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O Regime Centralizado de Execuções e a saúde econômico-financeira dos clubes

Por Erick Regis[1] e Tadeu Soares[2]

A consulta singela à doutrina especializada ratifica aquilo que certamente já parece claro ao leitor: o futebol é “o esporte mais popular do mundo e é considerado o mais importante no conjunto de todos os esportes”.[3]

Entre diversas características e diante de tantas questões relevantes que permeiam o cenário futebolístico, de ordem econômico-financeira ou não, salta aos olhos um aspecto próprio e que traz a essa modalidade desportiva, inegavelmente, a condição de vitrine geral dos esportes em todo o mundo: as negociações milionárias envolvendo atletas renomados, intermediários e equipes dotadas de elevadíssimo poder aquisitivo, que disputam as principais ligas do mundo. O futebol, nessa perspectiva, apresenta-se como um propulsor econômico-financeiro.

Não é preciso nem mesmo ser um apreciador deste esporte para que, no dia a dia, se tenha ciência acerca das transferências de atletas renomados e, especialmente, sobre os valores envolvidos nesses negócios. A repercussão é tão intensa – tanto na esfera desportiva, quanto fora desta seara, com foco no mercado e na economia – que a informação acaba se difundindo por diversos veículos midiáticos, alcançando até mesmo o leitor/telespectador/ouvinte desinteressado no tema.

Para que se tenha uma noção geral da relevância do futebol, especialmente para a economia, no dia 5 de setembro de 2021, a FIFA publicou, em seu sítio eletrônico, relatório intitulado FIFA ten years international transfer report[4] (“Relatório de dez anos de transferências internacionais da FIFA”), no qual se constata que, entre os anos de 2011 e 2020, foi movimentado, apenas no que tange às transferências internacionais de atletas, um valor total de US$ 48,5 bilhões (hoje, algo em torno de R$ 300 bilhões), entre mais de oito mil clubes.

A emblemática transferência do atleta Neymar Jr., da equipe do Barcelona para o clube Paris Saint German, foi reconhecida como o negócio de maior valor e repercussão econômica durante o lapso temporal sobre o qual se debruçou o estudo.

Diga-se mais: entre 204 nacionalidades de atletas transferidos na década, o Brasil ocupou a primeira posição, com um total de 15.128 jogadores negociados. Para se ter uma vaga noção da relevância do Brasil no mercado de transferências relacionadas ao futebol, com base nos dados estatísticos, objetivos e oficiais apresentados no relevante estudo realizado pela FIFA, basta uma simples comparação com o número de atletas de nacionalidade argentina, que ocuparam a segunda posição por nacionalidade de atletas transferidos, com um total de 7.444 transferências.

O destaque do Brasil no futebol internacional vai além. Com cinco títulos mundiais[5] e, portanto, na condição de maior vencedor do principal torneio do mundo – a FIFA World Cup (“Copa do mundo da FIFA”) –, o Brasil é, sem dúvida, uma potência futebolística internacional.

Nacionalmente, o futebol também representa a modalidade desportiva mais difundida e aclamada pela população. Trata-se de uma verdadeira “paixão nacional”; não há dúvida. No entanto, curiosamente – e infelizmente –, se o futebol brasileiro goza de prestígio em todo o mundo, internamente, o cenário é crítico. Parece ser contraditório. E, de fato, assim o é.

Principal centro de exportação de atletas de elevado nível para as principais ligas do mundo; país de nacionalidade do atleta com o valor mais alto a título de transferência durante a década passada e maior campeão histórico da principal competição do mundo na modalidade. Sim, esse é o Brasil do futebol. No entanto, a realidade no cenário interno não permite qualquer regozijo.

O futebol brasileiro, em dimensões nacionais, está sistematicamente em crise econômico-financeira; e não é de hoje. O cenário é dual: é como se existissem, em um único país, internacionalmente e nacionalmente, dois contextos diametralmente opostos atrelados à mesma modalidade desportiva.

