Na última edição da coluna mostrei os registros de reuniões do Conselho Nacional de Desportos – CND acerca do julgamento de uma demanda levada por pessoas da área do esporte lideradas pelo ex-craque de futebol A. Friedenreich.
O ano era 1941 e este foi o primeiro julgamento realizado pelo colegiado de governo que viria a se tornar não apenas o ápice da Pirâmide Olímpica brasileira como também o órgão de cúpula da justiça esportiva do país.
Mas o que eles pediram ao CND?
Segundo o Parecer n° 1 que foi aprovado pelo CND em 5 de agosto de 1941, os demandantes requereram:
“providências para que seja integralmente observado o código do futebol, ‘cujos dispositivos’ afirmam, ‘está sendo desrespeitado pelo menos em duas de suas disposições essenciais. O apelo indica que o desrespeito às duas disposições consiste: a) na criação do cargo de cronometrista e b) na elevação do número do juizes de linha de dois para quatro.”
Reparem bem: Friedenreich e seus colegas foram até o Estado brasileiro, por meio do CND, requerer que o governo determinasse à Confederação Brasileira de Desportos – CBD (entidade responsável à época pelo futebol no país) que respeitasse as regras do Código de Futebol.
Entendam: esportistas vão até o órgão requerer a intervenção do Estado em uma entidade integrante da Lex Sportiva, a CBD, para que ela mudasse as regras de jogo no futebol por aqui. Obviamente que eles estavam cientes que, com a então recente edição da primeira Lei Geral do Esporte – Decreto-lei n° 3.191, de 1941, o CND passava a substituir o Comitê Olímpico Brasileiro – COB e a CBD no topo da estrutura esportiva, olímpica, de nosso país.
Mais bizarro ainda, pediram que a ordem do CND à CBD fosse no sentido de que ela respeitasse justamente uma disposição da Federação Internacional de Futebol Associação – FIFA quanto às regras de jogo da modalidade, ou seja, seu Código de Futebol.
Ainda que não tenha se furtado ao papel de “interventor” no esporte brasileiro, o CND aprovou um parecer repleto de ironias escritas por seu autor, um Almirante da Marinha. É o que reproduzo abaixo:
“…o caso deste Conselho recomendar à C. B. D. que se dirija ao International Football Association Board, conforme os estatutos deste facultam, sugestões nesse sentido uma vez que seria lamentavel modificar aquele decreto-lei ou permitir que o futebol se praticasse com desrespeito ao mesmo.”
O “chiste” do Almirante Alvaro de Vasconcello, secundado por João Lyra Filho e demais conselheiros (ainda ausente Luis Aranha), é tão espirituoso que chega ao ponto de dizer que ou a FIFA se faz respeitar ou o Estado Novo deverá modificar o Decreto-lei n° 3.199, de 1941, para dizer que a CBD poderia contrariar a entidade mundial que a subordinava. Isso porque, segundo o próprio militar bem lembrou, a norma baixada por Getúlio Vargas trazia em seu art. 43 um comando direto para que as entidades nacionais observassem as regras emanadas do sistema transnacional do esporte, a Lex Sportiva:
“Cada confederação adotará o código de regras desportivas da entidade internacional a que estiver filiado, fá-lo-á observar rigorosamente pelas entidades nacionais que lhe estejam direta, ou indiretamente vinculadas”.
A ironia estava, portanto, justamente no fato de o CND ser demandado para mandar à sua subordinada CBD que viesse a voltar à conformidade como que determinava o Código da FIFA, ao qual ela também se subordinava.
E, assim, determinou expressamente que a CBD revogasse as regras referentes à arbitragem que estavam contrariando as normas da FIFA.
Imagino você leitor mentalizando a cena de quase 80 anos atrás quando a FIFA recebeu uma ordem estatal dizendo que a sua subordinada brasileira deveria obedecer a ela própria.
Tom Jobim tinha toda a razão: “O Brasil não é para amadores”.