Primeiro foi o Cruzeiro. Depois o Botafogo. Agora o Vasco. Nesta segunda-feira (21) foi a vez do Cruz-Maltino fechar um acordo de venda de 70% de sua futura Sociedade Anônima do Futebol (SAF) com o fundo norte-americano 777 Partners por R$ 700 milhões, valor esse que pode aumentar segundo os termos do negócio. Desde o final do ano passado, a sigla SAF tomou conta dos noticiários esportivos, no entanto, muitas pessoas ainda têm dúvidas quanto a esse modelo, que busca profissionalizar as gestões dos clubes do futebol brasileiro.
Buscando sanar essas dúvidas e explicar os principais pontos desse modelo que parece ter virado sensação no futebol brasileiro, o Lei em Campo bateu um papo com especialistas da área.
O que é SAF?
SAF é a Sociedade Anônima do Futebol, criada pela Lei 14.193/2021 e promulgada em 6 de agosto do ano passado. Trata-se da lei que permite os clubes de futebol serem transformados em empresas.
“Na prática, é uma empresa cuja atividade principal consiste na prática do futebol em competições profissionais, diferentemente do modelo tradicional de clubes no Brasil, que, por sua maioria, não tem fins lucrativos”, afirma João Paulo di Carlo, advogado especialista em direito desportivo e colunista do Lei em Campo.
O que é preciso para um clube virar SAF?
O advogado Rafael Marcondes, especialista em direito desportivo e colunista do Lei em Campo, explica que a Lei 14.193/2021 traz uma série de exigências para um clube se tornar SAF.
“Algumas dessas obrigações formais que a legislação determina são: a adoção de medidas de gestão, transparência e responsabilidade. Porém, o mais importante para se falar na criação de uma SAF, não está na lei. Trata-se de vontade política. Os atuais cartolas terão que abrir mão do seu poder em favor do investidor, é isso não é simples”, diz Rafael.
João Paulo di Carlo reforça que além das exigências da lei também há necessidade de aprovação pelos Conselhos Deliberativos dos respectivos clubes interessados no modelo.
“Em primeiro lugar, devem ser observados os procedimentos internos de cada clube, passando pela aprovação do Conselho ou Assembleia quanto à mudança do modelo. Igualmente, o Estatuto da SAF também passará pelo crivo dos órgãos internos. Depois de tudo isso, com os documentos e atas já regularizados, o clube e os acionistas precisam ir à Junta Comercial para oficializar a criação da nova empresa”, detalha o advogado.
Nesse caso do Vasco, por exemplo, apesar do acordo formalizado entre o clube e o fundo 777 Partners, para o negócio de fato ser oficializado é necessária a aprovação pelo Conselho Deliberativo.
Qual a diferença para outros modelos que já existiam?
Segundo os especialistas, uma das principais diferenças da SAF para os modelos que já existiam está na tributação.
“A diferença para o modelo do clube-empresa, constituídos nas formas já previstas pelo nosso ordenamento, é que a SAF tem uma tributação mais vantajosa que os outros tipos de regime, como a sociedade limitada ou anônima, por exemplo. Além disso, um outro benefício que podemos citar com a conversão em SAF é a centralização das dívidas cíveis e trabalhistas, configurando-se em uma alternativa viável para associações, sem fins lucrativos, que estavam em estado de insolvência”, afirma João Paulo di Carlo.
Rafael Marcondes cita também a maior transparência e fiscalização, o que consequentemente acaba gerando uma maior segurança para os investidores.
“As diferenças da SAF para o tradicional modelo associativo dos clubes ou de uma empresa tradicional, é que ele se mostra mais transparente, com regras claras de governança e com fiscalização pela Comissão de Valores Mobiliários, a CVM, o que deixa o negócio mais interessante para os investidores, por se mostrar mais seguro”, ressalta o advogado.
SAF x clube-empresa
Uma das principais dúvidas quando falamos em SAF está na diferenciação com o modelo clube-empresa, uma vez que esse já era autorizado no Brasil. Afinal, há diferença ou é a mesma coisa?
O advogado Rafael Marcondes cita que apesar de o conceito ser o mesmo, existem diferenças técnicas.
“Uma SAF será um clube-empresa, mas a recíproca não é verdadeira. Um clube-empresa pode ser constituído por meio de outro modelo empresarial, como uma limitada (LTDA) por exemplo. De forma simples, podemos dizer que clube-empresa é gênero, do qual a SAF é espécie”, explica.
“O conceito é o mesmo. Ambas têm a ideia de profissionalização do futebol, afastando-se do modelo associativo e se aproximando de um empresarial, com ideias bem claras de governança e de boa gestão. O clube-empresa já existia no país antes mesmo do advento da SAF, nos regimes previstos pelo nosso ordenamento. A principal diferença entre a SAF e os formatos de clube-empresa já existentes é a tributação, muito mais vantajosa para as SAF”, explica João Paulo di Carlo.
