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O reconhecimento de títulos no esporte: um debate essencialmente jurídico

Por João Marcos Mariano

Introdução

Um dos principais debates no mundo esportivo se refere, certamente, aos títulos de cada clube, ou seleção. Não é incomum encontrar discussões, nos mais diversos lugares, sobre qual clube é “maior”, baseado, muitas vezes, no número de títulos conquistados.

No entanto, a referida discussão está envolta em controvérsias, por diversas vezes relacionadas aos tempos mais remotos do futebol (outras vezes nem tanto, como veremos adiante), nos quais a organização do sistema desportivo ainda não era sólida e clara.

Em tais situações, há o emprego de diversos argumentos para que os títulos sejam legitimados, dentre os quais: cobertura jornalística, popularidade, reconhecimento por instituições atuais (como, por exemplo, a FIFA).

A partir disso, o presente artigo tem o objetivo de demonstrar que o debate por trás do reconhecimento de títulos no futebol é eminentemente jurídico (e até moral), muito relacionado aos conceitos de legalidade, legitimidade, eficácia e efetividade.

O artigo é composto por duas partes. Numa primeira parte, são apresentados os conceitos legais fundamentais à discussão aqui pretendida. Já na segunda parte, tais conceitos são aplicados à discussão desportiva, discutindo os casos mais relevantes para o debate aqui proposto, que possibilitam a verificação da hipótese supramencionada.

Por fim, é necessário pontuar que o presente trabalho não tem como objetivo efetuar um juízo de valor sobre quaisquer argumentos, mas simplesmente pontuar a natureza dos mesmos.

Conceitos fundamentais

Cumpre definir conceitos basilares à discussão proposta, quais sejam legalidade, legitimidade, eficácia e efetividade.

Legalidade

É possível afirmar que a legalidade é o princípio basilar do Estado de Direito, cuja própria definição é indissociável do referido princípio. Cumpre empregar a definição de Antônio Carlos Wolkmer para a questão: “a legalidade reflete fundamentalmente o acatamento a uma estrutura normativa posta, vigente e positiva” (WOLKMER, 1994, p. 180)[1].

Do mesmo modo, faz-se necessário pontuar o que Celso Antônio Bandeira de Mello diz sobre o tema: “é específico do Estado de Direito, é justamente aquele que o qualifica e que lhe dá a identidade própria”(MELLO, 2013, p. 103)[2].

Em síntese, pode-se afirmar que a legalidade consiste no governo das leis, em contraposição ao arbítrio. Do mesmo modo, é possível dizer que, por esse escopo, ilegal é tudo aquilo que é contrário à lei ou, em certos casos, aquilo que ocorre sem permissão da lei.

Legitimidade

O conceito de legitimidade difere um pouco do que se entende por legalidade, embora sejam conceitos próximos. Cumpre destacar a concepção de Wolkmer sobre o assunto: “ (a legitimidade) incide na esfera da consensualidade dos ideais, dos fundamentos, das crenças, dos valores e dos princípios ideológicos” (WOLKMER, 1994, p. 180)[3].

Do mesmo modo, faz-se necessário destacar o entendimento de Bobbio sobre o assunto:

[…] o poder legítimo é um poder cuja titulação se encontra alicerçada juridicamente; o poder legal é um poder que está sendo exercido de conformidade com as leis. O contrário de um poder legítimo é um poder de fato; o contrário de um poder legal é um poder arbitrário. (BOBBIO et al., 1993, p. 674)[4]

Com base em ambas definições, é possível concluir que o conceito de legitimidade se relaciona à qualidade da norma, ou seja, a um juízo de valor sobre o conteúdo da norma, uma adequação aos ideais de justiça, de cada um.

Eficácia

Sobre o conceito de eficácia jurídica, é forçoso destacar a concepção de José Afonso da Silva sobre o tema: “à aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, como possibilidade de sua aplicação jurídica” (SILVA, 1999, p. 66)[5].

Do mesmo modo, ensina Marcos Bernardes de Mello: “(a eficácia) define  o  efeito  que  tem  a  norma  jurídica  de  juridicizar  o  seu  suporte  fático quando concretizado no mundo das realidades, gerando o fato jurídico” (MELLO, 2003, p. 1).

Conclui-se, portanto, que o conceito de eficácia da norma se relaciona à sua capacidade de realizar seus objetivos, de concretizar o que está nela disposto.

