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O que está em jogo: O caso Gabigol e o processo de controle de dopagem

Pela primeira vez me sento para analisar um caso de controle de dopagem em uma cadeira diferente da cadeira de auditora. Integrei o Tribunal (TJD-AD) entre os anos de 2016 a 2022, presidindo-o a partir de 2018, período durante o qual foram inúmeras as audiências de instrução das quais participei e muitos os julgamentos no Pleno do Tribunal. Conheço bem aquelas cadeiras e todas as demandas e amarras que lhes acompanham[1]. Agora sento-me já não mais numa daquelas cadeiras, com todas as restrições inerentes, necessárias e exigíveis de um julgador, mas na de quem, com a experiência angariada ao longo dos anos, vê as coisas pelo viés acadêmico, permitindo-me analisar, questionar, criticar e permitindo que, com essas ideias, outras – no mesmo sentido, em outro, complementares a ela – surjam.

A partir desse lugar [e viés] de observação [acadêmico], minha primeira intervenção recai sobre um caso que veio a público em 22 de dezembro[2], em razão de denúncia apresentada pela Procuradoria da Justiça Antidopagem em face do atleta conhecido como Gabigol, por – conforme informações colhidas na imprensa – suposta tentativa de fraude ao exame de controle de dopagem ocorrido aos 8 de abril daquele mesmo ano no centro de treinamento do Flamengo. De acordo com a publicação, “[o] atacante é acusado de dificultar a realização do exame desde a chegada dos oficiais responsáveis pela coleta ao Ninho do Urubu, às 8h40 de 8 de abril. À exceção de Gabigol, os jogadores do Flamengo fizeram o exame antes do treino das 10h”.

Informa-se também que “[d]e acordo com os responsáveis pelo exame[3], o jogador não se dirigiu a eles antes do treino, depois da atividade os ignorou e foi almoçar, tratou a equipe com desrespeito, não seguiu os procedimentos indicados, depois de 90 minutos pegou o vaso coletor sem avisar a ninguém, irritou-se ao ver que o oficial o acompanhou até o banheiro para a coleta e ao fim entregou o vaso aberto, contrariando orientação recebida”.

Segundo outra reportagem, datada de 28 de fevereiro de 2024[4], o julgamento foi marcado para o dia 18 de março de 2024, e o atleta e sua equipe teriam optado por lançar mão de prerrogativa prevista no CBA, que confere a atletas o direito a ser julgado (audiência de instrução) diretamente pelo Plenário do TJD-AD, com possibilidade de recurso para o Tribunal Arbitral do Esporte – TAS[5].

Embora seja comum associar a dopagem à presença de substância proibida no organismo do atleta (art. 114 do Código Brasileiro Antidopagem – CBA/2021[6]), esta é apenas uma de onze potenciais violações às normas antidopagem. Muitas outras existem, entre as quais a prevista no artigo 122 do Código Brasileiro Antidopagem:

Art. 122. Fraude ou tentativa de fraude de qualquer parte do processo de controle de dopagem por um atleta ou outra pessoa.

A compreensão do tipo do art. 122, para o enquadramento – ou não – da conduta à sua moldura passa, necessária e primeiramente, pelo entendimento do que deve ser considerado “parte do processo de controle de dopagem”.

O Livro V do CBA/2021 congrega especificamente, e de forma a não deixar dúvidas, as disposições atinentes ao procedimento de controle de dopagem. De acordo com essa parte do código, o processo decompõe-se em duas fases, uma a ser realizada pela ABCD e, outra a ser realizada pelo TJD-AD. Portanto, ao se referir a “parte do processo de controle de dopagem” o referido art. 122 abrange todo e qualquer momento entre a testagem do atleta e o julgamento final proferido pela Justiça.

Desta forma, não há dúvidas de que o momento da coleta de amostras dos atletas (teste) é “parte do processo de controle de dopagem”, e, como tal, subsume-se à regra/hipótese do art. 122. Resta analisar se as condutas supostamente realizadas pelo atleta naquele 8 de abril são passíveis de enquadramento nesse tipo e se a resposta a tal avaliação quanto a essa potencial subsunção fato-norma é positiva, o que resultaria na inarredável condenação de tais condutas e imposição das sanções cominadas ao tipo.

Como visto – e repito, o faço com base nas informações veiculadas pela imprensa – a conduta imputada ao atleta teria sido a de não observar/descumprir padrões de procedimento que devem ser observados em todos os testes realizados pelas organizações nacionais de controle de dopagem (NADOs, na sigla em inglês).

Tais padrões estão previstos em um documento denominado “Padrão Internacional de Testes e Investigações”, publicado pela Agência Mundial Antidopagem[7]. Tal documento prevê como padrões, por exemplo, e os transcrevo por elucidativos que são: (i) a necessidade de que o atleta, a partir do momento em que notificado sobre o controle, permaneça sob observação do agente de controle (5.4.2., “a”); (ii) a necessidade de que a amostra de urina não tenha sido manipulada, substituída, contaminada ou de outra forma fraudada (item C.1, “c”, do Anexo C); e (iii) a necessidade de que o oficial de controle testemunhe “a passagem da urina coletada” (item C.3.2. do Anexo C).

