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O novo “caso Bosman” que promete revolucionar o futebol europeu

A importância do Direito no mundo moderno é inquestionável. É uma faca de dois gumes, revestida pela imponente terceira lei de Newton, da ação e reação. Ora o Direito reage aos acontecimentos e tendências do mundo, adequando-se a eles, ora o Direito é quem dita e molda as novas tendências, escrevendo os novos fatos. Novamente, quase três décadas após o emblemático caso Bosman, uma demanda promete modificar completamente o cenário do futebol europeu.

Em primeiro lugar, antes da exposição da lide em questão e para uma melhor compreensão da discussão jurídica, faz-se necessário descrever o caso paradigma de Jean-Marc Bosman[1], antigo futebolista belga, em face do seu anterior clube, o RFC Liége, além da Federação Belga e da UEFA.

Naquela época, o regulamento belga e o da UEFA consideravam estrangeiros os jogadores nascidos em outro membro da União Europeia, como também impunham uma limitação ao número de futebolistas estrangeiros. Além disso, permitiam que houvesse o direito de retenção. Em outras palavras, obrigavam o pagamento de uma compensação financeira, por parte do novo clube, ao antigo clube, mesmo que o contrato entre este último e o atleta tivesse expirado, para que se pudesse liberar o futebolista.

O jogador, com proposta para atuar em um clube francês, que acabou não se concretizando devido ao alto e desproporcional valor fixado pela equipe belga para sua liberação, alegando violação ao artigo 48 do Tratado de Roma[2], que dispunha sobre a livre circulação de trabalhadores no território europeu, resolveu buscar seus direitos através da prestação jurisdicional.

Ato contínuo, depois de uma longa batalha jurídica, o caso chegou ao Tribunal Europeu, que reconheceu o direito do jogador. A decisão estabeleceu que um futebolista tem de ser encarado como um trabalhador comum, pelo que, uma vez terminado o seu contrato, cessam as suas obrigações jurídicas e deverá ficar livre para assinar por outra equipe, declarando ilegal a compensação financeira ao antigo clube, até então permitida pela normativa. Outrossim, impôs fim ao limite à inscrição de jogadores comunitários em competições realizadas dentro da União Europeia.

Essa decisão ficou marcada como a libertação dos futebolistas e teve repercussões mundiais, dando azo ao boom do mercado de jogadores. Com isso, a FIFA e UEFA uniram esforços para chegar a um acordo com as autoridades europeias sobre um sistema de transferências internacionais, que pudesse estabilizar as relações entre jogadores e clubes, especialmente sob o ponto de vista contratual e que, ao mesmo tempo, pudesse proteger os clubes formadores, celeiros de grandes desportistas.

Finalmente, em 2001, houve a criação do Regulamento sobre o Status e Transferência de Jogadores da FIFA (RSTP), em 2001, que trouxe diversas inovações, como, por exemplo, a criação do mecanismo de solidariedade, da indenização por formação e regras para a proteção dos atletas menores. No âmbito nacional, a Lei Pelé (Lei no 9.615/98[3]) sofreu uma alteração importante pela Lei 10.672/03, com a introdução do artigo 28, que, naquele momento, excluiu o que era popularmente conhecido como “passe”.

Quase 30 anos depois, outro caso promete ter as mesmas consequências no futebol europeu[4], reutilizando um dos argumentos já expostos. A principal tese jurídica foi que a normativa belga violaria a livre circulação de trabalhadores dentro do território europeu, pois determina que dos 25 jogadores permitidos por elenco, 8 devem vir das categorias de base e 6 deles devem estar obrigatoriamente na lista de jogadores relacionados para cada jogo.

Desse modo, o clube belga Royal Amberes FC, diante da impossibilidade de contar com o jogador israelense Lior Rafaelov devido a restrição imposta pelo regulamento, acionou o Poder Judiciário local, aduzindo que a disposição da Liga Belga o impede de contratar novos jogadores e interfere diretamente na escolha técnica para as partidas. Outrossim, arguiu que essa restrição é prejudicial aos países de menor população.

Nesse sentido, o regulamento da UEFA Champions League[5], no seu artigo 45, também impõe certas limitações sobre a lista que os clubes devem apresentar. Dos 25 jogadores inscritos, 8 vagas devem ser reservadas para jogadores treinados na categoria de base do próprio time. Contudo, há uma certa flexibilização, já que, entre esses 8 jogadores, se permite que até 4 tenham se desenvolvido na base de outro time pertencente a mesma Federação.

São considerados jogadores formados pelo próprio clube ou por outra entidade da mesma Federação todos os atletas, independente de nacionalidade e idade, que foram registrados por tal equipe durante 3 temporadas inteiras (de maneira contínua ou não), entre os 15 e 21 anos.

Essa normativa, implementada a partir do ano de 2006, foi provocada pela preocupação da instituição europeia com o aumento do poder financeiro de certas equipes, impulsionado principalmente pelo crescimento da arrecadação com os direitos de transmissão, o que poderia afetar o equilíbrio das competições. A princípio, a obrigação era de 4 jogadores vindos do setor de base. No ano seguinte, aumentou para 6. Finalmente, na temporada de 2008/2009 se chegou aos moldes atuais.[6]

Por sua vez, a restrição imposta pelo regulamento belga começou no ano de 2011 e coincidiu com a evolução do esporte praticado no país, principalmente no nível técnico da sua seleção, que subiu bastante no ranking da FIFA, embora ainda não tenha conquistado nenhum título relevante.

