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O gramado e a qualidade do jogo

No domingo à tarde, Palmeiras e Tigres enfrentavam-se em Doha na semifinal da Copa do Mundo de Clubes da FIFA quando, a certa altura do primeiro tempo, o narrador da partida comentou sobre a qualidade do gramado – “padrão de Copa do Mundo”, em suas palavras. E foi além: explicou que o corte mais baixo da grama, aliado à irrigação do campo antes do início da partida, faziam a bola correr mais rápido.

Para a equipe brasileira, isso não era uma grande novidade. Afinal, o seu estádio (Allianz Parque) conta desde o início de 2020 com um gramado sintético, de ótima qualidade, que também permite que a bola corra mais rápido e propicia aos espectadores boas partidas de futebol.

Mas naquele momento a fala do narrador trouxe a reflexão: por que razão ainda nos chama a atenção ver clubes brasileiros disputando partidas em gramados de ótimas condições, que dão mais velocidade ao jogo? Na tentativa de buscar respostas, vale recorrer aos regulamentos de algumas importantes competições de clubes e identificar o que eles dizem sobre o terreno de jogo.

Começamos pela própria Copa do Mundo de Clubes. O regulamento da FIFA para a competição neste ano estipula, em seu artigo 18, que as partidas podem ser disputadas em gramados naturais ou sintéticos[1]. Além disso, atribui ao Coordenador Geral da FIFA a incumbência de definir e dar instruções sobre a altura do corte da grama natural e sobre quando deve ser molhado. Portanto, a norma define a altura e a umidade da grama como variáveis fundamentais para a qualidade do campo de jogo, ainda que não especifique propriamente as regras a serem seguidas.

O regulamento da UEFA Champions League é mais específico. Seu artigo 30.02 aponta o limite de 30mm (trinta milímetros) de altura da grama, e dispõe que o delegado da partida ou mesmo o árbitro podem solicitar a redução de altura caso necessário. Já o artigo 30.04 determina que o gramado deve ser molhado uniformemente e estabelece limites gerais quanto ao momento em que isso pode ocorrer. Ainda que, segundo o regulamento, o mandante tenha a prerrogativa de escolher o modelo que lhe convenha (em geral, o nível de umidade do gramado que mais favoreça ao seu estilo de jogo), deve observar esses parâmetros mínimos e também a decisão do árbitro – que pode solicitar mudanças na programação inicialmente definida pelo clube mandante.

Passando do nível continental ao nacional, vale tomar como parâmetro a Premier League. O manual da liga também estabelece o limite de 30mm de altura da grama (regra K.20), mas é menos detalhista quanto ao procedimento para molhar o gramado; limita-se a dizer que o mandante pode fazê-lo no intervalo do jogo, desde que informe ao árbitro e ao adversário. Noutro plano, é interessante notar a vedação ao gramado sintético (regra K.24).

Ainda que apresentem abordagens distintas na regulamentação do tratamento do gramado, UEFA e Premier League claramente atribuem importância à altura do corte da grama – o que, na prática, influencia decisivamente na velocidade do jogo. Mas, além disso, ambos os regulamentos possuem disposições segundo as quais os clubes devem envidar esforços para assegurar que o campo esteja nas melhores condições possíveis para a disputa da partida. A direção da Premier League pode inclusive requisitar que qualquer clube adote medidas para melhoria caso entenda que a qualidade do gramado não esteja num nível adequado (regra K.21).

E no Série A do Campeonato Brasileiro, quais as regras?

O Regulamento Geral de Competições (“RGC”) da CBF para a temporada 2020 atribui ao clube detentor do mando de campo a adoção das “necessárias providências para que os pisos dos gramados estejam em condições normais de uso ou nas condições estabelecidas no REC”. A sigla REC corresponde a “Regulamento Específico da Competição”, e aquele atinente à Série A do Campeonato Brasileiro pouco ou nada diz sobre o tratamento do gramado: limita-se a autorizar o uso de grama sintética (art. 23) e dispor sobre o aquecimento dos atletas no campo de jogo antes do início da partida (art. 25).

