Venho tentando estabelecer nas últimas edições da coluna as bases históricas do Direito Esportivo no Brasil e nosso foco de análise passou a ser seu “Pai Fundador”, o Professor João Lyra Filho. Já vimos algo sobre sua trajetória de vida, acerca das polêmicas intelectuais com que já envolveu e a resistência que ofereceu à Ditadura Militar de 1964 enquanto Reitor da UEG, hoje UERJ. Pudemos entender como sua história pessoal e política foram lhe envolvendo com o esporte e, em próximas edições, ainda vou trazer novos elementos acerca desse assunto.
Contudo, como já havia começado a falar na última coluna, João Lyra Filho era bastante influenciado por um jurista e sociólogo brasileiro chamado Oliveira Vianna. Há muito da obra deste autor no que Lyra Filho trouxe para o Direito Esportivo. Comecemos por uma passagem conhecida e que nosso pioneiro jusesportivista transcreveu em seu “Introdução ao Direito Desportivo”:
Há, por exemplo, um largo setor do nosso direito privado que é inteiramente costumeiro, de pura criação popular, mas que é obedecido como se fosse um direito codificado e sancionado pelo Estado. Quero me referir ao direito que chamo esportivo e que só agora começa a ser “anexado” pelo Estado e reconhecido por lei. Este direito, cuja Charta (para empregar uma expressão de Malinowski) se estende pelo Brasil inteiro, é de autêntica realização popular e é aplicado com um rigor que muito direito escrito não possui. Organizou instituições suas, peculiares, que velam pela regularidade e exação dos seus preceitos. Tem uma organização também própria – de clubes, sindicatos, federações, confederações, cada qual com administração regular, de tipo eletivo e democrático; e um Código Penal seu, com a sua justiça vigilante e os seus recursos, agravos e apelações, obedecidos uns e outros, na sua atividade legislativa ou repressiva, como se tivessem ao seu lado o poder do Estado. Direito vivo, pois.
Dominados pela preocupação do direito escrito e não vendo nada mais além da lei, os nossos juristas esquecem este vasto submundo do direito costumeiro do nosso povo, de cuja capacidade criadora o direito esportivo é um dos mais belos exemplos. Criadora e organizadora — porque o sistema de instituições sociais que servem aos esportes, saídas do seio do povo — da massa urbana, como uma emanação sua — traz impressa a sua marca indelével e oferece um aspecto de esplêndida sistematização institucional. (OLIVEIRA VIANNA. Instituições políticas brasileiras. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 1999, p. 45)
A citação é longa, mas fundamental para se entender o Direito Esportivo brasileiro. A primeira tiragem do livro Instituições Políticas Brasileiras saiu em 1949, um pouco antes do lançamento da primeira e única edição da obra inaugural “Introdução ao Direito Desportivo”, de Lyra Filho. E, como já disse, nesta obra está reproduzida a passagem.
No texto citado é possível distinguir uma linha bastante avançada do entendimento do autor acerca do Direito Esportivo como um fenômeno de novo tipo, algo mais próximo do que hoje alcunhamos por “pluralismo jurídico”. Mas seria esta mesma a preocupação de Oliveira Vianna? Vou deixar para responder isso na próxima coluna, porque, antes, perguntaria se a influência deste sociólogo estaria restrita à nossa área? Obviamente que não.
Assim como foi se mostrando como fundamental para a construção do direito voltado ao esporte em nosso país, Oliveira Vianna também poderia ter visto como “ideólogo” de um parlamentar que viria a assumir a Presidência da República não muito tempo depois.
Mesmo que bastante devotado ao que se conhece por “corrente castilhista”, justamente as ideias de Júlio de Castilhos, antigo caudilho do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, ainda Deputado Federal exercendo mandato na capital da República – Rio de Janeiro, se aproxima da obra de Francisco José de Oliveira Vianna para alargar sua compreensão acerca do Brasil. O sociólogo e jurista fluminense atrai a atenção do parlamentar para uma compreensão pós-determinista-evolucionista (ou ao menos assim autorreferenciada) e não dogmática da sociologia política. Este encantamento ganha destaque em um de seus pronunciamentos na Câmara dos Deputados em 1925:
Ninguém melhor que Oliveira Viana, cujas idéias compendiamos em algumas destas sugestões, com a esclarecida visão do sociólogo, apreendeu a evolução do povo brasileiro. Fracassaram as generalizações apressadas da sociologia, pretendendo aplicar as leis gerais da evolução, como um paradigma que todos os povos tivessem de seguir, na sua marcha. Esqueceram-se que a ação modeladora do meio cósmico, da composição étnica e dos fatores externos tinham que variar o processo do seu desenvolvimento, que sofre avanços e recuos, desvios e contramarchas, conforme a atuação preponderante desses agentes. Foi preciso que sobreviesse a plêiade brilhantíssima dos discípulos da Escola de Le Play, para, no estudo pormenorizado dos pequenos núcleos sociais, apanhar toda a infinita variedade da vida.
Oliveira Vianna notabilizou-se por uma vasta produção intelectual lançada no início e meados do séc. XX, centrada na observação sociológica e análise jurídica a partir de referenciais próximos ao das escolas culturalistas (determinismo cultural antropológico), porém ainda com forte apoio em teses deterministas biológicas ou espaciais. Sua crítica ao culturalismo centrava-se basicamente no abandono desta corrente da sociologia às observações referentes às diferenciações etnográficas em termos de raça e influências geográficas. Ele chega a realizar uma releitura da obra de Ralph Linton, culturalista estadunidense notório, para nela dizer encontrar uma revisão daquela teoria e que evidenciaria o erro de se ter abandonado os critérios “fisiológicos, temperamentais e hereditários (raciais) das causas explicadoras da gênese e evolução das culturas” (OLIVEIRA VIANNA, idem, p. 81).
Desse modo, chamo a atenção para as amigas e os amigos que acompanharam o texto até aqui para esta primeira crítica à Oliveira Vianna: o autor, mesmo que leitor de sociólogos de nova geração que já não tinha os critérios biológicos como fundamentais para os estudos culturais, não deixou de considerar os aspectos raciais como determinantes à formação cultural. Portanto, Oliveira Vianna àquela época em que escreveu “Instituições políticas brasileiras”, 1949, ainda se aferrava a um determinismo social evidente.
E o esporte nesta história? Ora, se este é o principal referencial teórico de João Lyra Filho, que citou o sociólogo em várias partes de “Introdução ao Direito Desportivo”, aqui já haveria uma clara demonstração de ligação entre Vianna e nossos estudos jusesportivos. Mas repare em algo ainda pouco abordado na literatura de nossa área: o determinismo antropológico de Oliveira Vianna, seu apego à pré-disposição cultural de cada raça, é também um fator que influenciou o início da atuação esportiva no Brasil, já então fortemente marcada pelo racismo latente, mesmo após a abolição da escravidão.
Muito complexo? Pois na próxima coluna continuo a mostrar o quão foi importante a influência viannista no Direito Esportivo brasileiro, inclusive para a não efetivação da “autonomia esportiva”.