Por José Cândido Bulhões Pedreira
A pandemia da Covid-19, que assola o planeta e testa os limites dos serviços de saúde pública, nos ensina que graves problemas que afetam o mundo inteiro devem ser enfrentados por todos os países de forma coletiva, com a coordenação de uma entidade com existência própria, especializada na sua área de atuação e na qual os países tenham representação, no caso, a Organização Mundial de Saúde. Países das mais diversas culturas e tradições unem esforços para atingir um objetivo comum: preservar vidas.
Até mesmo as duras medidas de isolamento social, paradoxalmente, requerem cooperação internacional, pois só surtirão efeito se adotadas simultaneamente por todos os países afetados – para que a tão esperada reabertura das fronteiras não resulte numa nova onda pandêmica.
Como afirmou o historiador israelense Yuval Noah Harari em artigo no jornal O Globo do último dia 23/3, “o verdadeiro antídoto para a epidemia não é a segregação, mas a cooperação”.
Quando se trata do futebol brasileiro, no entanto, cooperação (no sentido de “co-operar”, ou operar coletivamente) é tão difícil de encontrar quanto álcool gel nas prateleiras em tempos de Covid-19.
Os clubes se pautam unicamente por interesses individuais, sem senso coletivo. Não conseguem dialogar nem mesmo para negociar coletivamente seus direitos de transmissão e valorizar o produto que oferecem, que dirá para organizar seu próprio campeonato.
O futebol brasileiro tornou-se terreno fértil para a propagação de políticas individualistas em detrimento do desenvolvimento do mercado nacional, por parte de “ultranacionalistas”, que só enxergam seus próprios interesses, e pretensos isolacionistas, que se acham uma categoria à parte, alheios à realidade em que estão inseridos.
Nossos dirigentes agem como se o produto final a ser vendido ao consumidor fosse cada clube individualmente considerado, e não o campeonato em si, a marca, com toda sua identidade, história, rivalidades, partidas e clubes. O resultado é um campeonato nacional empobrecido e endividado, enfraquecido, pois craques vão-se embora cedo, e engessado, com os clubes abrindo mão do seu poder de autodeterminação em favor do sistema CBF/Federações, que tem seus próprios interesses – por vezes conflitantes com os dos clubes.
A experiência internacional nos mostra que o tratamento para recuperar o futebol brasileiro e destravar o seu potencial é conhecido e incontroverso, pois já foi revisado e aprovado por seus pares. Em todos os maiores campeonatos de futebol do mundo os clubes são empresas, salvo raríssimas exceções, e também são sócios entre si numa outra entidade – a liga – que tem personalidade jurídica e identidade institucional próprias, e mandato para negociar e repartir entre os clubes, em benefício do produto final, os contratos de direitos de transmissão, patrocínio, licenciamento e tudo o mais que afeta o valor comercial do campeonato. Os clubes são adversários no campo, mas fora dele são sócios e trabalham juntos pelo sucesso da empresa em comum.
A união sob uma liga independente e com foco no produto final rende inegáveis frutos: as cinco ligas de maior sucesso comercial no mundo – Premier League (Inglaterra), Bundesliga (Alemanha), La Liga (Espanha), Lega Calcio Serie A (Itália) e Ligue 1 (França) – tiveram, em 22 anos (1996/97 a 2017/18), crescimento de receitas de 26,86% ao ano, em média (com variação de 17,49% ao ano (Lega Calcio Seria A) a 35,16% ao ano (Premier League), segundo dados do site Statista e do relatório Annual Review of Football Finance 2019, da Deloitte), atingindo receitas agregadas de €15,6 bilhões ao final da temporada 2017/18. Além disso, registram altas taxas de ocupação de estádios, média agregada de 77,4% em 2017/18, e conseguem vender seu produto não apenas para o seu público interno, mas para audiências do mundo inteiro.
A Premier League pode cobrar os direitos de transmissão mais caros do mundo entre os campeonatos nacionais, de £1,7 bilhão por temporada (valorização de 166% a.a. desde sua fundação em 1992), porque oferece uma liga extremamente competitiva, onde todos os jogos geram interesse e interações nas mídias sociais. Todos os clubes são igualmente bem remunerados pelos seus direitos e a diferença final entre o valor recebido pelo campeão e o último colocado é de apenas 1,6 vezes. Com isso, são vistos no mundo inteiro, seus clubes globalizam suas marcas, aumentam suas receitas comerciais e têm acesso aos mais renomados jogadores do mercado internacional.
Não menos importante, a formação da liga permite que seus membros definam, em comum acordo, as premissas que regerão sua atividade, como, por exemplo, regras de governança corporativa, limites de endividamento e padrões mínimos de infraestrutura. A liga independente, com identidade institucional, estrutura e planejamento estratégico próprios, produz um ciclo virtuoso que maximiza o potencial comercial da competição, favorecendo todos os seus membros.
Por outro lado, o campeonato que temos hoje no Brasil, caraterizado pelo ajuntamento de clubes sem visão comum, sob tutela da CBF e regido por interesses individuais, produz um ciclo vicioso onde a responsabilidade pelo sucesso da atividade é recorrentemente jogada no colo de terceiros, como o governo federal ou a detentora dos direitos de transmissão – uma verdadeira “desliga”.
Os vinte clubes de maior faturamento no Brasil, apesar de terem aumentado substancialmente seus ganhos nos últimos 10 anos, com crescimento médio de 37,7% ao ano (semelhante ao da Premier League), não conseguem sair do vermelho porque carregam o peso de décadas de administrações irresponsáveis, acumulam dívidas impagáveis, e não têm articulação para regular coletivamente sua atividade e criar condições para o seu desenvolvimento a partir do objetivo comum de fortalecer o mercado interno e torná-lo sustentável e competitivo.
O isolamento social acomete o nosso futebol desde muito antes da quarentena imposta pela Covid-19. A pandemia apenas expôs a fragilidade institucional do futebol brasileiro e a miopia daqueles que não enxergam além dos próprios interesses.
Precisamos entender, de uma vez por todas, que, apesar da natural disputa por mercado e títulos, o esporte é a única indústria onde o objetivo estratégico não é o de eliminar por completo a concorrência, levando-a à falência, pois os clubes dependem fundamentalmente uns dos outros para oferecer seus produtos e serviços ao consumidor e alimentar a rivalidade que gera demanda. Quando um clube fecha as portas, o mercado do futebol desvaloriza, o PIB diminui e pessoas perdem empregos, renda e uma referência sociocultural.
O Brasil é o maior produtor de craques de futebol do mundo e tem um enorme e voraz mercado consumidor. Então por que temos que nos contentar em ter apenas dois ou três clubes bem estruturados numa indústria nacional sucateada?
Com tantas opções de entretenimento disponíveis hoje à distância de um clique (ligas estrangeiras, e-sports etc.), o desinteresse que tomou conta do torcedor brasileiro em relação aos campeonatos estaduais poderá, em breve, alastrar-se rapidamente, tornar-se uma epidemia e infectar o futebol brasileiro como um todo.
A atual concorrência dos clubes brasileiros, assim como um vírus, desconhece fronteiras. E será muito difícil superá-la sem cooperação, união de esforços por um fim comum, que deve ser o de valorizar o produto final: a competição.
Se o futebol brasileiro não se liga, mais cedo ou mais tarde, seu torcedor o desliga.
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José Cândido Bulhões Pedreira é advogado, FIFA Master, sócio de Trengrouse & Gonçalves Advogados