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O impacto da não regulamentação da Multi Club Ownership (MCO) nas cláusulas de divisão de direitos econômicos de atletas profissionais de futebol

Tina Malenica

Felipe Ramos Carvalho

I. INTRODUÇÃO

Multi Club Ownership (MCO), como o próprio nome sugere, refere-se à situação em que um único proprietário detém vários clubes. Em outras palavras, é um requisito objetivo. Nos casos em que dois ou mais clubes compartilham o mesmo proprietário, a MCO está configurada.[1]

Importantes conglomerados de MCO, como o City Football Group e o Red Bull Group, consolidaram sua presença global ao expandir seus clubes por diferentes continentes. Notável é a crescente de MCOs entre os brasileiros, um fenômeno atribuído à implementação da Sociedade Anônima do Futebol (SAF) pela Lei 14.193/2021 (Lei SAF). Nesse contexto, nos últimos anos, é possível mencionar: a venda de 90% da SAF Bahia; 90% da SAF Cruzeiro; 90% da SAF Coritiba; 90% da SAF Botafogo; e 70% da SAF Vasco para empresas estrangeiras.[2]

Em várias circunstâncias, as vantagens dos clubes de MCO tornam-se evidentes em comparação com clubes não-MCO. Este artigo tem como objetivo explorar como a ausência de regulamentação do MCO pode potencialmente minar a eficácia das cláusulas de de divisão de direitos econômicos, um mecanismo comumente utilizado no futebol profissional, sem causar a influência de terceiros, o que é proibido pela FIFA.

II. EXAMINANDO O IMPACTO DA NÃO REGULAMENTAÇÃO DA MULTI CLUB OWNERSHIP (MCO) NAS CLÁUSULAS DE DIVISÃO DE DIREITOS ECONÔMICOS DE ATLETAS PROFISSIONAIS DE FUTEBOL

Como amplamente estabelecido na jurisprudência do Tribunal de Arbitragem do Esporte (Court of Arbitration for Sport – CAS), uma uma taxa de participação nos lucros está intrinsecamente ligada à taxa de transferência real obtida pelo novo clube ao transferir um jogador para outro clube.[3] Consequentemente, o clube anterior pode se deparar com uma situação em que não recebe uma quantia justa da taxa de transferência. Isso pode ocorrer quando a taxa de transferência acordada entre o novo clube e um terceiro clube não está alinhada com o valor de mercado do jogador. Nas circunstâncias mais desfavoráveis, o clube anterior pode ficar sem nenhuma parcela da taxa de transferência, principalmente devido à transferência do jogador sem qualquer taxa de transferência associada.

Dentro do arcabouço legal do futebol, não há uma regra que proíba a venda de um jogador abaixo de seu valor de mercado. A ausência de tal regulamentação também é justificada pela lógica inerente de que um clube, ao receber várias ofertas para a venda de um jogador, optaria pela que maximiza sua rentabilidade. Embora isso seja válido para clubes tradicionais (clubes não-MCO), sua aplicabilidade no âmbito de clubes MCO está aberta a discussão. Apesar de receber uma oferta mais lucrativa, um clube MCO pode optar por transferir o jogador para um clube “irmão” por uma taxa de transferência inferior ou nula, potencialmente causando prejuízos financeiros ao clube anterior do jogador, que tem direito a uma porcentagem específica por meio do mecanismo de divisão de direitos econômicos.

