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O novo RGC da CBF e a responsabilidade dos clubes para além do entorno dos estádios

No dia 21 de fevereiro último, o ônibus do Fortaleza foi emboscado por dezenas de torcedores organizados do Sport quando em deslocamento após partida disputada na Arena Pernambuco, válida pela Copa do Nordeste. Vários atletas ficam feridos e precisaram ser levados ao hospital. No momento do ataque, o ônibus circulava pelo bairro do Curado, a cerca de 8km do estádio.

Imediatamente e, como não poderia deixar de ser, o ocorrido gerou revolta, chamou a atenção de toda comunidade esportiva e entrou na pauta de todos os programas de mesa redonda nos veículos de comunicação. Os reclames por punições desportivas ao clube foram imediatos como forma de se evitar futuras tragédias, o que, de certa forma, acabou por moldar a opinião pública diante do ocorrido, gerando uma espécie de senso comum sobre a questão.

De início, a reação foi de perplexidade diante dos pleitos e assim manifestamos nossa opinião em entrevistas aqui mesmo no Lei em Campo.  É sabido que a legislação estabelece que o clube mandante é o responsável pela segurança do evento, estando sujeito a sanções desportivas em caso de descumprimento. Não obstante, a Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/2023), no art. 201, estabelece que tal responsabilidade fica limitada ao raio de 5km do local do evento. Este foi o conceito legal de “entorno” fixado exatamente por conta da limitada possibilidade de atuação dos clubes na seara da segurança, que não pode ir além de elaborar um plano de segurança em conjunto com o Poder Público, contratar segurança privada para prestar apoio (no local no evento), realizar campanhas educativas de conscientização, etc. Para além do entorno, a questão deixa de ser desportiva e passa ser exclusivamente de segurança pública. Além do mais, o regramento legal serviria para deixar clara a incompetência da Justiça Desportiva para julgar o ocorrido, que seria claramente externo ao evento esportivo em si.

Em consonância com nosso entendimento, logo no dia seguinte (22/02), o STJD do Futebol divulgou nota oficial[1] via assessoria de imprensa ratificando o fato de que, como a infração teria sido cometida fora das imediações do estádio, a questão envolvendo a análise do ocorrido e eventual denúncia seria da alçada exclusiva da Secretaria de Segurança Pública de estado de Pernambuco.

No entanto, houve um turn of events.  A Presidência do Tribunal, em decisão monocrática, acatou pedido urgente da Procuradoria no sentido de punir o Sport com a imposição de atuar sob portões fechados em competições organizadas pela CBF, além da perda da carga de ingressos como visitante, até o julgamento em primeira instância. Após a denúncia, o clube foi condenado com base no art. 213 do CBJD (deixar de tomar providências capazes de prevenir e reprimir desordens em sua praça de desporto) em julgamento realizado pela 2ª Comissão Disciplinar do STJD. A sanção aplicada foi a imposição de disputar oito partidas com portões fechados, além de multa de R$ 80 mil e proibição de participação na carga de ingressos de visitantes no período dos referidos jogos. Após a interposição de recurso voluntário, o Pleno do STJD reduziu a condenação para quatro partidas. Note-se, neste ponto, que um dos principais fundamentos utilizados para a redução da sanção disciplinar foi o exatamente reconhecimento, por parte dos auditores, de que a questão seria de segurança pública e de que, para além do entorno, a capacidade de ação do clube seria limitadíssima (!!), o que deveria ter resultado, de imediato, no reconhecimento da incompetência da Justiça Desportiva.

O julgamento, cercado de expectativas e de insegurança jurídica, como se não bastasse, trouxe certo embaraço diante do fato de que o Tribunal fixou a responsabilidade do clube, mas, em momento algum, esclareceu quais ações o Sport deveria ter tomado ou qual omissão efetivamente lhe seria imputável. Ou seja, ficou estabelecida uma espécie de responsabilidade integral, que vai muito além da responsabilidade objetiva, a qual pressupõe conduta ou omissão, dano e nexo causal entre a conduta ou omissão e o dano (apenas a culpa é dispensada). O direito desportivo acabou por chancelar uma responsabilização sem nexo causal, transformando os clubes em uma espécie de garante universal diante da implícita ampliação do conceito legal de entorno, como se aqueles pudessem, por exemplo, instalar câmeras e monitorar todas as vias de acesso aos estádios e manter equipes próprias de segurança por toda a cidade.

A CBF, dias após o julgamento final, talvez movida pela repercussão do caso, divulgou a nova versão do seu Regulamento Geral de Competições (RGC 2024) com a introdução do art. 79, com a introdução da responsabilidade dos clubes mandantes por atos de violência dos torcedores praticados contra as delegações das agremiações visitantes e equipes de arbitragem também nos trajetos de deslocamento de ida e volta para as partidas. A nosso ver, a modificação facilitará as punições e trará mais segurança jurídica ao tema tendo em vista que, a partir do momento que a previsão da responsabilidade e a ampliação do conceito de entorno agora é regulamentar, fica agora estabelecida a competência da Justiça Desportiva para apreciação de eventual infração disciplinar nesses moldes.

Embora a CBF tenha legitimidade para implementar a mudança, na condição de entidade que comanda a cadeia associativa do futebol nacional, a nosso ver, não deveria tê-lo feito. Optou-se pelo simbolismo do punitivismo que, no fundo, funciona como apenas solução simples para um problema complexo. Mais uma vez o princípio da pró-competição resulta prejudicado ao se imiscuir segurança pública com o mérito das competições. Como em todo problema complexo, de nada adiantará atacar seus efeitos. A real solução só virá efetivamente a partir do momento que as multifacetadas causas da violência endêmica que vivenciamos sejam enfrentadas. Todos aprendemos a cobrar os clubes e nunca as autoridades, que pouco dão explicações. Pouquíssimos torcedores que participaram da emboscada foram identificados, mas a cruzada contra os clubes continua. Bastaria simples observação empírica para se constatar que os clubes vêm, há tempos, na perspectiva da solução simples, sendo responsabilizados em maior ou menor grau por conta dos atos de violência dos torcedores e os infelizes episódios ocorrem com cada vez maior frequência.

Por derradeiro, vale ressaltar que nossa perspectiva não é a de minimizar os atos de violência praticados, como se poderia pensar numa primeira mirada. O escopo é apenas o de mostrar que estamos no caminho errado. A CBF, ao invés de terceirizar responsabilidades, precisa cobrar e trabalhar juntamente com as autoridades de segurança pública em busca de soluções.  Para ontem.

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[1] https://www.stjd.org.br/noticias/nota-oficial-sobre-o-episodio-contra-o-onibus-do-fortaleza. Acesso em 20/04/2024.

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