Apenas a título ilustrativo, há estudos que indicam que, no ano de 2020 – considerando-se, é claro, a piora imposta por um cenário pandêmico que atingiu diretamente todos os setores da vida civil –, a dívida somada dos clubes nacionais superou o valor de R$ 10 bilhões. Trata-se, a bem dizer, do maior valor da história, ultrapassando o valor de aproximadamente R$ 9 bilhões, referente ao ano de 2019, já histórico na oportunidade.[6]

O estudo em referência dispõe, ainda, acerca de entidades de prática desportiva que, pasme-se, sustentam um passivo de mais de R$ 1 bilhão; outras, surpreendentemente, tangenciam esse valor. A natureza dessas dívidas é variada: de dívidas trabalhistas, passando por desfalques tributários até chegar às pendências cíveis. Trata-se de um cenário de terra arrasada que compromete: (i) o custeio dos profissionais do clube em geral e outras despesas administrativas, (ii) o custeio dos atletas e, (iii) por conseguinte, como verdadeiro corolário dessa miríade de consequências negativas, traz prejuízo ao próprio desempenho desportivo da agremiação nas competições por ela disputadas.

A dinâmica parece evidente: da crise econômica à crise desportiva. Infelizmente, o fator que permeia a realidade da grande maioria das equipes nacionais de futebol, como se vê, pode ser resumido em uma palavra – citada, inclusive, mais vezes do que se gostaria no período que introduz este parágrafo: crise.

Discussões acerca da reconfiguração institucional dessas entidades, usualmente organizadas como associações civis, em sua grande maioria – inclusive, por motivos históricos que fogem ao objetivo deste estudo –, não são propriamente uma novidade. Sociedades empresárias ou associações? Esse questionamento é mais antigo do que pode parecer e se encontra na “ordem do dia” em razão de uma relevante inovação normativa que, se não soluciona automaticamente o grave cenário de crise estrutural do futebol nacional – e nem seria possível –, oferece, sem dúvida, alternativas interessantes.

Faz-se alusão à Lei nº. 14.193/2021, publicada no dia 9 de agosto de 2021, data de sua entrada em vigor: a já popularmente denominada “Lei da Sociedade Anônima do Futebol” ou “Lei da SAF” – para os fins deste estudo, será adotada a denominação “LSAF”. Essa Lei, de acordo com a sua ementa, “institui a Sociedade Anônima do Futebol e dispõe sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico; e altera as Leis nºs 9.615, de 24 de março de 1998, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)”.

Sob perspectiva axiológica e teleológica, na toada do “Parecer”[7] apresentado ao Senado (ainda durante a tramitação do PL nº. 5.516/2019, que deu origem à LSAF), a Lei busca: “ser uma alternativa viável e lógica para o aprimoramento do futebol e seu ecossistema”.

Nesse contexto, de acordo com o art. 1º da LSAF, a Sociedade Anônima do Futebol (“SAF”) deve ser compreendida como uma “companhia cuja atividade principal consiste na prática do futebol, feminino e masculino, em competição profissional, sujeita às regras específicas desta Lei e, subsidiariamente, às disposições da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998”.

Visando à recuperação econômico-financeira das entidades de prática desportiva da modalidade futebolística – e, diretamente ou indiretamente, ao resgate do seu desempenho desportivo –, o novel diploma legal trouxe consigo incentivos fiscais, instrumentos próprios de captação de recursos financeiros perante o mercado e meios de reorganização de passivos.

Fato é que a LSAF traz uma base sólida, capaz de auxiliar as entidades de prática desportiva voltadas à modalidade futebolística em sua árdua jornada de equilibrar receitas e finanças, ajudando a superar, assim, a crise que sistematicamente se instaurou no futebol nacional, contribuindo, ainda, com a necessária movimentação da economia nacional.