Para compreender completamente os possíveis efeitos adversos da ausencia de regulamentação da MCO nos clubes e na integridade global do futebol, é necessário inicialmente compreender a natureza das cláusulas de divisão de direitos econômicos, examinando tanto a frequência de sua inclusão em acordos de transferência quanto os possíveis montantes a que podem se estender. De acordo com informações do Relatório Global da FIFA (2022), foi revelado que a utilização de cláusulas de divisão de direitos econômicos está em ascensão, especialmente em transferências que também envolvem uma taxa de transferência padrão. No ano de 2022, cerca de 58,0% de todas as transferências envolvendo valores incorporaram tal cláusula.[4]

Além disso, em aproximadamente dois terços dos casos, os clubes concordaram com uma cláusula de divisão de direitos econômicos limitada a um máximo de 20% da taxa de transferência subsequente do jogador.[5] Vale destacar, ainda, que as cláusulas de divisão de direitos econômicos prevalecem em transferências de jogadores mais jovens, com substanciais 72,8% dos acordos de transferência para jogadores com menos de 18 anos.[6]

Esta porcentagem torna-se vital para a sobrevivência de certos clubes, especialmente aqueles incapazes de reter jovens talentos, sendo antes compelidos a vendê-los em uma idade precoce por uma taxa de transferência reduzida.

A natureza e o propósito das cláusulas de divisão de direitos econômicos foram esclarecidos em várias decisões do Tribunal de Arbitragem do Esporte (CAS). Por exemplo, na decisão CAS 2010/A/2098 Sevilla FC v. RC Lens, datada de 29 de novembro de 2010, o Painel expressou a seguinte perspectiva: “A cláusula de divisão de direitos econômicos contém um mecanismo conhecido no mundo do futebol profissional: seu propósito é ‘proteger’ um clube (o ‘clube antigo’) que transfere um jogador para outro clube (o ‘novo clube’) contra um aumento inesperado, após a transferência, no valor de mercado dos serviços do jogador; portanto, o clube antigo recebe um pagamento adicional no caso de o jogador ser ‘vendido’ do novo clube para um terceiro clube por um valor superior ao pago pelo novo clube ao clube antigo.”

Além disso, o Painel expressou o seguinte: “Em contratos de transferência, por esse motivo, uma cláusula de divisão de direitos econômicos é combinada com a disposição que define a taxa de transferência: globalmente, as partes dividem a contraprestação a ser paga pelo novo clube em dois componentes, ou seja, um montante fixo, pago na transferência do jogador para o novo clube, e um montante variável, teórico, a ser pago ao clube antigo no caso de uma subsequente ‘venda’ do jogador do novo clube para um terceiro clube.”

Portanto, quando um clube MCO vende deliberadamente um jogador abaixo do valor de mercado para um clube “irmão”, o clube anterior é privado da parcela proporcional da taxa de transferência subsequente que lhe é devida devido ao investimento em treinamento e desenvolvimento do jovem jogador, aí incluídos o mecanismo de solidariedade e compensação por treinamento estabelecidos pela legislação aplicável. Embora a taxa de transferência acordada seja frequentemente considerada dentro do âmbito da liberdade contratual, isso é verdade apenas até certo ponto. Isso se torna especialmente evidente quando ” motivações superiores ” entram em jogo, potencialmente comprometendo o equilíbrio dentro do sistema de futebol..

A preocupação central reside em como um clube anterior pode assegurar seu direito a uma parcela justa e merecida da taxa de transferência subsequente. O que constitui uma redação eficaz de uma cláusula de divisão de direitos econômicos? A inclusão de disposições, como restringir a venda futura de um jogador abaixo de um valor designado ou limitar transferências para clubes dentro do mesmo grupo MCO, violaria o Artigo 18bis do Regulamento sobre o Estatuto e a Transferência de Jogadores (RSTP) da FIFA e se enquadraria na área proibida de influência de terceiros. Como destacado nos Comentários da FIFA ao RSTP[7], as cláusulas que se enquadram na categoria geralmente considerada em violação do Artigo 18bis incluem obrigações de aceitar uma oferta por uma taxa de transferência predefinida e a capacidade de determinar em conjunto o valor de mercado do jogador com o novo clube.

A necessidade de abordar a questão anterior não teria surgido se a MCO fosse globalmente regulamentada e reconhecida como um fenômeno distinto, tratado de maneira diferente dos clubes tradicionais.

