Por Manuela Parente Rodrigues de Carvalho
2020 deveria ter sido o tão sonhado ano olímpico. Atletas, treinadores e todos os envolvidos começaram o ano empolgados com o evento que ocorreria no período de 24 de julho a 9 de agosto de 2020. Contudo, devido a pandemia que tomou o mundo com preocupações, lágrimas e muita dor, não só demasiadas vidas foram levadas, como este sonho teve que ser colocado de lado, no momento.
Mas a verdade é que para muitos, o impacto deste adiamento, apesar de inevitável, se traduziu numa forma de morte anunciada dado que, tomando critérios de idade e preparação, tal como explica Fabíola Molina, atual Secretária Nacional de Educação, Esporte Lazer e Inclusão Social do Brasil “o adiamento pode afetar tanto os atletas mais novos quanto os mais velhos… A verdade é que atletas mais novos ganharam um ano a mais de experiência. Já para atletas mais velhos pode ser prejudicial. Em alguns casos um ano pode, de fato, fazer diferença na performance e vai afetar diretamente o resultado”, enfatiza ainda a também ex-nadadora olímpica.
Mas para além do fator idade, durante a pandemia, as condições para os treinos eram diferentes de caso para caso. A nadadora Naná Almeida, que treina incessantemente para conseguir uma vaga olímpica, acredita que o adiamento de Tóquio 2020 foi benéfico e justo para os atletas conseguirem ter o mesmo tempo de treinamento: “tinha muita essa diferença de quem conseguia treinar e de quem não conseguia”, uma situação ampliada não só pelas diferentes dinâmicas de treinamento exigidas por cada modalidade, como pelas regras de luta contra a pandemia de cada país: “pelo menos, aqui, no Brasil, até junho, a gente não podia treinar em lugar nenhum… Então como se vai para uma olimpíada sem treinamento?” questiona a atleta de alto rendimento do Clube de Regatas do Flamengo. “A gente treina a vida inteira para isso”, conclui Naná, reforçando a importância do esforço pessoal para esse objetivo de vida.
Já no que diz respeito ao peso da idade, Naná Almeida acredita que é um fator muito complicado, em especial, no caso dos atletas da natação que foram obrigados a interromper os seus treinos devido à pandemia. De facto, explica a nadadora “tem gente que já tinha programado nadar até 2020 para [depois] criar sua família e fazer coisas que são pós-carreira de atleta”, mas para além disso, mesmo que estes planos possam ser adiados, Naná Almeida enfatiza a questão da fisiologia: “acho que é uma coisa que complica um pouco, até porque o esporte tem a sua data de vencimento.”
Foi a primeira vez em que uma edição dos Jogos Olímpicos foi adiada por causa de uma pandemia. Durante a Era Moderna, só as duas Guerras Mundiais levaram a que três edições – 1916, 1940 e 1944 – dos jogos tivessem de ser canceladas. Mas no caso deste adiamento, não só o cenário é diferente, como ainda pode haver pontos positivos como consequência da decisão do Comité Olímpico Internacional. Tal como avalia a atual Secretária da Autoridade Brasileira de Controlo de Dopagem “de facto, não vai ficar uma lacuna nesse ciclo olímpico: inúmeros atletas cuja geração encerraria nesse ciclo estão podendo atuar. Se não houvesse o adiamento e fosse só o cancelamento, eles talvez não tivessem essa oportunidade de realizar esse sonho”. Porém, mesmo podendo participar, a verdade é que os atletas vão ter de superar um grande desafio: “realizar esses jogos ainda em meio a situação atual é um sinal do próprio valor do esporte, de coragem, de superação, acho que nesse momento o movimento olímpico se faz muito ativo e presente na sociedade de uma maneira geral”, completa Luisa Parente.