Voltando ao RGC 2020, notam-se outras regras relacionadas ao tema:

  • compete ao delegado do jogo “verificar e relatar as condições gerais de regularidade e uniformidade do gramado” (art. 9º);
  • quando um estádio recebe evento estranho ao futebol, as condições do gramado devem ser posteriormente inspecionadas para liberação da partida seguinte, podendo o estádio ser vetado em caso de desconformidade (art. 14, §§ 9º e 10);
  • o mau estado do gramado constitui motivo de força maior que pode ensejar o adiamento de partida pelo árbitro quando ela se torne impraticável ou perigosa, ficando a mesma automaticamente remarcada para o dia seguinte às 15hs[2] (art. 17, §§ 2º e 3º e art. 19, II).

Não há, portanto, qualquer padrão quanto à altura da grama ou procedimentos para molhar o gramado. As referências a “mau estado do gramado” parecem muito mais dedicadas a solucionar casos como, por exemplo, aqueles em que chuvas torrenciais impedem a realização ou a continuidade da partida. Em essência, inexistem sinais de preocupação com as condições de terreno ideais para a prática de um jogo mais veloz, intenso e atrativo ao público.

Significa dizer que a bola não necessariamente rola da mesma forma em todos os estádios. O jogo no Allianz Parque não é o mesmo jogado em estádios com grama alta. Ainda piores são aqueles disputados em campos esburacados, onde a bola mais quica do que rola: a julgar pelo que constatamos no decorrer do campeonato, as referências do RGC a “regularidade e uniformidade do gramado”, “condições do gramado” e “mau estado do gramado” parecem não dizer respeito à sua qualidade geral em si, nem geram como efeito prático o incentivo necessário para que os mandantes apresentem seus campos sempre nas condições ideais para a prática de uma boa partida de futebol.

Evidentemente, as diferenças nos campos de jogo são um componente a mais no pacote de vantagens atribuído ao mandante de cada partida. A absoluta liberdade conferida na definição da altura e da umidade do gramado permite (ao menos em tese) que cada clube trate seu campo conforme lhe convier: algumas equipes preferirão atuar com grama baixa e úmida, num jogo mais rápido; outras optarão por condições contrárias, estabelecendo um ritmo mais lento.

De outro lado, no entanto, salta aos olhos a questão do espetáculo em si. Enquanto produto a ser exibido e consumido, não seria mais interessante estabelecer um padrão de gramado que permita que todas as partidas da competição sejam disputadas em ritmo intenso, incentivando a prática de um jogo mais interessante aos olhos do espectador? A Premier League pode ser tomada como ótimo exemplo nesse sentido.

Enfim, é evidente que a qualidade do jogo não se deve exclusivamente à condição do gramado; outros tantos aspectos técnicos, táticos, físicos e mesmo estruturais interferem diretamente nesse resultado. Ainda assim, o choque de realidade que muitas vezes sentimos ao nos depararmos com campos de jogo que propiciam um espetáculo mais dinâmico revela o impacto dessa variável para o futebol. E a comparação com alguns dos principais campeonatos do mundo não deixa dúvidas: há espaço para evolução em nossa regulamentação a fim de fazer dos gramados em perfeitas condições uma regra (não uma exceção, dependente da vontade de cada clube); ou, ao menos, para uma melhor interpretação acerca de conceitos como “regularidade e uniformidade do gramado”, “condições do gramado” e “mau estado do gramado”. Seria um importante passo para tornar o produto Campeonato Brasileiro cada vez mais atrativo ao público e, consequentemente, mais rentável – o que interessa a todos os clubes, sem distinção de mando de campo.

……….

[1] Estes devem atender às condições estipuladas pela FIFA no FIFA Quality Programme for Football Turf ou no International Artificial Turf Standard.

[2] Salvo na hipótese de determinação da Diretoria de Competições da CBF em sentido diverso.

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