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O racismo no futebol brasileiro está na origem da intervenção do Estado no esporte

A década de 1920 teve por marca desorganização interna tanto da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) como dos campeonatos que se organizavam. A participação do Brasil nos Jogos Olímpicos de 1920 foi permeada por lances de grande confusão causada pela falta de planejamento prévio – por problemas de navegação, os 29 atletas da delegação por pouco não perdem a chance de participar do evento.

Porém, o que agrava a situação de divisão do esporte no país são os problemas relacionados ao profissionalismo.

Sua entrada no futebol brasileiro foi um dos momentos mais decisivos de sua história. A vedação da participação de negros, pobres e militares de baixa patente entre os atletas nas equipes durante as primeiras décadas do século XX, disfarçada na ideia de vedação de profissionalização, resultava em prejuízos crescentes aos clubes e mesmo à escalação da Seleção Brasileira.

Essa história que dividia São Paulo e Rio de Janeiro, federações e CBD e até famílias influentes tem como raiz justamente o racismo e a consequente manutenção do que se denominava por “amadorismo marrom”.

Nesse período, a organização esportiva nacional, incluindo o futebol, se dava de modo necessariamente amadorístico. Isso também valia para o aspecto do trabalho do atleta ou, melhor dizendo, do não trabalho. As relações entre entidades e praticantes não ensejava vínculo de trabalho ou remuneração fixa. Em regra, os atletas eram oriundos de famílias abastadas, e ainda vicejava no Brasil certo desprezo das classes proprietárias ao trabalho formal.

Ainda que organizado de modo autônomo e quase totalmente desregulado do ponto de vista das normas oficiais, o esporte brasileiro vivenciava nos anos 1920-1930 a mais explícita adesão ao atavismo racista e classista, vedando-se diretamente a participação de negros e trabalhadores pobres na prática esportiva. As proibições ainda resultaram na impossibilidade de remuneração do atleta-trabalhador, ou seja, a pessoa que necessitava se dedicar ao esporte profissionalmente.

Na argúcia de Mário Filho, em livro que hoje compõe obra histórica – “O Negro no Futebol Brasileiro”, 1964 (p. 30): “O remo era para privilegiados, para os seres superiores”.

Mesmo com a tendente valorização do trabalho no início do século XX, o futebol, menos popular que o remo, porém de maior afetuosidade entre as classes trabalhadoras, era descrito pelo mesmo autor também quanto à sua prática elitista:

Para entrar no Fluminense o jogador tinha de viver a mesma vida de um Oscar Cox, de um Félix Frias, de um Horácio da Costa Santos, de um Francis Walter, de um Etchegaray, todos homens feitos, chefes de firmas, empregados de categoria de grandes casas, filhos de papai rico, educados na Europa, habituados a gastar. Era uma vida pesada. Quem não tivesse boa renda, boa mesada, bom ordenado, não aguentava o repuxo. (id. ibid., p. 10).

Na obra estão expostas as razões diretas para que a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA) – antecessora da Federação de Futebol do Rio de Janeiro – tenha adotado em seu estatuto a explícita vedação de trabalhadores nos clubes a elas filiados: a postura do Vasco da Gama de escalar jogadores negros e pobres que se remuneravam do ofício esportivo em seu time de futebol e, consequentemente, sua necessária exclusão dos quadros da entidade.

Ocorre que a complexidade crescente do ambiente socioeconômico nacional criava um problema à política esportiva oficial segregacionista. O atrativo do futebol já era tão grande que começava a se difundir como potencial de receitas econômicas já na passagem dos anos 1920 para 1930. Ademais, craques como Friedenreich – filho de mãe negra – e Leônidas da Silva, grande ídolo negro, tornam-se ídolos nacionais, chegando o segundo a estrelar peças publicitárias de marcas expoentes – do “Diamante Negro”, célebre chocolate não menos conhecido, ao qual emprestou seu apelido.

Assim Mário Filho, naquele mesmo livro monumental (p. 255), descrevia o fenômeno, quando Leônidas já estava contratado pelo São Paulo F.C.:

E, depois, Leônidas não era o futebol? A paixão pelo futebol cresceu. A paixão por Leônidas. Quando uma casa comercial queria armar uma vitrina de sucesso, já sabia. Botava um retrato de Leônidas lá dentro, apinhava-se gente na calçada, o trânsito ficava impedido.

O melhor anúncio era um anúncio de Leônidas, fôsse o que fôsse. De uma pasta de dentes, o sorriso de Leônidas; de uma loção para cabelo, o penteado de Leônidas, repartido de lado. Até de rádio, de geladeira.

Isso não significava o fim do preconceito racial – o próprio Mário Filho narra no mesmo livro que, quando havia fracasso esportivo, o racismo voltava à tona, mas reforça a tese do autor da ascensão social do negro por meio do futebol.

Como se viu, o tendencial movimento de o futebol passar a ser importante gerador de receitas e o notório problema em torno da proibição de negros, pobres e profissionais no esporte levaria ao “Dissídio Esportivo” ou “Cisão Esportiva” do início dos anos de 1930. Além das próprias necessidades internas referentes à iminente profissionalização do esporte, desde a década de 1920, o Brasil sofria com êxodo de jogadores de futebol para a Europa, sobretudo Itália, em razão do oferecimento da possibilidade de profissionalização já por lá estabelecida.

E continuarei nas próximas colunas a falar sobre os efeitos da Cisão Esportiva na intervenção do Estado no esporte brasileiro e, consequentemente, no protagonismo de João Lyra Filho na área.

Continuaremos a vasculhar os porões do Direito Esportivo de nosso país.

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