As condições para que um atraso para a coleta seja aceitável no âmbito dos padrões de teste estão exaustivamente elencadas no item 5.4.4, “b”, do Padrão Internacional. Qualquer atraso não enquadrável naquele dispositivo deve, conforme expressa previsão do item 5.4.7, ser investigado como possível fraude ao controle de dopagem[8].

Para além da necessidade de verificar se o comportamento do atleta estava em desacordo com os padrões, há um outro elemento do tipo, este de ordem subjetiva, que deve ser analisado: a intencionalidade. O tipo do art. 122 não comporta a modalidade culposa, dado se tratar, conforme previsto no Anexo I – Das Definições, de uma conduta necessariamente intencional[9]. Cabe, então, perquirir se o atleta conscientemente, ou seja, sabendo ou devendo saber que deveria se dirigir ao controle de dopagem, usou intencionalmente subterfúgios para atrasar, evitar ao máximo e/ou burlar procedimentos devidos relacionados ao controle. A pergunta que cabe ao intérprete neste ponto é: houve comportamento intencional do atleta no sentido de descumprir regras do processo de controle?

E não se está exigindo que o atleta conheça o Padrão Internacional de Testes e Investigações. Não é disso que se trata. Cabe ao atleta tão somente, agindo de acordo com as responsabilidades previstas no art. 10 do CBA/2021[10], observar estritamente as orientações que lhe são repassadas pelos agentes e oficiais de controle de dopagem, estes sim treinados para desenvolver com estrita correção todo o processo de coleta de amostras. Agindo conforme suas orientações, que, como dito, se pautam no padrão internacional, o atleta estará isento de punição. Do contrário, não.

Pelo relato feito nas reportagens, o atleta teria inobservado as recomendações dos agentes de controle destacados para aquela ação no dia 8 de abril nos seguintes momentos:

– ao descumprir – sem justificativa enquadrável no item 5.4.4. – o horário de início do exame, sendo que os demais atletas da equipe o fizeram (entre a chegada do controle e o treino, i.e., entre 8h40 e 10h);

– ao continuar descumprindo – sem justificativa enquadrável no item 5.4.4. – o horário de teste em uma segunda oportunidade em que aparentemente foi chamado (após o treino e antes do intervalo de almoço);

– ao tentar (ou lograr êxito em) fazer a coleta de amostra de urina sem acompanhamento do agente de controle de dopagem; e

– ao descumprir o protocolo de apresentação da amostra após a coleta (entrega do frasco aberto).

A meu sentir, eventual confirmação durante a instrução de que tais condutas efetivamente ocorreram não deixaria margens para dúvidas a respeito do completo e integral enquadramento na hipótese do art. 122, impondo-se a cominação da respectiva sanção, lembrando-se que, sendo o art. 122 um tipo formal, sua conformação prescinde de outro resultado  que não seja o de fraudar, ainda que sob a forma de tentativa, o processo de controle de dopagem, mote que, repito, se a instrução processual confirmar a realização das condutas tal como informadas pela imprensa, terá sido plenamente realizado pelo atleta.

Além disso, se assim o é, à figura do art. 122 é irrelevante que o resultado da amostra tenha sido positivo ou negativo. Basta-lhe o descompasso entre a conduta concreta e a esperada daquele que se vê submetido a controle de dopagem, definida previamente, e de forma objetiva, no Padrão Internacional de Testes.

Também irrelevante para o tipo do art. 122 se o atleta foi educado ou grosseiro, solícito ou frio. Tais questões, embora passíveis de potencial enquadramento em tipos específicos do CBJD[11], não têm relevância quando se trata da análise do enquadramento fático à moldura normativa da fraude ao processo de controle de dopagem.

O que é relevante, portanto, para o enquadramento no tipo do art. 122 do CBA/2021 é, pois, a resposta à seguinte pergunta: “o atleta, com seu comportamento intencional, fraudou ou tentou fraudar o processo de controle de dopagem?” Se a resposta for positiva, o enquadramento típico é claro. E observe-se que a intencionalidade está no elemento típico da conduta, ou seja, seu comportamento deve ser intencional, voltado à finalidade de atrapalhar o procedimento de controle, de não seguir as regras previstas para sua realização.

E qual a importância da observância de tais padrões? Porque um “mero” descumprimento de regras formais é considerado uma violação à norma antidopagem? O que, afinal, está em jogo?

Está em jogo o próprio controle de dopagem. Ao proteger-se a higidez do processo, que, como parte do sistema de normas, se baseia num sistema de presunções previamente estabelecidas e que visam reduzir o espaço de discricionariedade de todos aqueles que interagem no sistema de controle de dopagem, busca-se proteger a confiabilidade no próprio controle e a garantia de que TODOS os atletas serão submetidos aos mesmos protocolos e tratados em condições de igualdade.

