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O menor no esporte

Uma breve análise sobre o atleta menor à luz do regulamento nacional e internacional de registro e transferência: do contrato de formação a assinatura do primeiro contrato especial de trabalho desportivo

A temática envolvendo o atleta menor de idade no esporte é algo que eventualmente gera dúvidas. Para tratar sobre esse assunto há que se falar inicialmente sobre a diferença entre atleta profissional x não profissional. A legislação nacional, mais precisamente no art. 3 º, parágrafo 1º, inciso I da Lei 9.615/98 (“Lei Pelé”), se limita a dizer que o atleta profissional é aquele que mantém um contrato especial de trabalho desportivo com alguma entidade de prática desportiva, já o atleta não profissional é o oposto, ele não possui vínculos e consequentemente possui a liberdade de prática e não havendo uma regulamentação específica para tal. Já a luz da legislação FIFA, a diferenciação do atleta profissional para o não profissional se dá de outra forma, para a entidade máxima do futebol é considerado profissional aquele atleta que aufere receitas maiores do que o investimento feito para disputa da modalidade.

A partir desta diferenciação devemos destacar e caracterizar o atleta em formação. Para a legislação nacional, atleta em formação são aqueles que firmam contrato de formação desportiva (não se trata de um contrato de trabalho formalmente dito) com a entidade de prática formadora, entre os 14 e 20 anos (ao contrário da FIFA que entende que o período de formação vai dos 12 aos 23 anos) e recebem auxílio financeiro em forma de bolsa aprendizagem, a definição está prevista no art. 29, parágrafo 4º da Lei Pelé, in verbis:

  • 4oO atleta não profissional em formação, maior de quatorze e menor de vinte anos de idade, poderá receber auxílio financeiro da entidade de prática desportiva formadora, sob a forma de bolsa de aprendizagem livremente pactuada mediante contrato formal, sem que seja gerado vínculo empregatício entre as partes.

Em relação ao menor, há uma série de especificidades na legislação nacional, seja na Constituição, Consolidação das Leis Trabalhistas ou no Estatuto da Criança e do Adolescente (“ECA”) que precisam ser respeitados pela legislação esportiva. Em linhas gerais, a possibilidade de profissionalização apenas após os 16 anos ou a impossibilidade de firmar contratos de formação antes dos 14 anos.

O contrato de formação visa além de garantir a capacitação técnica e educacional do atleta, garantir ao clube que investiu ao longo de sua formação a possibilidade de assinar o primeiro contrato especial de trabalho desportivo, bem como prioridade em sua renovação, direito trazido pelo caput do art. 29 da Lei Pelé:

Art. 29.  A entidade de prática desportiva formadora do atleta terá o direito de assinar com ele, a partir de 16 (dezesseis) anos de idade, o primeiro contrato especial de trabalho desportivo, cujo prazo não poderá ser superior a 5 (cinco) anos.

Além disso, o contrato de formação deve preencher alguns requisitos, como conter obrigatoriamente a assinatura dos representantes legais, o tempo de duração do contrato, especificação dos gastos com a formação para fins de cálculo da indenização desportiva, entre outros.

Clube formador é a entidade de prática que oferece ao atleta em formação o necessário para o seu desenvolvimento profissional ao longo dos anos, e para que a entidade de prática se torne um clube formador ela deve preencher todos os requisitos contidos no art. 29, parágrafo 2º da Lei Pelé e do art. 49 do Decreto 7.984, a partir daí o clube estará apto a ser certificado pela entidade de administração e posteriormente adquirir o benefício de oferecer o primeiro contrato de trabalho desportivo daquele atleta, bem como a prioridade em sua renovação, indenizações por formação, entre outros.

A entidade de prática formadora deve garantir assistência psicológica, médica, odontológica e educacional, além de alimentação, transporte, ter um corpo de profissionais especializados na formação desses atletas em formação, manter alojamentos e instalações adequadas.

Em relação aos estudos, o clube formador é obrigado a conciliar o tempo de treino, que em regra não deve ser superior a 4 (quatro) horas diárias, ao horário de aulas ou curso profissionalizante e deve exigir frequência escolar e um bom aproveitamento em sala de aula.

