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O Frankenstein jurídico

No romance de terror gótico Frankenstein, Mary Shelley relata a história de Victor Frankenstein, um estudante de ciências naturais que luta por criar um ser consciente e racional em seu laboratório. O sucesso de sua fórmula é sufocado pelo espanto com a aparência terrível de sua criatura.  Victor se apavora com a monstruosidade que criou e foge.

Outro Frank também é tido por haver criado outra monstruosidade, mas através de uma declaração por conter, para muitos, caráter discriminatório contra as mulheres.

Trata-se de Frank de Boer, ex-craque holandês e hoje técnico de futebol. A imprensa quis saber dele o que achava da atitude da Federação Holandesa de Futebol, que se dispôs a igualar os pagamentos a jogadores das seleções masculinas e femininas, até 2023.

Frank foi franco:

“Para mim, é ridículo. É como no tênis. Se existem 500 milhões de espectadores para uma final da Copa masculina e 100 milhões para o Mundial feminino, isso é uma diferença, então não é a mesma coisa”, disse De Boer. “ Se for popular como o masculino, elas vão receber porque as receitas e os patrocínios chegarão. Mas não é assim, então por que elas precisam receber o mesmo? Não entendo isso.”

Frankenstein e Frank De Boer foram taxados de haverem dado ensejo a algo horrendo, mas, se formos investigar a fundo, a questão situa-se mais no âmbito das aparências, do que propriamente no conteúdo do que fizeram.

Com efeito, apesar da criatura de Frankenstein haver sido rejeitada por ele mesmo e escorraçada pela sociedade, seu aspecto físico não retratava o que ele realmente parecia ser. Ajudou uma família pobre, aprendeu a ler sozinho e estudou sobre a vida e a virtude.

Por sua vez, Frank, malgrado o tom inicial agressivo, mostrou que seu discurso não foi tão monstruoso assim:

“Acho que o movimento começou porque as mulheres estão recebendo menos em geral, principalmente em cargos de liderança. Elas têm que receber o mesmo que homens”, afirmou o holandês. “Se você tem uma posição de liderança em um banco ou algo assim, você tem que ganhar que os homens porque não é algo físico. Acho que isso veio para o mundo dos esportes, como no tênis e no futebol, mas ainda acho que isso é diferente.”

Na boa? De Boer tem razão. Embora não tenha se expressado da melhor forma, sua resposta, na verdade, tem algo de outro tipo de “monstro”. É que na raiz da palavra ‘monstro’ está o verbo latino monere, que significa ‘avisar, prevenir’. Frank De Boer, ao seu estilo, tenta avisar sobre os riscos de uma aplicação equivocada do princípio da igualdade de gênero.

Por igualdade de gênero entende-se o gozo de iguais direitos, deveres, oportunidades e tratamento a homens e mulheres em todos os segmentos da vida social. Ou seja, de acordo com esse princípio, o regime jurídico das pessoas não pode depender do fato de terem nascido homem ou mulher.

Nossa Constituição reconheceu-o no art. 5º, inciso I, ao equiparar homens e mulheres em direitos e obrigações. Ou seja, juridicamente homens e mulheres são iguais, sendo inconstitucionais normas, decisões ou orientações que privilegiem um sexo em detrimento de outro.

Sobre o mercado de trabalho, que é o que nos interessa aqui, a C.F. também proíbe, no inciso XXX do art. 7º, que haja diferença de salários, exercício de funções e critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.

Quanto à igualdade de salários, a CLT diz também no art. 5º que “A todo trabalho de igual valor corresponderá salário igual, sem distinção de sexo” e no art. 461, ao sublinhar que, “sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, no mesmo estabelecimento empresarial, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo…”

Sabiamente, o parágrafo primeiro do art. 461 explica o que significa “igual valor”: é quando o trabalho for feito com a mesma perfeição técnica e igual produtividade.

É fundamental, portanto, o rendimento do trabalho prestado. Se numa fábrica de calçados, um homem e uma mulher produzem 20 sapatos por dia cada um, ambos deverão receber a mesma remuneração. Frank De Boer tenta caminhar na mesma trilha quando fala de homens e mulheres que trabalhem num banco.

Mas no esporte e em certos setores laborais isso é um pouco diferente. Em tais segmentos, produtividade não é apenas aquilo que a pessoa faz, mas o que o seu trabalho traz de retorno ao seu empregador. Frank, ao falar do interesse do público maior pelo Tênis masculino, atenta à lei mais antiga do mercado que é a da oferta e da procura, da qual jamais conseguiremos fugir.

A recíproca é verdadeira nos espaços em que o trabalho feminino é mais valorizado do que quando idêntico serviço é prestado pelo sexo oposto. O mundo da moda, certames de beleza e outras áreas do Show Business não nos deixam mentir e nada há de aterrorizante em tudo isso…

No esporte, inclusive entre homens é insustentável exigir idêntica remuneração. Até jogadores de um mesmo time recebem salários diferentes, valores distintos de patrocínio e etc.

Um exemplo futebolístico ajudará a entender melhor a questão. Uma árbitra que apite um jogo masculino, deverá ganhar o mesmo que ganharia um varão se lá estivesse em seu lugar, pois exercerá igual função desempenhada por um homem, em idêntico segmento mercadológico.

Mas esta mesma árbitra talvez não fará jus àquele valor se apitar uma partida feminina, pois o retorno financeiro desse espetáculo é notoriamente inferior ao montante que rende um jogo masculino.

Eis o “X” da questão. Só haverá discriminação de remuneração pelo gênero, se o fator do sexo for o único que distinga o estipêndio dos trabalhadores.

Não dá para equiparar situações desiguais, exigindo remuneração idêntica para atividades que tenham rentabilidades diferentes. Isso só afasta quem gostaria de investir no esporte feminino.

Igualar gênero não é o mesmo que generalizar particularidades.

Seguir esta fórmula será um erro. Não é possível usá-la.

A menos que se queira criar um verdadeiro Frankenstein jurídico.

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