Efetividade

O conceito de efetividade introduz um escopo maior de análise, pois realiza um juízo de aceitação social da norma. Sobre isso, Hans Kelsen fornece uma contribuição valiosa: “é o fato real de ela (a norma) ser efetivamente  aplicada  e observada,  da  circunstância  de  uma  conduta  humana conforme a norma se verificar na ordem dos fatos” (KELSEN, 1999, p. 11)[6].

Já Marco Bernardes de Mello afirma que: “A  realidade  do  direito,  a  sua  efetividade,  desse  modo,  revela-se  na coincidência  do comportamento social com  os modelos e padrões  traçados pelas normas jurídicas (=efetividade da norma jurídica)” (MELLO, 2003, p. 13-14)[7].

Em síntese, a efetividade julga a adesão social a uma referida norma.

Aplicação na discussão sobre títulos

A aplicação dos conceitos anteriormente descritos pode ser identificada em vários debates, que serão abordados a seguir.

Uruguai e as quatro estrelas

Recentemente, o jornal “A Bola”, de Portugal, indicou que a FIFA passaria a reconhecer o Uruguai como Tetracampeão do mundo de futebol[8], pelas Olimpíadas de 1924 e 1928 (além dos títulos das Copas do Mundo de 1930 e 1950).

O grande ponto por trás desse debate é a possibilidade de um título mundial anterior à própria constituição de uma Copa do Mundo, organizada pela FIFA. Vemos aqui, portanto, uma questão de legalidade e legitimidade.

O lado favorável ao reconhecimento do tetracampeonato afirma que, embora não houvesse Copa do Mundo à época, o torneio era organizado pela FIFA e as seleções utilizavam força máxima no torneio (e não o sub-23, como ocorre atualmente). Em outras palavras, o argumento afirma que o reconhecimento é legítimo, pois se adequa aos ideais (como mencionado por Wolkmer), às crenças do que se entende por “campeão do mundo”.

Já o outro lado, afirma que o reconhecimento seria “ilegal” e “ilegítimo”, pois seria pré-requisito para o conceito de “campeão do mundo” a organização de um torneio separado das Olímpiadas, com maior protagonismo da FIFA.

1987

O Campeonato Brasileiro de Futebol de 1987 é uma das controvérsias mais emblemáticas e significativas do futebol brasileiro. Em apertada síntese[9], divisões políticas e uma crise econômica no cenário futebolístico nacional causaram a realização de “dois campeonatos” em 1987: a Copa União (também conhecida como Módulo Verde), organizada pelo clube dos 13 (organização dos clubes mais “poderosos” do futebol brasileiro), cujo campeão foi o Flamengo, e o Troféu Gomes Pedrosa (também conhecido como Módulo Amarelo), organizado pela Confederação Brasileira de Futebol, cujo campeão foi o Sport.

Embora o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha decidido favoravelmente ao Sport (Recurso Extraordinário 881864/DF), o debate ainda é intenso, com argumentos sólidos para cada lado.

O lado que argumenta em favor do reconhecimento do Flamengo como campeão de 1987 se alicerça principalmente no conceito de efetividade, afirmando que era o campeonato mais visto à época, com maior cobertura midiática e com os clubes mais populares. Portanto, o Flamengo seria o campeão por maior adesão e legitimação social à Copa União.

Já o outro lado, favorável ao Sport, se alicerça fundamentalmente na legalidade, por ser o campeonato organizado pela CBF e por, inicialmente, o clube dos 13 ter aceitado a jogar também com os clubes do Módulo Amarelo, mas ter voltado atrás, sem qualquer acordo com a entidade.

Os mundiais de 1951 e 2000

Corinthians e Palmeiras, dois grandes rivais paulistas, também possuem dois títulos que são alvo de grandes discussões, ambos mundiais.

O clube alviverde afirma ser o primeiro campeão mundial, em 1951, pois conquistou o título da Taça Rio no referido ano. Os principais argumentos favoráveis ao reconhecimento do título como mundial se referem à presença de fortes clubes europeus no torneio e também à cobertura da mídia, especialmente do jornal “A Gazeta Esportiva”, que estampou “Palmeiras, campeão do mundo!”[10] em sua capa, logo após o título.

Por outro lado, os principais argumentos contrários ao reconhecimento do título como mundial dizem respeito ao fato de o torneio não ter sido organizado pela FIFA (que, de acordo com tais argumentos, deveria ao menos “referendar” o torneio para que fosse considerado mundial) e também pelo fato de não haver sequer torneios continentais à época (a Liga dos Campeões da UEFA só viria em 1955, a Copa Libertadores da América em 1960), o que impossibilitaria a organização de um torneio mundial.