Por via de regra, o contrato de formação propriamente dito, com esta alcunha e envolvendo todos os benefícios acima citados só poderá ser celebrado e registrado pela entidade de prática detentora do Certificado de Clube formador (“CCF”), que são uma minoria no cenário atual. No entanto, insta salientar que a Lei Pelé em seu art. 3º, inciso IV traz a seguinte definição de desporto de formação:

IV – desporto de formação, caracterizado pelo fomento e aquisição inicial dos conhecimentos desportivos que garantam competência técnica na intervenção desportiva, com o objetivo de promover o aperfeiçoamento qualitativo e quantitativo da prática desportiva em termos recreativos, competitivos ou de alta competição.

Clubes que não possuem o CCF podem firmar contratos formais com os atletas, bem como registrá-los perante a CBF, e estes atleta será considerado como atleta em formação, a diferença está nos direitos e benefícios adquiridos pelo clube possuidor do certificado, que não serão aplicáveis neste caso, com exceção da possibilidade de cobrança do mecanismo de solidariedade interno, que poderá ser cobrado por estes clubes que não possuem o CCF.

Importante frisar que conforme supramencionado, o atleta em formação é reconhecido como não profissional a luz da legislação e regulamentos nacionais e, caso não tenha o seu contrato de formação registrado na entidade de administração estadual ou nacional correspondente, poderá se desligar a qualquer tempo e transferir-se para outro clube, o próprio Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol corrobora este entendimento em seu art. 29, parágrafo 2º:

  • 2º – O atleta não profissional sem contrato de formação registrado na CBF (assistido ou representado, quando menor, por seu representante legal) poderá solicitar, a qualquer momento, o desligamento do clube a que estiver vinculado, desde que tal pedido seja feito por escrito e de maneira direta à respectiva Federação.

Em relação ao direito adquirido pelo clube formador de assinar o primeiro contrato especial de trabalho desportivo com o atleta a partir dos seus 16 anos. Caso o atleta faça oposição a assinatura do primeiro contrato, ou venha a se vincular em um outro clube, a entidade de prática formadora deve ser indenizada em até 200 (duzentas) vezes os gastos comprovadamente efetuados com a sua formação. Esse valor, a depender do tempo que aquele atleta em formação permaneceu no clube, pode facilmente superar o valor máximo da Cláusula indenizatória nacional estipulada pela Lei Pelé de 200 (duzentas) vezes o valor médio salarial do atleta.

Já no que diz respeito ao direito de preferência de renovação, entende-se que funciona como uma recompensa ao investimento feito ao longo dos anos de sua formação. Para assegurar sua preferência o clube formador deve realizar proposta de renovação em até 45 (quarenta e cinco) dias antes do término do contrato em curso e o atleta deverá responder em 15 (quinze) dias, sob pena de aceitação tácita da nova proposta.

Caso o atleta receba proposta de outro clube, o mesmo poderá se transferir sem ter que ressarcir seu clube formador a partir do momento que a proposta recebida possua melhores condições do que aquela oferecida pela entidade de prática que lhe formou, no entanto, caso a proposta possua condições iguais ou inferiores, o clube formador poderá exigir o pagamento de indenização, que conforme aduzido anteriormente pode atingir o valor de até 200 (duzentas) vezes o valor médio do salário percebido pelo atleta até momento.

Vale pontuar que ao contrário do estipulado pela Lei Pelé, o Regulamento de Status e Transferência (“RSTP”) de jogadores da FIFA, em seu art. 18, item 2, permite contratos profissionais firmados por menores de 18 anos pelo período máximo de 3 anos, a saber:

  1. The minimum length of a contract shall be from its effective date until the end of the season, while the maximum length of a contract shall be five years. Contracts of any other length shall only be permitted if consistent with national laws. Players under the age of 18 may not sign a professional contract for a term longer than three years. Any clause referring to a longer period shall not be recognised.

Diante do exposto, se aos 16 anos um atleta firmar seu primeiro contrato especial de trabalho desportivo com a entidade de prática formadora, com duração de 5 anos e ao completar 19 anos receber uma proposta de um clube estrangeiro e for de sua vontade se transferir, ele poderá acionar a FIFA e deverá a Confederação Brasileira de Futebol (“CBF”) liberar o atleta. Porém, caso a transferência seja a nível doméstico e o litígio chegue a Câmara de Resolução de Disputas da CBF (“CNRD”), o contrato será válido e deve ser cumprido até o final ou deverá o clube interessado solidariamente ao atleta arcar com o ônus da rescisão.