Isso posto, a arguição de que as imposições da UEFA e da Jupiler Pro League infringem a legislação europeia foi submetida pelo juiz belga para a apreciação do Tribunal Europeu, ainda sem prazo para a emissão de uma decisão definitiva. No entanto, a justificativa para tais obrigações devem ser questionadas também sob o prisma da proporcionalidade, necessidade e eficácia.

Para isso, é fundamental discorrer sobre alguns dos principais escopos da norma. Evidentemente, a medida pretendia estimular o aproveitamento de jogadores jovens, revelados no clube ou no futebol nacional, com o objetivo de fomentar o investimento no desenvolvimento de novos talentos em detrimento de uma política de contratações e de interesses financeiros que pudessem inviabilizar a identificação dos profissionais com o clube/país. Consequentemente, a sustentabilidade ao longo prazo do esporte praticado no local estaria assegurada.

Inicialmente, apesar da ideia não ser desprendida de boas intenções, considerando os princípios da proporcionalidade e da necessidade, não existiam outros meios menos gravosos aos jogadores e aos participantes das competições? Forçar a composição do elenco por um terço de jogadores formados no país é proporcional?

Ressalte-se que essas regras interferem diretamente na política do clube, seja na área de contratações, de investimento interno, bem como nas escolhas técnicas do próprio treinador da equipe. Afinal, alguns desses 8 jogadores podem ainda não estar prontos para jogar em alto nível ou ainda não possuir o mesmo nível técnico que os demais.

Por outro lado, exercendo uma posição dominante no mercado, não seria considerado um abuso de poder e um conflito de interesses que uma Federação Nacional ou Liga produzisse uma norma que impeça ou limite a participação e, por conseguinte, a contratação de jogadores que não tenham sido formados no próprio país ou na categoria de base do próprio clube?

Da mesma forma, deve-se indagar sobre a eficácia dessa medida, uma vez que nem sempre a inclusão desses 8 jogadores significa um real aproveitamento de jogadores jovens, não transformando a obrigatoriedade da presença na lista em minutos jogados. Tampouco representa um estímulo à produção de novos talentos e ao investimento na base, pois pode caracterizar apenas uma mudança nos rumos das contratações. Em vez de jogadores crescidos em outro país, passa-se a adquirir jogadores que preencham as condições do regulamento.

Ademais, existiam medidas mais eficazes para fomentar participação ou promover o desenvolvimento dos jovens. Nesse contexto, não havia necessidade de atrelar ao país de origem da formação e sim a idade do jogador inscrito ou em minutos jogados, por exemplo. Sendo assim, seriam normas muito mais eficientes para o propósito que se buscava tutelar.

A título de ilustração, na última final da UEFA Champions League, jogada entre Chelsea e Manchester City, nas formações titulares da partida, apenas 3 jogadores eram oriundos da categoria de base dos clubes e somente 4 tinham menos de 23 anos.

Todavia, a questão ainda deve ser defendida e sustentada pelas entidades responsáveis pela criação dessas regras em momento oportuno. Dessa forma, entre os argumentos que a UEFA poderá utilizar é que essa disposição não estabelece nenhuma proibição em virtude da nacionalidade dos atletas, estando em consonância com a decisão Bosman. Em continuação, deverão alegar que foi mantida a autonomia dos clubes na convocação e escalação dos jogadores.

Por fim, se acolhida a pretensão do time belga pelo Tribunal Europeu, o mercado do futebol seria alterado de maneira significativa novamente. Essa liberação dos clubes e dos jogadores, que passarão a poder a registrar e ser inscritos sem limitações, respectivamente, nas competições mais importantes do continente será muito relevante para a evolução do esporte, retirando cada vez mais as barreiras em função do território, que ainda impedem a maximização da globalização da modalidade.

Ainda nesse ano de 2021, depois da submissão do litígio sobre a Superliga, o Tribunal Europeu volta a ser protagonista do futebol mundial, que espera por ambas decisões, que por si só serão capazes de alterar o destino e a forma como o esporte é realizado. É o Direito agindo e reagindo aos novos fatos, ditando e se adaptando às novas tendências.

……….

[1] Caso Bosman – showPdf.jsf (europa.eu) – última consulta: 21.10.2021

[2] Tratado de Roma: TRATTATO che istituisce la Comunità Economica Europea e documenti allegati (europa.eu) – última consulta: 20.10.2021

[3] Lei Pelé – L9615 – Consolidada (planalto.gov.br) – última consulta: 22.10.2021

[4] El nuevo ‘caso Bosman’ que puede revolucionar el fútbol mundial | Marca – última consulta 21.10.2021.

[5] Regulamento UEFA Champions League –Article 45 Player lists • Regulations of the UEFA Champions League • Leitor • Documents UEFA – última consulta: 21.10.2021

[6] Protección de los jóvenes jugadores | Sobre la UEFA | UEFA.com – última consulta. 22.10.2021

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