No entanto, na experiente visão da treinadora Georgette Vidor, a mudança foi negativa porque “adiar um ano do planejamento é muito difícil, esticar um ano é absolutamente inviável. Eu não sei nem como os treinadores estão fazendo essa magia…” De facto, aos olhos da coordenadora de Ginástica Artística do Flamengo, o replanejamento é um imenso desafio e Georgette aguarda, expectante, os resultados dos atletas: “vamos ver como será a performance com que eles vão se apresentar. Esta temporada foi muito difícil para todo e qualquer atleta de todo e qualquer esporte.” No que diz respeito a idade, a treinadora acredita ter vantagens e desvantagens: “por exemplo, uma atleta que estava lesionada teve tempo tranquilo para se recuperar e, agora, ela retoma, pelo que não está tão em desvantagem quanto aquelas que treinaram virtualmente”. Ainda assim, se para essas atletas isso foi uma vantagem, “para a grande maioria foi uma desvantagem esse adiamento”, conclui Georgette Vidor.
Com ou sem Olimpíadas os treinamentos não podiam parar. Todos os atletas de alto rendimento tiveram de se adaptar a essa mudança e passaram a treinar à distância durante o período de confinamento. Para alguns, o processo foi mais fácil, para outros, como é o caso da nadadora Naná Almeida, mais difícil pois sem acesso à piscina, a atleta teve que focar no treino físico e funcional. E essa adaptação não foi só para atletas: também os treinadores tiveram que se reinventar. Tal como Georgette Vidor, que sentiu da pandemia lhe impôs desafios criativos com exigências levadas ao extremo de forma a suprir as necessidades físicas e motivacionais dos atletas que orienta.
Doping
No ano de 2011 foi criada a Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD), mas há muito tempo já se falava sobre o Doping. Quase 50 anos antes era realizado o primeiro teste no Brasil em uma partida de futebol. De lá para cá, o controlo vem se aperfeiçoando por meio de um trabalho excecional que, no momento, está sendo realizado pela Secretária da ABCD, Luisa Parente, e sua equipa.
Todas as atividades esportivas sofreram alterações com a pandemia. Com a ABCD não foi diferente, o órgão de controlo de dopagem também teve que se adaptar. Luisa Parente, responsável pela ABC destacou como lidou com a paralisação das atividades esportivas durante a pandemia: “inicialmente, recebemos as orientações da Agência Mundial Antidopagem (WADA), traduzimos e repassamos para toda equipa da ABCD e comunidade esportiva envolvida, incluindo os oficiais de controlo de dopagem, além disso também tiveram ajustes no plano de distribuição de testes”, explica a ex-atleta.
Ainda assim, foi necessário haver uma mudança no planejamento inicial, a secretária explicou que “quantitativamente e qualitativamente, durante o período mais crítico entre abril e maio de 2020, os controlos foram afetados. Após essas adaptações seguimos por uma regularidade em um ritmo que ainda não estabilizou, como antes da pandemia.”
Como resultado, tanto interna, quanto externamente, ocorreram mudanças. Se internamente a equipa teve de se adaptar para reuniões em plataformas virtuais, externamente os oficiais foram orientados com os protocolos de distanciamento e higiene de acordo com a WADA, a Anvisa e o Ministério da Saúde. Os testes já estão sendo realizados seguindo todos os protocolos que a COVID-19 implica pelo que “foi preciso adquirir os EPI’s (Equipamento de Proteção Individual) para que os oficiais atuassem com segurança e também transmitissem essa segurança aos atletas na situação de um controle”, afirma a secretária da ABCD.
E, de facto, o reconhecimento por parte dos atletas na segurança do cumprimento dos protocolos anti-COVID-19 já é notório na volta dos controles: “eles retomaram os testes de Doping com toda precaução. Já era só a gente que mexia nos testes e continua sendo assim, mas com uma distância entre nós e os agentes, seguindo ambos os protocolos. Então é muito importante eles terem voltado porque estamos em um ano olímpico”, avaliou a nadadora Naná Almeida, atleta do Flamengo.
Cumplicidade treinador-atleta
A boa relação entre treinador e atleta é fundamental para bons resultados, ainda mais nesse momento difícil de pandemia. Georgette Vidor tinha acabado de retornar ao Flamengo como coordenadora de Ginástica Artística, quando os treinos foram paralisados por causa da COVID-19 e mal teve tempo de conhecer as atletas pessoalmente. Mas os anos de experiência na função ajudaram na construção dessa preciosa relação: “elas ainda estavam me conhecendo, o elo afetivo delas era com os outros treinadores. Eu procurava motivá-las. Íamos estabelecendo metas e elas foram se aproximando, mas foi tudo à distância, porque, no dia a dia, elas tinham tido muito pouco tempo comigo”, relata a treinadora olímpica.
