Dizem que, por culpa da tecnologia, andamos terceirizando nossas decisões. Com sistemas eficientes de processamento de dados, algoritmos avançados passam a nos compreender tão bem que conferimos a eles a responsabilidade de optar por escolhas que, antes, fazíamos por nossa conta e risco. Segundo esse pensamento, há algum tempo já não escolhemos sozinhos em qual esquina virar, ao que vamos assistir, com quem vamos nos relacionar ou em quem vamos votar.
Com aplicativos como o Google Maps ou o Waze, recebemos sugestões sobre a melhor escolha a fazer e tendemos a aceitá-las, terceirizando (nesses casos, literalmente) a tomada de decisões sobre qual o melhor caminho a seguir.
Se abrimos mão com tamanha facilidade do poder de decidir quando o assunto nos diz respeito, desde o mais supérfluo ao mais íntimo e importante, a mesma tranquilidade não se dá quando entramos no delicado universo do futebol. Aqui, desde que trouxerem a tecnologia, dizem os saudosos, a partida não é mais a mesma.
A tecnologia que nos faz contratar algoritmos com assistentes pessoais, ao invadir o terreno sagrado das quatro linhas, parece intimidar. Que controlem nossos trajetos, copos de água e agendas. Mas o futebol?
Divisora de águas e de opiniões, a última delas tem nome e sobrenome. Video Assistant Referee. E, como todo mundo no mundo da bola, também tem apelido: VAR.
Como a frustração de ser atendido por uma gravação ao tentar resolver um problema importante, a despersonalização do árbitro significou pra muitos fazer fumaça de alguém que (muitas vezes de forma injusta e pouco saudável, é verdade), por tanto tempo, foi o destinatário de uma parcela importante do que se sentia durante o espetáculo.
Os outros esportes há muito já se renderam à revisão de lances e à medição milimétrica de jogadas que dividem com o árbitro a responsabilidade pelas terríveis decisões que têm o poder de consagrar o campeão à eternidade e condenar o perdedor ao esquecimento. No futebol, entretanto, resistimos. Até agora.
Talvez porque, diferentemente dos outros, no futebol o árbitro não seja “apenas” um instrumento para o bom andamento da partida, senão um de seus personagens principais. No erro ou no acerto, ele era tão parte do jogo como qualquer outro par de pernas. E, pra isso, precisava ser de carne e osso.
Brincava Galeano que, arbitrário por definição, o árbitro era o homem que governava sozinho. Usava preto em luto. Por quem? Por ele mesmo. O sujeito condenado a sofrer pela eternidade com as próprias decisões (acertadas ou não).
Como um monarca absoluto ou uma ditadura sem oposição, sua palavra (ou o apito) era a lei. E porque selava o destino dos ouvintes sem que esses participassem da deliberação, era uma das únicas unanimidades do futebol: todos o odiavam.
“Os derrotados perdem por causa dele e os vitoriosos ganham apesar dele. Álibi de todos os erros, explicação para todas as desgraças, as torcidas teriam que inventá-lo se ele não existisse. Quanto mais o odeiam, mais precisam dele.”
Agora que as coisas mudaram, parecemos nos sentir órfãos. Talvez porque corremos o risco de perder, ao mesmo tempo, não só o homem algoz, mas também o alento.
Dito isso, como transferir o sentimento a um conjunto de câmeras que transmitem as imagens para uma sala isolada do campo? Afinal, apesar de condenável conduta, quem vai proferir impropérios contra os genitores do árbitro de vídeo? Ou culpá-lo pela dor da derrota, depois de vistas e revistas as frações de segundos do lance (não mais) duvidoso? Se contra fatos não há argumentos, o que sobra após a partida quando a dúvida resta morta e sepultada?
De todo modo, órfãos ou não, a revisão das decisões há de ser boa. Afinal, não há vantagens na ditadura, de qualquer forma. Quem sabe, inclusive, ao se livrar do poder absoluto, talvez o árbitro se livre também de parte dos maus-tratos que antes lhe eram destinados com exclusividade. Havendo erro na máquina, passam a ser proferidos, por sua vez, a quem não os pode sentir. Ao final, quem antes aguentava solitário os insultos e as maldições profanadas, poderá, enfim, terceirizá-las, como fazemos todos. Se aproximando, de nós, reles mortais.