Entre os instrumentos previstos na nova Lei, encontra-se a figura do Regime Centralizado de Execuções (“RCE”), tema central da abordagem proposta neste estudo, cuja utilização é cabível, em aspecto geral, para a reorganização das dívidas trabalhistas e cíveis dos clubes brasileiros. O presente estudo se debruçará sobre as dívidas de natureza cível, apresentando-se, como exemplos práticos, dois casos já em tramitação perante o Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro.

Com efeito, a aplicação do RCE está prevista no art. 13, inciso I, da LSAF, que dispõe, em suma, que: o clube [legalmente definido nos termos do art. 1º, inciso I, da LSAF, como “associação civil, regida pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), dedicada ao fomento e à prática do futebol”] ou a pessoa jurídica original [legalmente definida nos termos do art. 1º, inciso II, da LSAF, como: “sociedade empresarial dedicada ao fomento e à prática do futebol”] poderá efetuar o pagamento das obrigações diretamente aos seus credores, ou, a seu critério, pelo concurso de credores, por intermédio do Regime Centralizado de Execuções.

A dinâmica do RCE está prevista nos artigos 14 e seguintes da LSAF. Em seu caput, o art. 14 define o RCE como o ato de “concentrar no juízo centralizador as execuções, as suas receitas e os valores arrecadados na forma do art. 10 desta Lei, bem como a distribuição desses valores aos credores em concurso e de forma ordenada”. Ao fazer alusão à regra prevista no art. 10, refere-se, a norma, aos valores a serem pagos pelo clube ou pela pessoa jurídica original aos seus credores.

Nesse sentido, assim dispõe a LSAF: as despesas com os credores serão pagas (i) com receitas próprias, porventura auferidas pelo clube ou pela pessoa jurídica original; (ii) com a destinação de 20% (vinte por cento) das receitas correntes mensais auferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, conforme plano aprovado pelos credores, e (iii) com a destinação de 50% (cinquenta por cento) dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida da SAF, na condição de acionista.

O Juízo competente, via de regra, para processar e apreciar questões atreladas ao RCE, será denominado Juízo centralizador, o qual deve ser definido internamente pelas normas de organização do respectivo Tribunal. Com base nos termos legais, diante da eventual ausência de um órgão centralizador, no âmbito do Poder Judiciário, o Juízo centralizador corresponderá, então, àquele que tiver ordenado o pagamento da dívida em primeiro lugar.

A LSAF admite que o clube ou a pessoa jurídica original – que, portanto, caracterizam os sujeitos aos quais a Lei atribui a legitimidade ativa ad causam – apresente o requerimento de centralização.

A análise inicial acerca da concessão do RCE é de competência da Presidência do respectivo Tribunal de Justiça, em relação às dívidas cíveis, devendo ser respeitados todos os requisitos do plano de credores. Caberá, ainda, nos termos da Lei, ao próprio Poder Judiciário, no exercício de suas funções regulamentares internas, nos termos do art. 15 da LSAF, disciplinar a dinâmica do RCE. Caso o Tribunal competente não possua regulamentação nestes termos, caberá ao Superior Tribunal de Justiça suprir a omissão.

Uma vez deferido o requerimento de centralização, que permitirá ao clube a realização do pagamento dos seus credores em um prazo inicial de 6 (seis) anos, será, então, nos termos do art. 16 da LSAF, concedido ao requerente um prazo de 60 (sessenta dias) para apresentação do plano de credores, o qual deverá conter, obrigatoriamente, os seguintes documentos: (i) o balanço patrimonial; (ii) as demonstrações contáveis relativas aos 3 (três) últimos exercício sociais; (iii) as obrigações consolidadas em execução e a estimativa auditada das suas dívidas ainda em fase de conhecimento; (iv) o fluxo de caixa e a sua projeção de 3 (três) anos; e (v) o termo de compromisso de controle orçamentário.

