Quem acompanha o “Direitos Humanos em Jogo” percebe o destaque que esta coluna tem conferido a iniciativas de atletas que rompem com as ilusórias fronteiras que separam o esporte das lutas sociais. Caster Semenya, Billie Jean King, Colin Kaepernick e Surya Bonaly são alguns desses atletas que entenderam e aplicaram as possibilidades que o esporte apresenta para além das quadras e campos. Suas histórias já foram contadas por aqui.
Atento a essas manifestações, o meu olhar se voltou nas últimas semanas para a Universidade de Mississippi, nos Estados Unidos, também conhecida como “Ole Miss”. Antes do início da partida de basquete entre o time da casa e a Universidade da Georgia, oito atletas da Ole Miss se ajoelharam em protesto durante o hino nacional norte-americano. Aproximadamente 7 mil pessoas estavam no ginásio.
Os atletas queriam expressar a indignação diante do comício convocado por supremacistas brancos membros de movimentos pró-confederados. O comício ocorria no mesmo instante da partida e representava mais um capítulo na história que envolve a retirada de estátuas e símbolos dos Estados Confederados.
Em 2015, um supremacista branco matou nove pessoas em uma igreja na Carolina do Sul, no que ficou conhecido como o massacre de Charleston. Desde então, tem recrudescido o debate referente à retirada de símbolos e monumentos confederados que relembram a Guerra Civil norte-americana (1861-1865).
A então governadora da Carolina do Sul assinou uma lei que removeu a bandeira do prédio do governo, e o debate se alastrou por outros estados do sul do país, especialmente no Mississipi, que tem até hoje em sua bandeira alusão à bandeira dos confederados.
A questão chegou também ao campus da Ole Miss. Alguns estudantes pressionaram a universidade a se livrar dessa herança que remete ao período escravocrata representada em monumentos espalhados pelo campus. Essa possibilidade desencadeou o comício marcado por dois grupos de confederados e espalhou tensão pelos corredores.
Após o jogo, os atletas se pronunciaram. Breein Tyree, cestinha da partida e um dos atletas que protestaram, declarou: “Nós estamos cansados desses grupos de ódio que vêm à nossa faculdade e fazem transparecer que é o nosso campus que tem esses grupos de ódio”. Devontae Shuler, atleta que iniciou o protesto, afirmou que sentia que não poderia deixar passar aquele momento sem que fizesse alguma diferença.
O ato de ajoelhar-se durante o hino nacional tornou-se símbolo de protestos contra a discriminação racial e a violência sofrida pela população negra. Em 2016, o atleta de futebol americano Colin Kaepernick ajoelhava-se antes das partidas como forma de chamar a atenção para a questão e acabou por liderar amplo movimento de atletas que reverbera até hoje¹.
Recentemente, Liam Holmes, um garoto branco de 10 anos da Carolina do Norte, ajoelhou-se durante o Juramento à Bandeira em seu grupo de escoteiros. Segundo ele, o ato foi contra a discriminação racial, que “é basicamente quando pessoas são ruins com as outras pessoas de cores diferentes”. O ato do garoto, que está na quinta série, foi destaque na mídia americana².
O que os atletas da Ole Miss fizeram foi escrever um capítulo decisivo na luta para se desvencilhar dos fantasmas da escravidão e do racismo que estiveram tão presentes não só no Mississippi, como também na história da centenária universidade.
Ole Miss foi reticente em aceitar alunos negros, mesmo após o paradigmático caso Brown v. Board of Education, julgado pela Suprema Corte Americana em 1954. O primeiro atleta negro no time de futebol americano da universidade só foi aceito em 1972; a primeira líder de torcida negra, apenas em 1982³.
O ato dos atletas da Ole Miss contribuiu decisivamente para mudanças. A cobertura midiática dos eventos esportivos universitários nos Estados Unidos é enorme, e o vídeo do protesto foi veiculado nos principais canais de imprensa televisiva e de internet.
Duas semanas após o protesto dos atletas, a entidade estudantil decidiu, em votação unânime, pela remoção de uma enorme estátua de um soldado confederado presente no campus. O processo de retirada do monumento tramita agora em outros departamentos da universidade.
Ao longo de décadas, a Universidade de Mississipi tem lutado para se livrar da imagem de ambiente discriminatório e supremacista. O capítulo escrito pelos atletas demonstra a força que o esporte pode proporcionar àqueles que batalham para além das quadras.
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¹ https://leiemcampo.com.br/por-um-kaepernick-brasileiro/
² https://www.cbsnews.com/news/liam-holmes-10-takes-knee-pledge-of-allegiance-durham-city-council-sparks-controversy/
³ https://www.theringer.com/2019/3/22/18276319/ole-miss-basketball-national-anthem-confederate-protest