Por Tom Assmar
No último dia 19 de abril, Liverpool e Manchester United fizeram um daqueles jogos que entrarão para a história por vários motivos. Se já não fosse suficiente o maior clássico do futebol inglês nos trazer um jogo emocionante com um placar elástico de 4 x 0 para o Liverpool, um Anfield lotado viu as duas torcidas rivais se levantarem aos 7 minutos do 1º tempo para fazerem uma homenagem ao jogador Cristiano Ronaldo, liberado do jogo pela perda de um dos seus filhos gêmeos falecido antes do seu nascimento. Impossível assistir a uma cena dessas sem se emocionar. Um gesto de empatia e respeito capaz de mostrar que adversários no esporte não são inimigos na vida, provando que o que molda os fundamentos da nossa humanidade deveria nos unir em todos os aspectos relevantes da vida, já que há coisas bem mais importantes do que apenas torcer para um clube de futebol. Senti alegria, orgulho e esperança, mas confesso que também uma pontinha de inveja. Como eu gostaria de estar ali entre aqueles que se levantaram para aplaudir.
No dia seguinte, o Maracanã recebeu quase 70.000 pessoas para um Flamengo x Palmeiras antecipado, quebrando o recorde de público na era das novas arenas pós copa. A presença de tantos torcedores e a boa qualidade do jogo (especialmente no 1º tempo) mereciam um placar diferente daquele 0 x 0. Afinal, estavam em campo os dois times brasileiros mais vitoriosos dos últimos 5 anos, donos dos maiores orçamentos e dos melhores elencos do nosso futebol, e um empate sem gols sempre deixa um gosto ruim e uma certa frustração. Mas a grande diferença entre essas duas partidas não estava no gramado ou nos placares. Estava no vazio deixado nas arquibancadas pela ausência da torcida visitante do Palmeiras.
O maior clássico inglês virou notícia mundial não apenas graças à qualidade do jogo, mas acima de tudo pela homenagem feita a CR7 por AMBAS as torcidas. E esse é o ponto crucial que separa essas duas partidas. Entre o monólogo da torcida única no Maracanã e o diálogo da torcida mista em Anfield, fica claro em qual dos dois teatros místicos do futebol o público global tem maior interesse em frequentar.
A torcida única em si naquele jogo do Maracanã não é o problema. Há certas circunstâncias muito específicas nas quais ela possa ser justificada como uma exceção. O problema é o que ela representa: nossa permanente e frustrada tentativa de lidar com a violência através da exclusão. Não que isso seja um “privilégio” apenas do futebol, já que a desigualdade é um dos pilares sob os quais construímos nosso pacto social.
Quando empresas ou demais organizações desejam se tornar mais inovadoras, elas investem no aumento da diversidade dos seus integrantes e na ampliação da convivência com o seu ambiente externo. A capacidade de gerar novas ideias e produtos é diretamente proporcional a uma maior diversidade de gênero, origem, etnia, idade, formação, língua e cultura. A convivência suaviza as diferenças, amplia o olhar, promove o diálogo e enriquece a vida. E acima de tudo, ajuda a não transformar diferentes em estranhos, assim como adversários em inimigos.
Nem sempre foi assim, mas a Premier League é hoje o campeonato mais rico do mundo. Não por acaso é também o de maior diversidade, possuindo a maior quantidade de proprietários, dirigentes, técnicos e jogadores estrangeiros. O exemplo que vem dessa convivência contamina positivamente os torcedores, construindo o caminho que leva ao aplauso do adversário. O Fairplay dentro de campo é apenas um dos reflexos do respeito que existe fora dele. É por isso que a torcida única parece resolver nossos problemas quando na verdade apenas os faz cada vez ainda maiores. Afinal, como iremos respeitar aqueles com os quais não convivemos ? Como iremos entender aqueles que não conhecemos ? Se os dirigentes dos clubes brasileiros não são sequer capazes de assistir aos jogos juntos (como acontece em todas as principais ligas do mundo), como então querer que jogadores e torcedores adversários possam conviver em paz ?
Anda, quero te dizer nenhum segredo, falo desse chão da nossa casa, vem que tá na hora de arrumar.
Tempo, quero viver mais duzentos anos, quero não ferir meu semelhante, nem por isso quero me ferir.
Vamos precisar de todo mundo, um mais um é sempre mais que dois.
Para melhor construir a vida nova, é só repartir melhor o pão.
O Sal da Terra – Beto Guedes & Ronaldo Bastos
Nas histórias de Asterix, o Gaulês, cabia ao druida Panoramix preparar uma certa poção mágica que permitisse à sua aldeia rodeada de muros se defender e derrotar os romanos durante suas infinitas batalhas. Afinal, em tempos de guerra é preciso demonstrar máxima força, e o preparo dessas poções exige mesmo um certo conhecimento místico. No entanto, a história recente da humanidade mostra que ficamos muito mais seguros quando frequentamos praças, e não quando erguemos muros. O preconceito e o ódio não são genéticos, mas sim construídos pela ignorância e alimentados pelo isolamento. No incrível mundo da gastronomia buscamos sempre descobrir a proporção perfeita entre os diversos alimentos e texturas, mas no fim é o uso correto do sal que permite encontrar o delicado equilíbrio que intensifica os sabores e harmoniza o paladar. Por isso, nas atuais poções mágicas que preparamos no grande caldeirão das culturas, a convivência é o sal da vida. É ela quem tempera, harmoniza e equilibra o doce, o salgado, o azedo e o amargo que existe em cada um de nós. Felizes daqueles que sentam-se juntos à mesa e aceitam o convite para participar desse banquete, oferecendo seus melhores pratos e descobrindo os infinitos prazeres que o outro tem a nos oferecer.
Crédito imagem: Alexandre Lops
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Tom Assmar tem graduação e mestrado em Administração, e atua há mais de 25 anos com gestão, planejamento e finanças. Acredita que o futuro do nosso futebol passa necessariamente pela formatação de um produto que atenda aos interesses coletivos e pela qualificação da gestão dos clubes. É sócio do Futebol S/A.