É possível perceber novamente um choque de legitimidade (e efetividade) e legalidade, pois o lado favorável ao reconhecimento afirma que a ideia de “campeão do mundo” se adequa ao vencedor da Taça Rio de 1951, mesmo sem organização da FIFA ou sequer existência de torneios continentais. Por outro lado, os argumentos contrários se baseiam na legalidade, pois o campeão mundial deve partir, a princípio, de um torneio organizado e/ou chancelado pela FIFA.

O caso do mundial de clubes de 2000 é semelhante, no qual o lado favorável ao reconhecimento do título se alicerça no fato de que a competição foi organizada pela FIFA e reunia diversos clubes poderosos a nível internacional.

Por outro lado, a parte contrária ao reconhecimento afirma que o torneio reunia clubes que não haviam conquistado as competições internacionais daquele ano, como Vasco e Corinthians (os finalistas) e que o verdadeiro campeão mundial veio do confronto entre Real Madrid e Boca Juniors, campeões dos torneios continentais em 2000, e que se enfrentaram no final do ano, com vitória do time argentino.

Do mesmo modo, evidencia-se aqui um conflito entre legalidade e legitimidade (também com efetividade, numa perspectiva de adesão social ao mundial organizado pela FIFA naquele ano).

Conclusão

Após a análise efetuada, é possível concluir que os conceitos jurídicos estão presentes de forma sólida na discussão sobre títulos e até sobre a “grandeza” de um clube. Desse modo, é mister que os debates sérios sobre o tema recorram a tais elementos, para que as conclusões sejam mais precisas e justas.

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João Marcos Mariano é bacharel em direito pela UNICURITIBA, pós-graduando em direito e processo penal pela FESP e membro do grupo de estudos em direito desportivo da PUCPR.

BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO. G. 1993. Dicionário de política. Brasília. UNB, 2 v.;

ENTENDA A CONFUSÃO DO CAMPEONATO DE 1987 (EXPLICAÇÃO COMPLETA). Publicado por Ubiratan Leal em 27 de novembro de 2019. 1 vídeo (31 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gmbM4uv8miI. Acesso: Acesso: 22.abril.2022;

HUMBERTO, Lucas. Concorrência? Uruguai será declarado tetracampeão do mundo pela FIFA; entenda. Portal 90 min, 30 de junho de 2021. Disponível em: https://www.90min.com/pt-BR/posts/concorrencia-uruguai-sera-declarado-como-tetracampeao-mundial-pela-fifa-entenda. Acesso: 22.abril.2022;

KELSEN, Hans.Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999;

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013;

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed., rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 1999;

VEJA FOTOS DA COPA RIO DE 1951. Gazeta esportiva. São Paulo – Acervo Gazeta Press. Disponível em: https://www.gazetaesportiva.com/fotos/veja-fotos-da-copa-rio-de-1951/#foto=1. Acesso: 22.abril.2022;

WOLKMER, Antônio Carlos. Legitimidade e legalidade: uma distinção necessária. In: Revista de Informação Legislativa, n. 124. Brasília, 1994.

[1] WOLKMER, Antônio Carlos. Legitimidade e legalidade: uma distinção necessária. In: Revista de Informação Legislativa, n. 124. Brasília, 1994, p. 180.

[2] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013, p. 103.

[3] WOLKMER, op. cit, p. 180.

[4] BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO. G. 1993. Dicionário de política. Brasília. UNB, 2 v., p. 674

[5] SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed., rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 166.

[6] KELSEN, Hans.Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 11

[7] MELLO, op. cit, p. 13-14.

[8] Mais informações em: https://www.90min.com/pt-BR/posts/concorrencia-uruguai-sera-declarado-como-tetracampeao-mundial-pela-fifa-entenda

[9] Para uma explicação completa do ocorrido em 1987, assista ao vídeo do jornalista Ubiratan Leal sobre o tema:  https://www.youtube.com/watch?v=gmbM4uv8miI&t=191s

[10] VEJA FOTOS DA COPA RIO DE 1951. Gazeta esportiva. São Paulo – Acervo Gazeta Press. Disponível em: https://www.gazetaesportiva.com/fotos/veja-fotos-da-copa-rio-de-1951/#foto=1. Acesso: 22.abril.2022.

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