O Lei em Campo vem trazendo ótimos artigos assinados por Andrei Kampff, Danielle Maiolini e Igor Serrano que dissecam as tradições elitistas, racistas e misóginas que, infelizmente, ainda grassam pelo esporte brasileiro. Recomendo a leitura desses textos e, a partir deles, retomo hoje a história do Direito Esportivo brasileiro por meio da análise da obra daquele que, conforme escrevi na última edição desta coluna, era o ideólogo, o “guru” intelectual tanto do Presidente Getúlio Vargas como de João Lyra Filho. Trata-se do jurista, historiador e sociólogo fluminense Francisco José de Oliveira Vianna. Assim como foi o maior responsável pela elaboração da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) durante o Estado Novo, este guru do estadonovismo também pode ser considerado um dos mentores da primeira lei geral do esporte de nosso país: o Decreto-lei n° 3.199, de 1941, do mesmo modo instituído durante o Estado Novo dos Tenentistas e de Getúlio Vargas.
Inicialmente, como já advertiu Andrei Kampff e sua coluna no UOL de 20-5-2019, é preciso entender que, ao passo que o autoritarismo era uma marca do Estado Novo, é inegável que o arcabouço normativo social, trabalhista, que Vargas imprimiu é marco de “conquistas importantíssimas para os menos favorecidos”. A própria CLT é prova viva desses avanços na vida de todos os brasileiros e que ainda perduram, mesmo que frequentemente atacados.
No esporte também pode se buscar na Era Vargas as fundações de um sistema estatal que apoiava a prática esportiva, a proteção do trabalhador esportivo e do financiamento público ao setor.
Não obstante isso, é preciso entender que a construção do arcabouço normativo trabalhista e esportivo no Brasil se apoiou em teses que já privilegiavam narrativas acadêmicas eugenistas e, em certa medida, racistas, e que esta é uma “chave central” para se entender a tentativa de tutela sobre o movimento dos trabalhadores e também da organização do esporte em nosso país. Em outras palavras, não há como conseguir entender racismo em campo e, conforme defendo em meu livro “Constituição e Esporte no Brasil” (Ed. Kelps), compreender a “autonomia tutelada” no esporte, sem se voltar ao pensamento de Oliveira Vianna.
E quem era este senhor? Segundo o Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro (DHB), editado pelo CPDOC da Fundação Getulio Vargas (FGV), Francisco José de Oliveira Vianna nasceu em Saquarema, RJ, em 1883 e até os anos 1930 tinha como ocupação principal a docência na Faculdade de Direito do Estado do Rio de Janeiro. Após esse período:
Em 1932, durante o Governo Provisório de Getúlio Vargas, passou a integrar as comissões técnicas do Ministério do Trabalho, criado no ano anterior sob a chefia de Lindolfo Collor, com a função de elaborar e sistematizar a legislação social e trabalhista brasileira, da qual foi o principal mentor. Permaneceu como consultor jurídico e “assessor técnico em economia social” do Ministério do Trabalho até 1940. Nesse período, em 1937, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras.
Nomeado ministro do Tribunal de Contas da União em 1940, exerceria esse cargo até sua morte em 1951. (CPDOC/FGV)
Continuando com esta biografia publicada pela Fundação Getulio Vargas, vemos isso que chamo a atenção do leitor pela importância ao entendimento do que falarei aqui depois:
Uma das idéias centrais sobre a qual se baseou a análise de Oliveira Viana, e que aparece ao longo de toda a obra, é a da absoluta incompatibilidade existente entre o liberalismo e a realidade brasileira. Oliveira Viana, afirmou que o povo brasileiro, por ainda ser, alegadamente, desprovido do senso de solidariedade social e, portanto, incapaz de se congregar para a defesa de causas de interesse coletivo, seria um povo atomizado, sem coesão interna e refratário à noção de espírito público.
[…]
As características do povo e sua estrutura social teriam sido necessária e inevitavelmente determinadas pelo meio (geografia e clima) e os grupos étnicos que nesse meio passaram a viver (miscigenando-se em graus variáveis). A influência recíproca entre esses dois fatores (meio e raça) teria gerado as características específicas do povo brasileiro. Em suma, as leis naturais moldariam a sociedade.
[…]
Por ilação, associou a elite dirigente com a raça alegadamente superior que seria a branca, caucasiana ou ariana. Essa elite social ariana, pelo exemplo do comportamento, da educação pública imposta às massas e dos mecanismos de coerção administrativa e jurídica exercidos sobre as classes inferiores, compostas em grande parte por mestiços e negros, iria progressivamente incutir-lhes os padrões morais, de disciplina e procedimento, característicos de uma cultura superior. Assim, a elite exerceria uma função civilizadora sobre o conjunto da população.
Esse verbete do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro da FGV, escrito por Luís Guilherme Bacelar Chaves, é bastante preciso em evidenciar o caráter elitista e eugenista do pensamento viannista.
Oliveira Vianna filiava-se à chamada “culturologia”, corrente sociológica estadunidense influente no início do Sec. XX, porém tentando reaproximá-la de um certo determinismo biológico, um darwinismo forçado.
Sua crítica ao culturalismo centrava-se basicamente no abandono desta corrente da sociologia às observações referentes às diferenciações etnográficas em termos de raça e influências geográficas. Ele chega a realizar uma releitura da obra de Ralph Linton, culturalista estadunidense notório, para nela dizer encontrar uma revisão daquela teoria e que evidenciaria o erro de se ter abandonado os critérios “fisiológicos, temperamentais e hereditários (raciais) das causas explicadoras da gênese e evolução das culturas” (OLIVEIRA VIANNA, Instituições Políticas Brasileiras, p. 81).
Na penúltima edição desta coluna, reproduzi uma parte importante que consta de um dos principais livros de Oliveira Vianna, Evolução do Povo Brasileiro, de 1956, de e que peço licença para citar novamente:
Três tendências revelei então na evolução da sociedade, na evolução da raça e na evolução das instituições políticas – e estas tendências persistem e continuam a se acentuar cada vez mais; socialmente – a tendência da população no sentido do oeste, para os platôs centrais; etnicamente – o aumento da massa ariana e a arianização progressiva dos grupos miscigêneos; politicamente – a marcha para a centralização político-administrativa, a crescente hegemonia da União.
O que se entende deste excerto e que devemos ter em mente para compreender a tendência elitista e racista na estrutura do esporte no Brasil é: (1) o problema central do Brasil estaria na sua composição étnica biologicamente não afeita à democracia, carecendo, portanto, de (2) uma arianização, visto que os povos anglo-saxônicos, eles sim, seriam melhor adaptados à vida política democrática. Desse modo, enquanto não modificada a composição racial brasileira, haveria necessidade de uma (3) centralização política em nome do Estado, do Governo Federal, de modo a “suspender” os valores liberais, as instituições democráticas, a autonomia social e do indivíduo. Só depois do fim da suspensão das liberdades, da democracia, o povo estaria preparado para a vivenciar a política com autonomia. Este projeto foi implantado durante o Estado Novo e teve indubitáveis reflexos na organização esportiva de nosso país.
Para os viannistas estariam as entidades esportivas e atletas prontos para a autonomia esportiva que João Lyra Filho já defendia em 1952 e que acabara de ser inscrita na Carta Olímpica? Estaria para eles o Brasil aberto ao protagonismo dos não-brancos no esporte?
Bom, vou continuar a buscar nossa história, teimar em ir ao “porão” do Direito Esportivo brasileiro nas próximas colunas. Acompanhe.