Há inclusive decisão do Tribunal Arbitral do Esporte (“TAS/CAS”) proferida no sentido de confirmar o entendimento acima aduzido, ou seja, em litígios de âmbito internacional envolvendo conflito de normas, deverá prevalecer nesse caso a lex sportiva, nestas palavras:

No entanto, o Árbitro Único é de opinião que não há lugar para a aplicação da legislação brasileira ou as definições e critérios nacionais brasileiros para decidir o status do Jogador no caso em questão. A legislação nacional brasileira, bem como a forma como a CBF define o status de um jogador no Brasil, são sem dúvida relevantes e regem as transferências internas dentro do Brasil. O Artigo 1 (2) da RSTP 2005 reconhece claramente a governança de tais regulamentos (e ainda sujeito também a termos obrigatórios impostos pela FIFA) em “A transferência de jogadores entre clubes pertencentes ao mesmo Associação”. No entanto, as leis nacionais e os regulamentos internos não são a lei aplicável em caso de litígio com um elemento internacional. Tais disputas são regidas exclusivamente pelo termos do FIFA RSTP e suas definições. (cf. CAS 2007 / A / 1370 e 1376, no. 87). Em tal casos, o RSTP 2005 estabeleceu os critérios aplicáveis ​​para estabelecer e decidir sobre o status de um jogador quando ocorre uma transferência entre “clubes pertencentes a associações diferentes” (ver Artigo 1, parágrafo 1 de RSTP 2005). (CAS 2009/A/1781 FK Siad Most v. Clube Esportivo Bento Gonçalves, sentença de 12 de outubro de 2009, n. 40., tradução nossa)

Em razão da dissintonia existente entre a legislação nacional e o regulamento FIFA, o RNRTAF criou em seu art. 4º um mecanismo próprio, que não se trata de registro de atletas, vez que é vedado registrar atletas, ainda que em formação, com menos de 14 anos, mas sim o registro de uma iniciação desportiva. Esse cadastro de iniciação desportiva pode ser feito dos 12 aos 14 anos e possui duração máxima de uma temporada, possui a finalidade de adequar a legislação e dessa forma garantir o recebimento não apenas do mecanismo de solidariedade pela entidade de prática formadora, mas também do Training Compensation e possui previsão no art. 4º do RNRTAF da CBF:

Art. 4º – A partir dos 12 e até os 14 anos de idade, é permitido o cadastro de adolescentes para fins de iniciação desportiva e inserção do nome do clube em seu Passaporte Desportivo. O cadastro de iniciação desportiva vigorará por prazo determinado, até, no máximo, o fim da temporada em que se efetivar, devendo ser acompanhado dos mesmos documentos listados no art. 2º.

Em linhas gerais, o mecanismo de solidariedade é uma espécie de compensação criada pela FIFA a fim de restituir a entidade de prática formadora do atleta e é devido quando ocorrer transferência internacional, seja em definitivo ou por empréstimo, mais precisamente toda vez que o atleta se transferir para uma Federação diferente da sua Federação de origem será devida a compensação. O mecanismo de solidariedade está descrito no art. 21 do RSTP, in verbis:

If a professional is transferred before the expiry of his contract, any club that has contributed to his education and training shall receive a proportion of the compensation paid to his former club (solidarity contribution). The provisions concerning solidarity contributions are set out in Annexe 5 of these regulations.

Neste sentido, a Lei Pelé também estipula sua compensação em transferências domésticas, mais precisamente em seu art. 29-A, que aduz que: “Sempre que ocorrer transferência nacional, definitiva ou temporária, de atleta profissional, até 5% (cinco por cento) do valor pago pela nova entidade de prática desportiva serão obrigatoriamente distribuídos entre as entidades de práticas desportivas que contribuíram para a formação do atleta (…)”. Este percentual é calculado com base na idade do atleta e o clube que o recebe deve reter os 5% do valor, que deverá ser dividido proporcionalmente e repassado aos clubes formadores, a exceção ocorre quando há o pagamento da cláusula indenizatória, o clube que recebeu o valor que será o responsável por repassar o percentual devido para os clubes formadores daquele atleta, já o mecanismo da FIFA é calculado de acordo com o ano calendário em que o atleta completou determinada idade.