“Clube-empresa é um termo que se utilizava para fazer referência a um clube constituído sob a forma de empresa (normalmente uma sociedade limitada), diferenciando-o da associação civil sem fins lucrativos, forma adotada por grande parte dos clubes de futebol do Brasil. A Sociedade Anônima do Futebol (SAF), por outro lado, é um modelo empresarial novo, criado pela Lei nº 14.193/2021, que consiste num modelo empresarial similar às sociedades anônimas, mas voltado para o futebol. Clubes associações podem, portanto, constituir SAFs, transformando-se em acionistas integrais dessa nova empresa, transferir seus ativos do futebol para empresa e, em seguida, vender ações para terceiros; ou podem se transformar em SAF (hipótese na qual a associação original deixa de existir)”, acrescenta Marcel Belfiore, advogado especialista em direito desportivo.
Quais as vantagens e riscos de uma SAF?
Como tudo, migrar para o modelo SAF possui vantagens, mas também há riscos para os clubes.
“A aprovação da Lei 14.193/21 trouxe segurança jurídica aos investidores estrangeiros e é um incentivo para viabilizar a sobrevivência de clubes altamente endividados. Vejo como vantagens o capital para a realização de investimentos e para o pagamento de dívidas. Algumas, como a cível e trabalhista, poderão ser parceladas por meio do Regime de Centralização, com o comprometimento de 20% das receitas, previstas pela Lei. Da mesma forma, ainda há a possibilidade de serem negociadas com deságio, o que diminuirá consideravelmente o passivo do clube”, avalia.
Já Rafael Marcondes cita a adoção de práticas de transparência e responsabilidade como uma das virtudes da SAF.
“As vantagens da SAF provêm da sua regulamentação ser mais rígida, com diretrizes claras para os dirigentes que, como dito, vão precisar adotar práticas mais transparentes e responsáveis na sua gestão. Os riscos decorrem justamente desse regramento mais severo, que impõe consequências no caso de não observância dessas medidas, que vai da responsabilização pessoal dos gestores até mesmo falência do clube”, analisa o advogado.
Um dos riscos apontados por João Paulo di Carlo são os efeitos da falência que o clube pode sofrer.
“Em caso de resultados negativos, a entidade passará a ser regida pelas mesmas regras em vigor para outras atividades econômicas, portanto, estará sujeito aos efeitos da falência. Ademais, uma possível perda de identidade e falta de vínculo do investidor com o clube, sua torcida e sua história, podem representar um ponto negativo”, afirma.
Por que o modelo está caindo nas graças do futebol brasileiro?
É inegável que os clubes do futebol brasileiro enxergam a SAF como esperança para um futuro não tão distante. A tendência é que nos próximos meses cada vez mais times migrem para esse modelo de gestão. Mas o que explica tamanho interesse?
Segundo Marcel Belfiore, os clubes constituídos sob a forma de SAF podem atrair investidores a partir da venda de suas ações, que passarão a ser acionistas e até deter o controle do clube. Ele ressalta que “esta hipótese é, de certa forma, inviável a uma associação civil, que não permite dar controle a investidores senão pelo ‘processo político’, tampouco distribuir os lucros de suas operações, dada a sua forma de constituição”.
Além disso, o advogado ressalta que a Lei da SAF trouxe mecanismos que permitem aos clubes associações endividadas utilizarem-se de parte das receitas da SAF para pagar sua dívida e, ao mesmo tempo, evitar bloqueios judiciais de seus ativos financeiros em razão dessas dívidas.
“Isso permite aos clubes maior capacidade de organização e desempenho voltada para a geração de novas receitas. Por fim, vale dizer que esse modelo é já vem sendo testado há anos nos principais mercados europeus com sucesso, sobretudo na Inglaterra e Alemanha, o que dá um indicativo de que essa modernização é indispensável para a evolução do futebol no Brasil”, acrescenta.
Por fim, o advogado e colunista do Lei em Campo, Andrei Kampff, alerta que a migração para SAF não é sinônimo de sucesso e que a mudança precisa passar principalmente pela gestão.
“Por isso, tire da cabeça a ideia de que com a migração para empresa os ‘seus problemas acabaram’, tal qual o slogan da organização Tabajara, do Casseta e Planeta. Independentemente da natureza jurídica, seja empresa ou associação, a principal mudança no futebol tem que ser de gestão, que precisa ser profissional, séria e eficiente. Portanto, torcedor, não acredite em mágica, mas cobre sempre trabalho sério e responsável”, finaliza.
Crédito imagem: Vasco
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