Vamos imaginar um cenário hipotético em que uma “estrela” é transferida entre dois clubes pertencentes ao mesmo grupo MCO, possivelmente por uma taxa abaixo de seu valor de mercado ou até mesmo sem qualquer taxa de transferência. Notavelmente, o clube anterior do jogador detém uma certa porcentagem dessa taxa de transferência, por meio do direito de participação nos direitos econômicos. A questão relevante surge: Quais ferramentas estão disponíveis para o clube anterior à medida que a transferência se desenrola e qual é a base legal para possíveis ações judiciais? Infelizmente, não há muito o que ser feito.

Dado que as regulamentações para MCO não são globalmente padronizadas, a venda de um jogador abaixo do valor de mercado para um clube irmão não viola explicitamente o RSTP e o Regulamento nacional de transferência de jogadores, pois atualmente não existem regulamentações específicas que abordem transações deitas por MCO. Como resultado, o clube anterior se vê sem bases legais sólidas para buscar sua parcela legítima da taxa de transferência em tais circunstâncias.

Por exemplo, com base em informações do Transfermarkt[8] e detalhes divulgados em um artigo recentemente publicado[9], os jogadores Adryelson e Lucas Perri foram transferidos do SAF Botafogo para seu clube irmão, FC Lyon, durante esta janela de transferências por um preço abaixo de seu valor de mercado. Se as suposições estiverem corretas, isso implica que os clubes anteriores desses jogadores, como o São Paulo Futebol Clube, que têm direito a uma parcela da taxa de transferência de um destes jogadores, seja por meio de pagamento de solidariedade ou como uma cláusula de divisão de direitos econômicos, podem não receber uma parte justa da taxa de transferência.

O desafio reside no fato de que os clubes MCO, ao seguir tais práticas, tecnicamente não violam as regras sobre transferência de atletas, devido à ausência de um quadro especializado dentro dos regulamentos para clubes MCO. Isso, por sua vez, deixa os clubes anteriores sem um mecanismo legal para garantir uma porcentagem justa da taxa de transferência.

Além disso, a capacidade dos clubes MCO de transferir jogadores internamente parece criar uma brecha para evitar regulamentações financeiras. Esta especulação ganhou destaque durante a recente janela de transferências após a mudança de Ernest Nuamah do FC Nordsjaelland para o RWD Molenbeek em 30 de agosto de 2023. Notavelmente, no dia seguinte, 31 de agosto de 2023, ele foi prontamente emprestado a um clube “irmão”, o FC Lyon. A sequência dessas transações levantou questões sobre a possibilidade de o FC Lyon contornar regulamentações financeiras na França.[10]

O cenário mencionado é apenas um exemplo das diversas situações em que os clubes MCO têm uma vantagem sobre os clubes não-MCO. Os clubes MCO possuem métodos para navegar nas regulamentações relacionadas a empréstimos, proibições de transferência e o mecanismo de solidariedade sem violar diretamente as regras do RSTP.[11]

Da mesma forma, um alerta foi feito por Roy Vermeer, Diretor de Assuntos Legais da FIFPRO, o sindicato global de jogadores de futebol: “Sempre falamos muito sobre o City Football Group e a Red Bull, mas tenho certeza de que há muitos outros por aí que não conhecemos que estão transferindo jogadores entre si”.[12]

Promover uma reforma necessária nas regras e regulamentos da FIFA é crucial para incorporar grupos relevantes atuantes no futebol globalizado. A autonomia atual dos clubes, meramente conectados por meio de propriedade compartilhada, parece irrazoável. No entanto, implementar tal reforma é desafiador, pois envolve sancionar clubes que não são diretamente responsáveis por ações cometidas por seus “clubes irmãos/parceiros”. Apesar da dificuldade, abordar essa questão é imperativo para promover um cenário de futebol mais equitativo e transparente.