No entanto, há de se lembrar que ainda que o atleta possa se profissionalizar a partir dos 16 anos de idade e ainda que ele já tenha firmado contrato especial de trabalho desportivo, devido ao regulamento da FIFA por não ter atingido a maioridade civil, não é permitida sua transferência internacional, assim como não se pode emitir o Certificado de Transferência Internacional antes dos 12 (doze) anos de idade. Isto porque o RSTP dispõe em seu art. 19 que só será permitida transferência internacional para atletas com a idade superior a 18 anos, salvo algumas exceções que o próprio regulamento estipula, como:

  1. The player’s parents move to the country in which the new club is located for reasons not linked to football. b) The transfer takes place within the territory of the European Union (EU) or European Economic Area (EEA) and the player is aged between 16 and 18. In this case, the new club must fulfil the following minimum obligations (…) The player lives no further than 50km from a national border and the club with which the player wishes to be registered in the neighbouring association is also within 50km of that border. The maximum distance between the player’s domicile and the club’s headquarters shall be 100km. In such cases, the player must continue to live at home and the two associations concerned must give their explicit consent.

Além do Mecanismo de Solidariedade temos também a figura do “Training Compensation”, que possui a finalidade de incentivar a melhora na formação, é, da mesma forma, uma espécie de compensação entre os clubes que participaram da formação de determinado atleta e é devido em duas situações conforme prevê o RSTP em ser art. 20:

Training compensation shall be paid to a player’s training club(s): (1) when a player is registered for the first time as a professional, and (2) each time a professional is transferred until the end of the calendar year of his 23rd birthday. The obligation to pay training compensation arises whether the transfer takes place during or at the end of the player’s contract. The provisions concerning training compensation are set out in Annexe 4 of these regulations. The principles of training compensation shall not apply to women’s football.

Conforme dito anteriormente, a FIFA entende como período de formação entre os 12 e 23 anos, desta forma, o pagamento desse mecanismo deve ser feito até os 23 (vinte e três) anos pelo processo de formação realizado até os 21 (vinte e um), caso não reste comprovado que o período de formação daquele atleta terminou antes. Neste caso, o pagamento deve ser feito em até 30 (trinta) dias contados da inscrição do atleta pelo clube que assinou o primeiro contrato com o jogador.

Por fim, há de se falar sobre a preservação dos diretos do atleta, especialmente do atleta que ainda não concluiu sua formação, uma vez que para grande maioria dos clubes brasileiros estes representam verdadeiros e valiosos ativos para em razão dos valores elevados estipulados contratualmente pelas cláusulas indenizatórias, valores estes que acabam muitas das vezes “salvando” estas entidades de prática formadoras das dívidas.

A situação financeira precária que muitos clubes se encontram acabam por contribuir – cada vez mais – para a saída prematura dos atletas, raros são os casos em que as entidades de prática formadora conseguem ter um planejamento para manter as suas jóias provenientes das categorias de base e conseguem sustentar o assédio dos clubes estrangeiros, que possuem maior poderio econômico, por mais tempo.

Caso o futebol fosse menos desigual e próximo ao ideal, deveriam os clubes formadores não só usufruírem do benefício financeiro que esses jovens atletas podem trazer, mas também do benefício esportivo, uma vez que a partir do momento que esse atleta chega ao time profissional e apresenta bons resultados, minutagem de jogo, estará cada vez mais valorizado para uma venda futura.

Sem pormenorizar, as questões jurídicas envolvendo não apenas o registro e transferência dos atletas menores, mas também os contratos por eles firmados devem se atentar e seguir as inúmeras peculiaridades normativas que envolvem o menor de idade, especialmente àquelas trazidas pelo art. 5º, inciso XIII da Constituição, CLT, ECA e os regulamentos FIFA e CBF.

……….

Letícia Saldanha Ribeiro, advogada na área de Direito Desportivo do escritório Jucá, Bevilacqua & Lira Advogados. Certificada em Direito Desportivo pela PUC-RJ, Barça Innovation Hub, FUTJUR, ABDConst. Certificada em Mediação e Arbitragem e Direito Contratual pela FGV.

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