Fabíola Molina, secretária da SNELIS acredita que “o momento mostrou o que estava indo bem e o que não estava”. Da sua experiência como nadadora olímpica, Fabíola sabe que “é preciso ter essa confiança mútua para poder falar como está se sentindo” e, por essa razão, assume que “os atletas mais bem-sucedidos são os que têm uma melhor relação de compreensão com os treinadores” e, face a esta realidade, os momentos de crise são cruciais para determinar a solidez dessa a relação: “online ou não, [a crise] vai mostrar qual era o relacionamento e o papel que o treinador tem na construção dos atletas”, finaliza a ex-nadadora olímpica.
No caso de Naná Almeida, a relação da nadadora com seu treinador foi imprescindível. A força desta ligação acabou por fazer com que ele se tornasse um psicólogo e a ajudasse em dias que se sentia menos motivada para treinar, essencialmente tentando entender o que estava acontecendo. Nestas baixas de força anímica, chegava a haver mudanças da estratégia do plano de treinamento: “às vezes, ele até falava ‘Tudo bem, não treina hoje, faz o que dá’. Outras ele dizia ‘Vamos lá, faz mais coisa, vamos fazer algo diferente hoje’”. Na verdade, o papel do treinador foi, em muitos casos, incontornável. Para Naná, até insubstituível, acima de tudo porque “ele entendeu um pouco o que eu estava passando, foi uma coisa muito importante que ajudou por demais”, finaliza a nadadora.
Mas as perdas físicas e mentais foram recorrentes. A rotina mudou e o corpo também. Foi preciso tomar cuidado para não desandar completamente. Como tantos outros, Naná contou também com apoio psicológico, que foi fundamental naquele momento: “volta e meia ligava chorando e pedindo ajuda, foram coisas que me afetaram muito. Já afetam diariamente, mas na pandemia só aumentou.” Mesmo com tantas dificuldades Naná enxerga positividade: “é sempre uma maneira de crescimento, de aprendizado, de valorização de alguns profissionais, das pequenas coisas.”
Impacto do confinamento
Ninguém nunca viveu algo parecido com o confinamento de 2020 e a certeza é que os impactos ainda virão, a longo prazo. Fabíola Molina acredita que há pessoas que, apesar de ficarem sem saber como funcionariam os treinos online, se adaptam melhor a estas mudanças de rotinas desportivas de alto rendimento. E a secretária da SNELIS explica porque: “nosso nível de exigência é alto”, assume e diz que o truque é saber “como você se permite entender que está todo mundo passando pela mesma coisa.”
A ex-nadadora também considera que, também fruto das circunstâncias individuais, a parte física foi bastante afetada de acordo com cada modalidade, sofrendo alguns atletas mais do que outros: “havia quem tivesse mini estúdios, academias e conseguia treinar com outra pessoa, então não perderam de forma tão significante essa força física”.
Foi preciso que atletas, treinadores e confederações se reinventassem para conseguir buscar forças, durante o ano de 2020. A nível de desempenho dos atletas e da energia que os Jogos Olímpicos têm Fabíola acredita que serão diferentes: “quem está envolvido com esporte, já está treinado a superar dificuldades, então ao nível da performance, e principalmente, em termos de calor humano, infelizmente, não deve ser da mesma maneira”, concluiu Fabíola.
De facto, não é demais referir quanto foi preciso que atletas, treinadores e confederações se reinventassem para, durante o ano de 2020, conseguir buscar forças emocionais de forma a tentar manter, o mais possível, o nível de desempenho e dessa energia que as Jogos exigem. Por outro lado, a secretária da SNELIS, da sua experiência de atleta olímpica, acredita que desempenho e performance serão diferentes durante as provas, isto porque “quem está envolvido com esporte, já está treinado a superar dificuldades, porém, ao nível da performance, e principalmente, em termos daquele calor humano, infelizmente, não deve ser como em edições anteriores”, concluiu Fabíola Molina.
