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O homem do Estado Novo para o esporte

Na última edição da coluna, comecei a falar acerca da história do Direito Esportivo, e o ponto de partida foi o nosso “pai fundador” da disciplina no Brasil: João Lyra Filho. Retomemos, pois, a narrativa sobre sua vida e obra. Para tanto, é importante entender que em 1930 chega ao poder, após uma revolução, uma nova camada dirigente do país, liderada por Getúlio Vargas e membros do movimento tenentista. Sua principal bandeira política era a ruptura com a chamada República Velha, ou Política do Café com Leite. A partir de 1937 instaura-se uma ditadura, tendo justamente Getúlio Vargas à frente, que se denomina Estado Novo.

E como ficou o esporte nesse processo revolucionário que se consolidava? A construção, consolidação e direção da tutela estatal do Estado Novo sobre o esporte a partir dos anos 1940 foi confiada a João Lyra Filho, um sportsman filho de família tradicional de políticos nordestinos radicada na capital do país. Era filho de um senador da República pelo Rio Grande do Norte, João de Lyra Tavares, o patrono da contabilidade brasileira.

Seu tio paterno, Augusto Tavares de Lyra – ex-governador do Rio Grande Norte, ministro da Justiça no governo Afonso Pena e depois também membro do Senado Federal –, foi igualmente personagem importante da República Velha. Notabilizou-se por representar o Congresso Nacional no esforço de pacificar o Rio Grande do Sul, então conflagrado pela Revolução de 1923, que opunha ximangos e maragatos, liderados por Borges de Medeiros, e seu opositor, Assis Brasil. Ao lado do primeiro estava o jovem deputado federal gaúcho de São Borja, Getúlio Vargas, que participou ativamente tanto das batalhas militares que ali se desenvolviam como dos esforços políticos para seu desfecho. Getúlio era um dos principais líderes borgistas e veio a suceder o caudilho com seu apoio como presidente do estado, em eleição ocorrida em 1927.

Depois, com o triunfo da Revolução de 30, o senador João Lyra de Tavares é etiquetado pelos novos ocupantes do poder como um dos “carcomidos”, não acompanhando o projeto dos revolucionários. Acaba falecendo no mesmo ano da Revolução.

Em suas memórias, João Lyra Filho (1963, pp. 160-161) revela que a situação de perseguição política a seu pai alcançou dimensão enorme, ao ponto de ter todos os seus bens bloqueados pelo governo revolucionário. Seu velório, meses após o triunfo de Getúlio, foi agravado na tristeza pelo fato de esposa e filhos não terem dinheiro para seu sepultamento.

Mas a atuação profissional ia direcionando a vida de Lyra Filho à trajetória de Getúlio Vargas. Em uma tentativa de contemporizar sua relação com Vargas e a contradição referente à recém perseguição a seu pai que lhe foi um verdadeiro guia, assim se justificava Lyra Filho:

“Meu pai figurou no rol dos carcomidos e as angústias que a mudança de ordem fêz crescer no seu ânimo também apressaram sua morte. Quem sabe se as provas espontâneas de estima que o presidente me concedeu anos depois não constituíram uma reparação ao mal involuntário por êle causado ao destino de mau pai?”

Como ele mesmo discorre, a mudança de posição quanto a Vargas tem a ver com o desenrolar da política nacional: “Mas foi a própria Revolução de Trinta que motivou a mudança das perspectivas de meu destino”. Sendo assim, após a morte do pai, João Lyra Filho foi convocado pelo novo mandatário para a feitura de sua própria declaração de renda, algo que representava extrema confiança e intimidade. Na verdade, os dois já se conheciam desde a época em que Getúlio fora ministro da Fazenda, no último governo da República Velha. Servia ao presidente Washington Luís, justamente quem por ele viria depois ser deposto, em 1930. Lyra Filho era responsável pela implantação do projeto de cobrança do imposto sobre a renda perante o Ministério da Fazenda desde aquela época.

O chamado para sua primeira tarefa de apoio à Revolução foi por ele assim descrito:

“Quando estive a sós com o presidente Getúlio, pela primeira vez, foi aquêle dever de ofício tributário que me levou ao Catete. O presidente havia recomendado a ida de um servidor do Fisco ao Palácio para ajudá-lo a preencher a declaração que lhe cumpria como contribuinte; o servidor a ser incumbido dessa tarefa, segundo seu desejo, deveria ser eu mesmo.”

Na seara esportiva, Lyra Filho começa como bibliotecário do Botafogo do Rio de Janeiro, onde assumiu postos importantes até chegar à Presidência, entre 1941 e 1942. Participou das batalhas da chamada Cisão do Esporte dos anos 1930, ao lado de Rivadávia Meyer, portanto, no campo do Conselho Nacional de Desportos (CND) e na oposição à profissionalização dos esportes então defendida pelo grupo de Arnaldo Guinle.

Ainda que Manoel Tubino tenha escrito reiteradas vezes que tenha sido ele o autor do texto do Decreto-lei 3.199, de 1941, que instituiu a primeira lei geral do esporte no Brasil, o próprio João Lyra Filho nega a autoria, conforme consta de seu livro “Introdução ao Direito Desportivo”:

O desporto nacional é protegido por um sistema consolidado na expressão de três leis distintas: o Decreto-lei 3.199, de 14 de abril de 1941, que estabeleceu as bases de sua organização; o Decreto-lei 5.342, de 25 de março de 1943, que instituiu normas para sua disciplina; e o Decreto-lei 7.674, de 25 de junho de 1945, que prescreveu os princípios relativos à sua proteção. Coube-me participar, diretamente, da elaboração dos dois últimos – quanto à disciplina e à proteção.

Lyra Filho ocupou funções importantes na área das finanças públicas, bancos estatais e, finalmente, tornou-se ministro do Tribunal de Contas do Estado da Guanabara. Foi também professor universitário e reitor da Universidade do Estado da Guanabara, futura UERJ.

Ainda que tenha permanecido à frente do CND no governo Dutra, Lyra Filho não deu pistas mais claras sobre não ter participado do segundo Governo Vargas na área esportiva. Consta de suas memórias a seguinte passagem a respeito da situação:

“Nenhum contato pessoal tive com o presidente a partir de 1946. Quando ocorreu sua volta ao poder, no exercício do qual se matou, já eu não era presidente do Conselho Nacional de Desportos nem diretor da Caixa Econômica. Sem desejar enxerir-me e sem merecer chamado, cioso do meu domínio restrito, sua presença cresceu no silêncio do meu reconhecimento.”

Suas contribuições na área esportiva continuam até o final da vida, porém somente por meio de seus livros.

João Lyra Filho morreu em 1988, no mesmo ano da promulgação da Constituição Federal que consagrou a autonomia esportiva e rompeu com o regime de tutela estatal sobre o esporte que ele havia implantado. É possível que tenha verdadeiramente visto ali o realizar de seu sonho suspenso: a autonomização das entidades esportivas brasileiras.

E é acerca da dubiedade de Lyra Filho no que concerne ao tema da autonomia esportiva que retomaremos o assunto na próxima coluna.

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