III. CONCLUSÃO

Em conclusão, ficou demonstrado que os clubes tradicionais, apesar de enfrentarem desafios causados pelas práticas dos clubes MCO, atualmente carecem de uma via legal para garantir uma parcela justa da taxa de transferência merecida por meio dos mecanismos de participação nos lucros e divisão de direitos econômicos. Isso ocorre principalmente devido à ausência de regulamentações globais para clubes MCO, o que torna suas ações tecnicamente compatíveis com as regras atuais do RSTP. Considerando os potenciais efeitos adversos dos clubes MCO não regulamentados, que estão aumentando rapidamente, nos mecanismos de participação nos lucros e nos desequilíbrios resultantes no sistema de futebol, há um apelo urgente para que a FIFA reconsidere seu tratamento dos clubes MCO e suas transações. Levando em consideração o Artigo 2 (g) dos estatutos da FIFA, há uma necessidade premente de a FIFA e das Confederações nacionais implementarem medidas que protejam a integridade das competições, diferenciando o tratamento dos clubes MCO dos clubes tradicionais.

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[1] Coutinho, E. (12 demaio de 2022). Globalised Football: are we at a time to think about FIFA Multi-Club Ownership organization regulation? LinkedIn. https://www.linkedin.com/pulse/globalised-football-we-time-think-fifa-multi-club-eduardo-coutinho/

[2] Santos, I.S., Ferreira, J., & Pisani, J.R. (2022). Futebol, negócio e globalização: clubes brasileiros na nova era do multiclub ownership. REVISTA DO DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA, 42 (2022), paginas 2-6, https://doi.org/10.11606/eISSN.2236-2878.rdg.2022.203847

[3] CAS 2012/A/2875 Helsingborgs IF v. Parma FC S.p.A, decisão de 28 de fevereiro de 2013, para. 83

[4] Global Transfer Report, FIFA (2022). P. 8. Disponível em:

https://digitalhub.fifa.com/m/2ee0b8943684e25b/original/FIFA-Global-Transfer-Report-2022.pdf

[5] Global Transfer Report, FIFA (2022). P. 8. Disponível em:

https://digitalhub.fifa.com/m/2ee0b8943684e25b/original/FIFA-Global-Transfer-Report-2022.pdf

[6] Global Transfer Report, FIFA (2022). P. 8-9. Disponível em:

https://digitalhub.fifa.com/m/2ee0b8943684e25b/original/FIFA-Global-Transfer-Report-2022.pdf

[7] Commentary on the Regulations on the Status and Transfer of Players, 2023 Edition, FIFA (2023). P. 255. Disponível em: https://digitalhub.fifa.com/m/40da0f707efdd011/original/FIFA-Commentary-on-the-FIFA-Regulations-for-the-Status-and-Transfer-of-Players-2023-edition.pdf

[8] Transfermarkt, https://www.transfermarkt.com.br/adryelson/profil/spieler/373433, https://www.transfermarkt.com.br/lucas-perri/profil/spieler/352041

[9] Santana S. (7 de janeeiro de 2024), Entenda o raciocínio de John Textor nas vendas de Lucas Perri e Adryelson do Botafogo para o Lyon, Ge.globo. https://ge.globo.com/futebol/times/botafogo/noticia/2024/01/07/entenda-o-raciocinio-de-john-textor-nas-vendas-de-lucas-perri-e-adryelson-do-botafogo-para-o-lyon.ghtml

[10] Brussels club RWDM sends record transfer out on loan immediately to sister club, Belga News Agency (31 de agosto de 2023), https://www.belganewsagency.eu/belgian-club-rwdm-buys-striker-for-record-fee-but-loans-him-out-immediately-to-lyon; Transfermarkt, https://www.transfermarkt.com.br/ernest-nuamah/profil/spieler/955070

[11] Coutinho, E. (12 de maio de 2022). Globalised Football: are we at a time to think about FIFA Multi-Club Ownership organization regulation? https://www.linkedin.com/pulse/globalised-football-we-time-think-fifa-multi-clubeduardo-coutinho

[12] Menary, S. (10 de março de 2023) Spree of buying clubs threatens football integrity https://www.playthegame.org/news/spree-of-buying-clubs-threatens-football-integrity/

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