Esta coluna propõe, em sua grande maioria, debates sobre a justiça desportiva brasileira. Aliás, a justiça desportiva é pauta de outras sessões aqui no Lei em Campo, que também debatem suas decisões, seus procedimentos e suas peculiaridades. Menciono peculiaridades já que esta forma de resolução de conflitos, em muitos aspectos, é única. Nesta semana quero falar um pouco sobre outra forma de resolução de conflitos desportivos e suas notáveis diferenças em relação à justiça desportiva brasileira: falemos da CONMEBOL.
A CONMEBOL é a confederação continental do futebol na América do Sul e é uma das seis confederações continentais da FIFA. É a mais antiga confederação continental do mundo, com sede em Luque, no Paraguai. Seus membros são as Confederações Nacionais dos seguintes países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. Apenas uma Confederação Nacional pode representar cada país na CONMEBOL.
O sistema disciplinar da CONMEBOL está previsto em seu Estatuto, no Capítulo 16º, e regulado através do Código de Disciplina[1]. São três os órgãos disciplinares da CONMEBOL: o Tribunal de Disciplina, a Comissão de Ética e a Câmara de Apelações.
A composição desses órgãos é feita pelo Congresso da CONMEBOL; os candidatos são propostos pelas Confederações Nacionais membro. O mandato dos integrantes é de quatro anos, permitidas reeleições sucessivas.
Uma das peculiaridades do sistema disciplinar da CONMEBOL é a figura do Juiz Único. Prevê o artigo 65 do Código de Disciplina que o Presidente do Tribunal de Disciplina ou quem o substitua, poderá decidir como Juiz Único se a sanção se limita a uma advertência, repreensão, multa de até cinquenta mil dólares americanos, suspensão de um jogador ou oficial por até cinco partidas ou por três meses, ou qualquer combinação destas sanções assim como em casos de urgência.
Os procedimentos disciplinares são iniciados pela Unidade Disciplinar, que tem sete dias contados a partir do conhecimento da denúncia ou dos fatos que determinaram a abertura do processo para fazê-lo. A Unidade Disciplinar também é responsável: (i) pela tramitação e instrução dos procedimentos disciplinares, (ii) pela comunicação das advertências e sanções automáticas estabelecidas regulamentarmente, (iii) pela execução das decisões adotadas pelos órgãos judiciais (sendo responsável também por iniciar procedimentos disciplinares em caso de descumprimento ou desobediência das decisões), (iv) por decidir sobre a inscrição ou não de um jogador em um campeonato de seleções ou de clubes, e (v) por designar o Juiz Único do Tribunal de Disciplina que deve atuar em um caso específico.
É discricionário à Unidade Disciplinar realizar uma investigação preliminar à abertura do processo. O Código não traz maiores detalhes sobre a condução de tal investigação como quem seria o responsável por fazê-la, quais os meios admitidos, possibilidade de contraditório, etc. Caso a Unidade Disciplinar decida pelo início do procedimento, tal investigação fará parte do processo.
Iniciado o procedimento disciplinar, comunica-se às partes interessadas para que estas formulem alegações e apresentem provas no prazo determinado no escrito de iniciação do procedimento (o Código não traz qualquer previsão de prazos). Em posse de tais documentos o Tribunal de Disciplina formula sua decisão. Tal decisão é disciplinada pelo artigo 60. No Regulamento Disciplinar de 2019, a decisão era disciplinada pelo artigo 54 que trazia, em seu inciso que “Todas as decisões devem ser motivadas.” O atual Código de Disciplina não traz mais esta determinação, e mantém a previsão de que o Tribunal de Disciplina ou seu Juiz Único podem emitir decisões sem fundamento as quais serão plenamente exclusivas desde o momento de sua comunicação. É concedido um prazo de três dias para que as partes interessadas solicitem os fundamentos; transcorrido tal prazo, se não solicitados, a decisão se converte em definitiva.
O Código dá ao Tribunal de Disciplina ou ao Juiz Único a possibilidade de realização de uma audiência[2] para ouvir as partes interessadas, ou seja, tal audiência não é obrigatória no procedimento comum. Ademais, prevê o Código que os órgãos deliberam a portas fechadas e que os membros são obrigados a guardar segredo sobre tudo que tiveram conhecimento no âmbito de suas funções (em especial sobre os fatos julgados, o conteúdo das deliberações e as decisões adotadas). O conteúdo das decisões somente poderá tornar-se público uma vez que estas forem notificadas aos interessados.
As decisões tomadas pelo Tribunal de Disciplina, pelo Juiz Único e pela Comissão de Ética são passíveis de recurso para a Câmara de Apelações. Há ainda a figura do Recurso de Revisão no caso de descoberta de fatos ou elementos de prova após a adoção da decisão que possam influenciar nesta e que não puderam ser apresentados.
Há, como vimos, diversas diferenças nos procedimentos adotados na justiça desportiva brasileira e no sistema disciplinar da CONMEBOL. Destaco duas similaridades: o Código de Disciplina da CONMEBOL reconhece o direito de interpor recurso de apelação ao Tribunal Arbitral do Esporte (TAS/CAS), após o esgotamento de todas as vias internas. Ainda, o Código proíbe expressamente o recurso perante tribunais ordinários de justiça comum.
Entender o funcionamento de outros sistemas disciplinares nos ajuda a compreender a importância dos nossos próprios mecanismos; seja para reconhecer a necessidade de mantê-los ou de alterá-los.
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[1] http://www.conmebol.com/es/codigo-de-disciplina-2020
[2] ARTIGO 58 – COMPARECÊNCIA, DIREITOS DAS PARTES, AUDIÊNCIAS, DECISÕES, COMUNICAÇÃO E CONFIDENCIALIDADE
- A petição devidamente motivada de uma das partes ou se o presidente, seu vice-presidente ou juiz único competente considerem oportuno, poderá ser celebrada uma audiência, para a qual serão convocadas todas as partes.