Duas ou três horas de atraso injustificado pode ser o tempo que o atleta necessita para excretar uma substância proibida do seu organismo. Uma ou duas horas de atraso pode ser tempo suficiente para que o metabolismo tenha comportamento diverso, impactando o seu passaporte biológico. Recusar-se a que o oficial de controle de dopagem visualize “a passagem da urina coletada” pode permitir a fraude da própria coleta. Entregar o pote aberto pode permitir a manipulação da amostra no percurso. Todas essas condutas são evitadas, justamente, pela observância de regras claras, objetivas e comuns a todos, garantindo que a comunidade de atletas que acredita no jogo limpo continue acreditando e os resultados sejam validados porque conformes às regras.

Caso confirmadas as condutas noticiadas pela imprensa, o que está em jogo é o futuro do procedimento. Como garantir que outros atletas não queiram fazer também uso das mesmas “prerrogativas” de poder aparecer no exame quando lhe bem entende, de afrontar protocolos relevantes (criados, inclusive, para proteção dos próprios atletas), de fazer o que bem entenda quando selecionado para um controle? Aplicar com tecnicidade, de acordo com as provas dos autos, a figura típica do art. 122 garante a manutenção da confiabilidade em relação ao próprio processo de controle de dopagem.

O que está em jogo? O próprio sistema.

Crédito imagem: Gabigol/Twitter

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Tatiana Mesquita Nunes

Mestre em Direito pela USP

Ex-Presidente do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem

@prof_tatiana_mesquita_nunes

[1] A principal delas é a amarra relacionada à necessidade de manter a confidencialidade dos processos e, ainda que se tornem públicos (como é o caso), a necessidade de discrição que acompanha o desempenho dessa importante missão de julgar outrem.

[2] https://ge.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/2023/12/22/gabigol-do-flamengo-e-denunciado-por-tentativa-de-fraude-em-exame-antidoping.ghtml. Último acesso em 13/3/2024.

[3]  Na forma do art. 296, do CBA/2021, as informações prestadas pelas autoridades antidopagem, como é o caso dos oficiais de controle de dopagem, gozam de presunção de veracidade, sendo afastada somente por conjunto probatório que demonstre o contrário.

[4] https://www.uol.com.br/esporte/colunas/olhar-olimpico/2024/02/28/gabigol-tem-julgamento-marcado-por-infracao-antidoping-e-pode-pegar-gancho.htm. Último acesso em 13/3/2024.

[5] O procedimento é fruto de alteração introduzida no Código Brasileiro Antidopagem pela Resolução CNE nº 68, de 15 de dezembro de 2022, a qual incluiu os arts. 303-A, 303-B e 303-C, prevendo o procedimento extraordinário, facultativo para atletas de nível internacional ou participante de evento internacional.

[6] Art. 114. Presença de substância proibida, de seus metabólitos ou de marcadores na amostra de um atleta.

[7] O Padrão de Testes e Investigações vigente quando da conduta do atleta pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico:  https://www.gov.br/abcd/pt-br/composicao/regras-antidopagem-legislacao-1/padroes-internacionais-2/2023/2022_09_23_approved_ec_isti_2023_clean_final3.pdf. Último acesso em 13 de março de 2024.

[8] O item 5.4.7 do Padrão Internacional utiliza a terminologia “failure to comply”, diferente da terminologia “tampering”, utilizada no Código para fazer alusão à fraude. Nada obstante, o próprio Padrão, ao conceituar no item 3.3. o que se considera “failure to comply” afirma ser “A term used to describe anti-doping rule violations under Code Articles 2.3 and/or 2.5”. A fraude está tipificada justamente no art. 2.5. do Código Mundial.

[9] Fraude: “conduta intencional, ou sua tentativa, que subverte o processo de controle de dopagem não incluída na definição de métodos proibidos, a qual inclui, entre outras práticas, oferecer ou aceitar propina para realizar ou deixar de realizar um ato, impedir a coleta de uma amostra, afetar ou impossibilitar a análise de uma amostra, falsificar documentos apresentados a uma Organização Antidopagem, comissão de AUT ou Tribunal, obter depoimento falso de testemunhas ou cometer outros atos fraudulentos voltados a afetar a gestão de resultados ou a imposição de consequências além de qualquer outro tipo de interferência intencional que for semelhante ou tentativa de interferência relacionada a qualquer aspecto do controle de dopagem”.

[10] Art. 10. São obrigações e responsabilidades do atleta, sem prejuízo de outras previstas neste Código ou na legislação de regência: I – conhecer e cumprir as regras deste Código e da legislação antidopagem; II – estar sempre disponível para a coleta de amostras, inclusive em período fora de competição; (…).

[11] Como é o caso do art. 243-F, que prevê a seguinte figura típica: “[o]fender alguém em sua honra, por fato relacionado diretamente ao desporto”.

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