “Maria, Engenheira da Empresa Y”; “José, Médico do Hospital Z”. Agora sim. Um alívio. É uma espécie de tara, assim mesmo.
Com o esporte, a coisa fica mais grave. Não bastasse, como todos nós, ser rotulado por ofício, o fulano, “jogador do Time A”, vive a bonança e a tragédia de ser funcionário de uma empresa com devotos. Condenado à prisão perpétua de não ser nada além do que se faz, ainda é obrigado a dividir a cela com milhares deles. Afáveis e aflitos, pessimistas e perseverantes, rancorosos e apoiadores, o torcedor são muitos.
Pro azar do jogador, entre eles, está o torcedor fanático. Diferente dos outros, essa categoria tem em comum com seus pares a vigília permanente. E a vigilância também. Apesar de exercerem seus próprios ofícios longe da cancha (e, talvez, justamente por isso), os fanáticos estão comprometidos com o dever religioso de fiscalizar o trabalho alheio dentro e fora dela. Pela tela, ou com os próprios olhos, assumem seus postos como soldados que, como um dia já disseram, se revelam militantes da única religião sem ateus. E, assim, dedicam suas vidas pra se certificar de que os onze missionários escolhidos à dedo (e à caneta) dão ao manto sagrado que vestem a mesma importância que o fazem cada um dos guerreiros insólitos da arquibancada. Que problema.
Como quem confunde a oração da bola com tática de guerrilha, se o resultado não vem, atacam, vez ou outra, o jogador. E, por que não, a família do jogador. Aconteceu com o Bruno Henrique. Quando não chegam às vias de fato, ameaçam. “Vou te matar”, numa mensagem aqui. Um muro pintado ali. Um vidro de carro quebrado acolá. Aconteceu com o Tesillo, com o Ábila, com o João Vitor, com o Bruno Aguiar, com Michel Bastos, com o Wesley, e aí vai. Em 94, mataram o Andrés Escobar por eliminar o time da Copa.
Sempre em bando, que dá mais coragem que sozinho, o fanático, que é escorraçado em algum canto da sua vida triste, agora mete medo pra defender o pedaço de orgulho que ainda sobra nas cores da bandeira que esconde todo o resto.