Tudo isso, sem prejuízo de que se forneça, ainda, ao Juízo centralizador, o endereço do website eletrônico no qual serão publicadas as seguintes informações: (i) entre os documentos obrigatórios, a serem apresentados com o requerimento de centralização: (i.a) o conteúdo das obrigações consolidadas em execução e a estimativa auditada das dívidas ainda em fase de conhecimento, (i.b) o fluxo de caixa e a sua projeção de 3 (três) anos e (i.c) o termo de compromisso de controle orçamentário; (ii) a ordem da fila de credores com seus respectivos valores individualizados e atualizados e (iii) os pagamentos efetuados no período.

Possuem preferência creditícia diante do concurso de credores, nos termos do art. 17 da LSAF, nesta ordem: (i) idosos, (ii) pessoas com doenças graves, (iii) pessoas cujos créditos de natureza salarial sejam inferiores a 60 (sessenta) salários-mínimos, (iv) gestantes, (v) vítimas de acidente de trabalho decorrente da relação de trabalho com ou clube ou pessoa jurídica original, (vi) credores com deságio no montante de pelo menos 30% (trinta por cento). Havendo, na eventualidade, concorrência entre créditos preferenciais, os mais antigos terão a preferência.

Nesse contexto, na dicção do art. 15, §2

º, da LSAF, se a requerente comprovar ter adimplido ao menos 60% (sessenta por cento) do seu passivo original ao final do prazo de 6 (seis) anos, será permitida a prorrogação do RCE por mais 4 (quatro) anos, período  no qual o percentual referente aos valores percebidos pelo clube ou pela pessoa jurídica original da respectiva SAF, originalmente repassados para o pagamento dos credores na proporção de 20% (vinte por cento), nos termos do art. 10, inciso I, da LSAF, poderá ser reduzido ao patamar de 15% (quinze por cento).

Ainda no tocante aos débitos do clube ou da pessoa jurídica original, a Lei é clara ao dispor, em seu art. 18, parágrafo único, que, a partir da centralização das execuções, as dívidas de natureza cível e trabalhista serão corrigidas somente pela taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), ou outra taxa do mercado que vier a substitui-la.

Sob a ótica dos credores, o caput do art. 18 da LSAF dispõe que o pagamento das obrigações do clube ou da pessoa jurídica original privilegiará os créditos trabalhistas, cabendo ao plano de credores, apresentado pelo clube ou pela pessoa jurídica original, definir a sua destinação, facultando-se às partes, por meio de negociação coletiva, estabelecer contornos diversos ao plano de pagamento, como se extrai do art. 19 da LSAF.

Ao credor, faculta-se, ainda, nos termos do art. 20 da LSAF, a conversão, no todo ou em parte, da dívida do clube ou da pessoa jurídica original, em ações da SAF ou em títulos por ela emitidos, desde que prevista essa possibilidade em seus atos constitutivos. É facultado, ainda, ao credor de dívida trabalhista e cível de qualquer valor, anuir a um eventual deságio em relação ao valor de face do débito, a seu exclusivo critério, norma que se extrai do art. 21 da LSAF.

Uma peculiaridade da Lei, prevista em seu art. 22, que diferencia as faculdades jurídicas dos credores em virtude da natureza da dívida, é a possibilidade conferida ao credor de dívida trabalhista de, como titular do crédito, a seu exclusivo critério, realizar a sua cessão a terceiro, o qual ficará sub-rogado em todos os direitos e em todas as obrigações do credor e ocupará a mesma posição do titular do crédito original na fila de credores, impondo-se que seja dada ciência ao clube ou à pessoa jurídica original, assim como ao Juízo centralizador da dívida, para que possa promover a devida anotação.