Retomada aos treinos
Com a situação da pandemia controlada, em meados de junho, com muitos cuidados e seguindo os protocolos de distanciamento e higiene, as atividades foram retomadas no Brasil. Apesar do entusiasmo, Georgette Vidor, coordenadora de Ginástica Artística relatou a preocupação com a volta ao ginásio e a dinâmica que antecedeu: “tivemos que ensinar aos atletas a usarem máscara, pois a Ginástica foi o único esporte a usar. Só abrimos mão quando a situação melhorou e, mesmo assim, só depois da preparação física.” Acrescido a isso, o fato de muitos atletas virem de comunidades do Rio de Janeiro foi motivo de alerta, obrigou ainda a uma maior intensificação dos esforços de ativação de todos os protocolos de higiene: “muitos vêm de transporte público… A gente tenta ensiná-los, aqui dentro, as responsabilidades que eles devem ter lá fora para não precisarmos parar, novamente”, enfatiza a responsável pela modalidade.
A retomada pode variar de acordo com a modalidade. Esportes individuais são mais fáceis de serem controlados, já os coletivos “demandam maiores cuidados”, explica Fabíola Molina. Isto porque “cada competição e cada clube está adotando essas medidas para realmente ter essa segurança. É importante ter critérios justos, mas como tudo é muito novo, algumas situações são inesperadas, por isso, ter atenção na Saúde e continuar seguindo os protocolos é fundamental”, ressalta a representante da SNELIS.
Depois de meses em casa, o retorno aos treinamentos foi compensatório, sempre com medidas e precauções, como é lógico, aos poucos os atletas puderam voltar a rotina. Naná detalhou a volta às piscinas e contou que para além de uma triagem diária à entrada no centro de treinamento do Time Brasil, “com oxímetro e medição da temperatura, também cheiramos pó de café para ver se conseguimos sentir o cheiro”, também são realizados testes duas vezes por mês. Para além do que só estão autorizadas a permanecer no local pessoas próximas de fazer o índice olímpico então “está bem rígido e é bom a gente ter um lugar que só vai atleta”, descreve Naná.
Consequências
Por fim, o que fica depois de passarmos por um período tão devastador? O que os atletas ganharam e perderam com a pandemia? Georgette Vidor acredita que o mundo inteiro perdeu e que o ensinamento é “pensar no que foi possível tirar dessa experiência”. Para a coordenadora da equipa de Ginástica Artística do Flamengo, da experiência fica que: “que tudo, de uma hora para outra, pode mudar. O mundo todo viveu isso e vai ficar marcado para o resto da vida. No Desporto, perdemos tecnicamente, mas temos que pensar o que a gente conseguiu ganhar mesmo com esse problema todo”, reflete a treinadora.
E depois, o lado emocional que foi preciso trabalhar duramente “para superar as dificuldades”, como traz a ex-atleta Fabíola Molina. O retrato geral e profundo era de insegurança, principalmente em termos das definições de calendário: “você tem um objetivo e se você não sabe quando vai ser, você fica muito perdido”. Mas o lado emocional não foi só afetado pelo aspecto físico e de calendário: lado financeiro também pesou e muito. A manutenção das responsabilidades econômicas e familiares face à falta de receitas afetou profundamente – e, em muitos casos, irremediavelmente – vários atletas que contavam com apoios e patrocínios: “muitas empresas não vão poder apoiar mais os atletas que antes apoiavam, porque, hoje, elas estão falidas ou sem dinheiro. E esse aspecto econômico interfere demais em toda a dinâmica do Desporto”, conclui a secretária do SNELIS.
Crédito imagem: Reprodução
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Manuela Parente Rodrigues de Carvalho, graduanda em Ciências da Comunicação pela Universidade Fernando Pessoa, em Portugal. Foi monitora de comunicação do Projeto PAIS do Clube de Regatas do Flamengo. Atualmente, é estagiária de comunicação e gestora do Teqball no Académico Futebol Clube, no Porto.