2019. Melhor jogadora do mundo. Se isso pudesse ser resumido em números, seriam um mundial com seis gols, em cinco jogos, e três assistências. Mas não pode. Ao receber o prêmio, o discurso de Megan Rapinoe (mais uma vez) falou mais do que eles. Falou de Raheen Sterling e Kalidou Koulibaly, pelo racismo enfrentado na Premier League. Falou de Collin Martin, único jogador da MLS abertamente homossexual. Falou de Sahar Khodayari, a blue girl. E, ao citá-los individualmente, falou de tantos outros.
Em tempos de liberdade e responsabilidade social, ainda há quem critique o atleta que ‘aproveita’ o espetáculo pra levar adiante aquilo que considera causas pessoais. Como se fossem trabalhadores aparentemente sem poder (ou direito) reivindicatório. Como se a beleza do esporte também não estivesse no seu poder de mudar as coisas.
É claro que um pouco de disciplina não faz mal a ninguém. Verdade seja dita, sem ela é difícil dar conta do dia a dia. Mas não é exatamente disso que estamos falando. Falo da disciplina da alma, que quer fazer o sujeito ficar pequenininho (e mudo) diante do mundo. Obediente, racional e previsível.
No esporte profissional (assim como em tantas relações de trabalho), o controle do corpo é a chave do negócio. Não que isso seja algo novo. Desde lá, das enormes fábricas que marcaram a Revolução Industrial no século XIX, a divisão de tarefas na linha de montagem já estudava e moldava o que a máquina esperava do homem. Movimentos corretos, sequenciais, pré-ordenados, necessários. Nessa toada, também o tempo e a vontade do sujeito foram, devagarzinho, sendo ajustados. Não escapou nem o sono, que com a modernidade foi se adaptando ao horário da fábrica, diminuindo o período de “improdutividade”. Com as mudanças na forma de produzir, características como a competitividade e a performance passaram a ser incentivadas. A concentração em vencer. O engajamento mais na tarefa, menos do lado de fora.
Porque não é de outro mundo; dessa mistura o esporte profissional nasce, e cresce como um bolo. Absorve os ingredientes. E também os reafirma. Curioso de pensar: se no início da modernidade o homem era modelo para a máquina, foi ela quem começou a se tornar, gradativamente, o modelo para ele. Supercorpos ajustados, disciplinados, potencializados. Por regras sobre a alimentação, o sono, o ir e vir e, por que não, sobre o que se diz.
“Evitar emitir opiniões sobre assuntos polêmicos”. Li em uma cartilha profissional por aí. Ao ser premiada pela FIFA, a melhor jogadora do mundo deu o recado oposto. Em uma combinação de cabeça e coração – que você não sabe exatamente como funciona, mas pode sentir –, sua voz foi potente e transformadora.
Com vocês, Megan Rapinoe: “Peço a todos aqui, porque acho que todos neste salão provavelmente têm uma coroa que carregam, pra que emprestem a sua plataforma pra outras pessoas. Ergam outras pessoas, pra que elas possam falar. Se o futebol é o melhor esporte do mundo, usem esse belo jogo pra realmente mudar o mundo. Se deixem inspirar. Façam alguma coisa. Qualquer coisa. Temos um poder incrível”.