Não obstante, a norma legal prevista no art. 24 da LSAF também confere segurança aos credores em caso de frustração no tocante ao cumprimento do plano por parte do clube ou da pessoa jurídica original, ao impor a responsabilidade à própria SAF constituída, caso seja superado o prazo legal para quitação das dívidas, nos termos da Lei, dentro dos limites das dívidas relacionadas ao setor de futebol – e, quando de natureza trabalhista, integrarão o rol de credores os atletas, os membros da comissão técnica e funcionários diretamente vinculados ao setor de futebol –, respondendo, ainda, pelas obrigações que lhe forem transferidas pelo clube e pela pessoa jurídica original, respeitados os percentuais indicados no art. 10 da LSAF, dispostos neste estudo.

Por fim, norma que, ademais, assegura ao clube ou à pessoa jurídica original estabilidade e segurança jurídico-econômica no curso do cumprimento do plano, perante o Juízo centralizador, é a prevista no art. 23 da LSAF, da qual se extrai que, enquanto o clube ou a pessoa jurídica original estiver cumprindo os pagamentos, nos termos legais, será vedada qualquer forma de constrição ao patrimônio ou às receitas, por penhora ou ordem de bloqueio de valores de qualquer natureza ou espécie sobre as suas receitas.

É esse, portanto, em síntese, o delineamento normativo do RCE, previsto na LSAF.

E para atribuir um verniz de aplicabilidade prática à matéria, dando ao leitor uma noção do que vem sendo entendido pelos Tribunais, embora ainda se trate de matéria incipiente e que certamente demandará maiores discussões, passa-se à análise do que restou decidido, até o momento, em dois recentíssimos Requerimentos de Centralização de Execuções em tramitação perante o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (“TJRJ”), envolvendo dois clubes tradicionais do Estado. Alguns comentários serão apresentados durante essa explanação, com base nos três principais aspectos contidos nos referidos comandos judiciais.

Em um primeiro aspecto, as decisões citadas analisam a temática correlata à legitimidade para a propositura do RCE, tendo reconhecido, o TJRJ, a legitimidade ativa ad causam do clube (assim tecnicamente reconhecido nos termos do art. 1º, inciso I, da LSAF, como entidade organizada na forma de associação civil). Nas decisões, afirma-se que o clube requerente “já se enquadra nas regras especiais positivadas na nova lei”, uma vez que “preenche os pressupostos de legitimidade fixados na Lei, em especial nos já citados artigos 13 e 14”. De fato, a Lei parece ser clara nesse sentido.

O que, porventura, se poderia questionar é a possibilidade de o clube ou a pessoa jurídica original vir a se valer do RCE antes de constituir a SAF. Poder-se-ia afirmar, nessa linha, que, ao fazer alusão, o art. 10 da LSAF, às receitas que seriam destinadas ao pagamento das dívidas ajustadas no plano de credores, estariam englobadas receitas provenientes diretamente da SAF, de tal modo que, em uma interpretação lógico-literal, a pré-constituição da SAF se faria, então, necessária e indispensável; ou, no mínimo, a sua constituição no curso do procedimento.

Em contrapartida, poder-se-ia afirmar que o próprio art. 10 da LSAF faz alusão à possibilidade de que o custeio da dívida dos credores se baseie “em receitas próprias” do clube. No mais, o “Parecer” apresentado ainda em relação à tramitação originária da Lei, correlato ao PL nº. 5.516/2019, ao resumir as possibilidades decorrentes do RCE, consigna, entre elas, a “conversão de dívida em participação acionária da SAF a ser constituída”, dando a entender que não há necessidade de constituição prévia da SAF.

O questionamento que se poderia fazer com base no exposto é, em suma, o seguinte: a legitimidade ativa do clube para instauração do RCE se sustenta independentemente da prévia constituição de uma SAF ou de sua constituição no curso do procedimento? Caso a pergunta venha a ser formulada em algum momento, a questão deverá ser solucionada, oportunamente, pelo Poder Judiciário.

