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O “founding father” do Direito Esportivo brasileiro

Chegamos à vigésima edição desta coluna A lei é clara [?]. Já são vinte semanas em que falamos desde os fundamentos do Direito Esportivo, seus princípios, histórias que ilustram essas teorias, até a relação da disciplina com o Direito Internacional etc. Tudo isso de uma forma que busca fugir do academicismo ou do “parnasianismo” que marca parte da produção científica no ambiente jurídico. Penso que – ainda que aos trancos e barrancos – tenho conseguido manter essa linguagem mais fluida sem perder a profundidade que os temas e o leitor requerem, como propusemos lá no primeiro número.

Em comemoração, hoje começo a falar da história do Direito Esportivo e, em vez de imitar Stanley Kubrick e voltar lá na descoberta do fogo pelo homem, vou começar a contar essa trajetória já por um período mais recente. Busco na origem do Direito Esportivo no Brasil, e não no que acontecia nas primeiras Olímpiadas na Grécia antiga, o ponto de partida para entendermos essa narrativa. E a partir desse início brasileiro, vou voltando aos primórdios, aos primeiros tempos do que consideraríamos ser um direito no esporte. Começaremos, assim, pelo “founding father” [sim, em analogia aos “founding fathers” dos EUA, e, aliás, que história essa da Revolução Norte-americana….], o pai fundador do Direito Esportivo no Brasil: João Lyra Filho.

Começo meu último livro (“Constituição e Esporte no Brasil”, Ed. Kelps, 2018 – disponível na amazon.com.br) dizendo como descobri a paixão pelo Direito Esportivo. Outros fatos foram importantes para esse “gosto”, mas convido minha amiga leitora, meu caro leitor, a ler um trecho da introdução e descobrir algo determinante para eu ter escolhido esse tema no doutorado em Direito Constitucional na Universidade de Brasília. O porquê de eu ter levado para um dos mais conceituados programas de mestrado e doutorado o país, o de Direito da UnB, um tema até então muito marginalizado (Direito Esportivo e Direito Constitucional). Cheguei a ouvir na banca de seleção a seguinte pergunta: “Por que você está usando autores tão sofisticados pra trabalhar com Direito Esportivo?”. Duro, mas real.

Vamos então ao trecho do meu livro:

João Lyra Filho por si só era uma instituição. Homem forte do Estado Novo nos esportes, filho de Senador da República (Lyra de Tavares), irmão de três ministros de Estado, foi um prolífico autor de obras sobre direito esportivo e administração pública. Exerceu a função de Ministro do Tribunal de Contas da Guanabara, tendo antes atuado no sistema bancário estatal. Reitor da Universidade do Estado da Guanabara, seu nome hoje batiza a sede da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, prédio que fica ao lado do Maracanã, nomeado pela alcunha de seu amigo Mário Filho, justamente o editor do Jornal dos Sports onde os textos de Lyra Filho eram publicados. Estão hoje curiosamente lado a lado para sempre na história, justamente os dois nomes do Estado Novo nos esportes: Lyra Filho para o direito e a administração esportivos e Mário Filho como o “criador das multidões” no esporte nacional.

Em suas memórias, Lyra Filho conta que, ainda antes de exercer as relevantes funções públicas que viria assumir no futuro, Getúlio Vargas, já Presidente da República, confiava a ele o preenchimento de seu formulário de imposto de renda. Relata também que propôs inadvertidamente ao chefe do Estado Novo, logo em seu primeiro encontro como presidente do poderoso Conselho Nacional de Desportos – CND, que aproveitasse os amistosos da Seleção Brasileira de futebol contra o Uruguai, na homenagem aos pracinhas que rumavam para as batalhas europeias da Segunda Guerra Mundial, para fazer uma reforma ministerial e estancar a crise política que já o assolava. O frenesi da população em torno das partidas teria um efeito de amortecimento do impacto da possível reformulação do Gabinete. Como se verá nesta obra, houve muita perseguição contra a família Lyra de Tavares após a Revolução de 1930 e, contraditoriamente, Lyra Filho se torna um de seus próceres já na fase do Estado Novo.

Tornei-me, portanto, um curioso colecionador e leitor das obras de João Lyra Filho, que escreveu mais de 100 livros. Descobri que um dos patronos desta Faculdade de Direito da UnB, Roberto Lyra Filho, pai do “Direito Achado na Rua”, era seu sobrinho.

Mas, saindo dos prosaísmos, na continuidade dos estudos sobre o tema, deparei-me com autores de direito esportivo que conviveram e foram guiados por João Lyra Filho e que dele e de sua obra faziam uma análise não suficientemente aprofundada, muitas vezes meramente laudatória. Não encaravam os desafios jurídicos e sociológicos que o autor deixou em a “Introdução ao Direito Desportivo” e abandonaram a busca por ele empreendida para enfrentar o problema da legitimidade ao princípio da autonomia esportiva ou ao próprio direito esportivo, em uma perspectiva que se referenciava no “Realismo Jurídico” estadunidense e na “Culturologia” de Oliveira Vianna.

Desse modo, o primeiro capítulo deste trabalho é voltado a um necessário retorno aos primórdios da organização esportiva no Brasil, o surgimento das entidades voltadas à prática do esporte e, consequentemente, da emergência de um direito centrado no fenômeno esportivo. Busco, assim, algo que será permanente neste trabalho, que é o retorno às origens dos discursos políticos e jurídicos que permeiam a autonomização do esporte no Brasil.

Sim. Um tipo de paixão à primeira vista, e quero “gastar” algumas das próximas edições pra convidar meus estimados e pacientes leitores a acompanhar tão fantástica história de amor ao Direito e ao Esporte.

Envolvi-me tão diretamente com João Lyra Filho, seus livros, sua vida, que passei a ler tudo o que chegava a minhas mãos sobre ele, além de estudar tudo o que ele próprio havia escrito. Fui notando que estava tão “esquecido” que nem mesmo na internet havia muito espaço, muita coisa sobre ele. Por isso fiz algo que vou confidenciar aqui pra quem chegou ao fim do texto de hoje: eu acabei por escrever o verbete dele na Wikipédia. Acreditam que foi rejeitado na primeira versão por uma alegada falta de relevância. Insisti, retruquei, fui pra disputa com eles e a enciclopédia internética acabou por publicar o verbete. Ficou bem simples, mas está lá.

Bom, vou parando por aqui hoje esperando ansiosamente pela receptividade de vocês acerca da continuidade do trabalho que volto a desenvolver em torno de tão complexo e erudito “pai”, justamente aquele que teimou por dizer que “Direito Esportivo” deveria ser “Direito Desportivo” – um erro.

Sim, um “pai”, ainda que no sentido “totêmico” do termo (ai de mim, Sigmund).

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