O segundo aspecto relevante para a análise proposta diz respeito ao fato de que o TJRJ já possui, em sua organização interna, um órgão competente para processar e julgar execuções centralizadas; também possui, o Tribunal, regulamentação própria sobre a matéria. De fato, dando materialidade à Resolução nº. 350, de 27 de outubro de 2020, do Conselho Nacional de Justiça, que “estabelece diretrizes e procedimentos sobre a cooperação judiciária nacional entre os órgãos do Poder Judiciário e outras instituições e entidades, e dá outras providências”, o Poder Judiciário do Rio de Janeiro publicou a Resolução nº. 8/2021/TJOE, no dia 11 de maio de 2021, criando e regulamentando o “Núcleo de Cooperação Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro”.

O denominado “NUCOOP” é caracterizado por ser um órgão colegiado administrativo vinculado à Presidência do Tribunal, que, entre outros atos de cooperação, atua, nos termos do art. 6º, inciso IV, da Resolução nº. 8/2021, “na reunião ou apensamento de processos, inclusive a reunião de execuções contra um mesmo devedor em um único juízo”.

Nesse sentido, tendo sido deferido o processamento do RCE, em ambos os casos práticos aqui trazidos ao leitor, reconheceu-se, nos termos das duas decisões, que “este E. Tribunal de Justiça [o TJRJ] já disciplinou o Regime Centralizado de Execuções – RCE”, determinando-se, assim, o encaminhamento dos autos “ao Núcleo de Cooperação Judiciária – NUCOOP, a quem, doravante, competirá dirigir o processo”.

E caso não exista regulamentação no Tribunal específico, como já se dispôs neste estudo, o Juízo centralizador será aquele que tiver ordenado o pagamento da dívida em primeiro lugar. No mesmo sentido, não havendo regulamentação a respeito da tramitação do RCE, caberá ao Superior Tribunal de Justiça sanar tal omissão, na forma dos artigos 14, §1º e 15, §1º, da LSAF.

Por fim, o terceiro aspecto relevante abordado em ambas as decisões referentes ao processamento do RCE relaciona-se ao pedido de tutela provisória de urgência formulado nos termos dos artigos 300 e seguintes do CPC. De fato, analisando-se o procedimento do RCE, observa-se que existe entre o seu deferimento, pelo Presidente do Tribunal, e a apresentação do plano de credores, pelo clube, nos termos do art. 16 da LSAF, um perigoso hiato; notadamente, um prazo que pode chegar a 60 (sessenta) dias.

Nesse compasso, como já se viu nesta análise, o art. 23 da LSAF discorre sobre a vedação à constrição de patrimônio/receita pelos credores, enquanto o clube ou a pessoa jurídica original seguir dando cumprimento aos pagamentos previstos no plano apresentado. Nessa esteira, a partir de uma interpretação mais restritiva dessa norma, pode ser entendido que apenas após a apresentação do plano de credores os atos constritivos estariam vedados. Portanto, durante o período entre o deferimento do RCE e a apresentação do plano de credores, atos constritivos poderiam ser praticados.

Diante dessa possível interpretação, torna-se relevante a concessão da tutela provisória no sentido de impedir atos constritivos e similares, desde o deferimento do RCE pela Presidência do Tribunal. Isso, é claro, caso faça, o requerente, prova do atendimento aos requisitos legais.

Nas duas decisões em análise, a propósito, a tutela provisória de urgência pleiteada pelos dois clubes foi deferida “para o fim de suspender todas as execuções em curso promovidas em face do Requente e, por extensão, toda e qualquer medida constritiva sobre o patrimônio do Clube, nos exatos termos em que foi requerido”.

No momento, os clubes prosseguem nos demais trâmites legais, com as tutelas provisórias deferidas e medidas constritivas suspensas, direcionando-se a questão com base no devido processo legal.

Em conclusão, portanto, à análise ora apresentada, diante de todo o exposto, constata-se que, do aspecto eminentemente normativo ao aspecto interpretativo-aplicativo do RCE, previsto na LSAF como instrumento dotado de verdadeira função remedial contra a crise que assola os clubes de futebol nacionais, o procedimento já vem sendo utilizado e já vem produzindo efeitos positivos com vistas ao soerguimento dos clubes brasileiros.

Sem dúvida, a derrocada sistemática do futebol brasileiro não irá se resolver da noite para o dia. Acredita-se, de todo, que, talvez em alguns anos e com muita dedicação de todos os sujeitos interessados, desde os devedores até os credores, passando por cessionários, representantes e outros players, possa ser alcançada uma acalentadora realidade de superação deste momento tão difícil para o futebol nacional.

No mesmo diapasão do “Parecer” que embasa e norteia a LSAF, apresentado perante o Senado, em relação ao PL nº. 5.516, que deu origem à Lei, espera-se que o RCE possa, de fato, em consonância com os demais meios e instrumentos de soerguimento estrutural e funcional dos clubes e das pessoas jurídicas originais, previstos na LSAF, traduzir verdadeiramente “uma alternativa viável e lógica para o aprimoramento do futebol e seu ecossistema”.

Aguarda-se, assim, ansiosamente, que o matiz de orgulho que reflete as cores azul, verde e amarelo no coração de cada brasileiro, que entoa com orgulho a afirmativa de que o Brasil é uma verdadeira potência do futebol mundial, possa trazer novos tons de inspiração e transpiração às respectivas entidades de prática desportiva – e aos demais agentes do mercado, relevantes nesse projeto de resgate –, internalizando, a partir do além-fronteiras, a mesma mentalidade vitoriosa que o brasão nacional carrega perante todas as demais potências deste esporte em todo o mundo.

Que a solução da crise possa chegar! O trabalho é árduo, mas, sem dúvida, novos instrumentos para o incessante labor foram trazidos pela LSAF, como assim se espera em relação ao RCE. Vamos em frente. mãos à obra; pés à bola.

……….

[1] Mestrando em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) (previsão de conclusão em 2022), LLM em Sports Law pela TREVISAN (previsão de conclusão em 2023), pós-graduado em Direito de Empresas pela PUC-Rio (2017), pós-graduado em Direito Civil pela UERJ (2015), pós-graduado em Direito Processual Civil pela PUC-Rio (2013), graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2011). Advogado especialista em contencioso cível estratégico, atuando no Direito Privado em Geral, e em questões diretamente relacionadas ao Direito Desportivo e à Justiça Desportiva. Membro do Grupo de Estudos em Direito Desportivo (GEDD) da Universidade do Estado do Rio de janeiro (UERJ).

[2] Graduando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e LLM em Sports Law pela TREVISAN (previsão de conclusão em 2023). Membro e fundador do Grupo de Estudos em Direito Desportivo (GEDD) da Universidade do Estado do Rio de janeiro (UERJ).

[3] TUBINO, Manoel José Gomes; TUBINO, Fábio Mazeron; GARRIDO, Fernando Antonio Cardoso. Dicionário Enciclopédico Tubino do Esporte. Rio de Janeiro: Senac Editoras, 2007, p. 74.

[4] Disponível em: https://digitalhub.fifa.com/m/5d60d57540044adb/original/FIFA-Ten-Years-International-Transfers-Report.pdf. Acesso em 21. Out. 2021.

[5] A lista de campeões está disponível em: https://www.fifa.com/tournaments/mens/worldcup. Acesso em 20. Out. 2021.

[6] Essas informações são provenientes de estudo realizado pela Sports Value, que está disponível no seguinte endereço eletrônico:  http://www.sportsvalue.com.br/wp-content/uploads/2021/05/Finan%C3%A7as-Top-20-clube-Brasil-Sports-Value-maio-2021-3.pdf. Acesso em 21. Out. 2021.

[7] O “Parecer” do PL nº. 5.516/2019 está disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8977839&ts=1634242862180&disposition=inline. Acesso em 21. Out. 2021.

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