No último mês o STF julgou um caso de grande relevância e repercussão, decorrente das ADCs (Ações Declaratórias de Constitucionalidade) 43, 44 e 54. Trata-se da análise sobre a possibilidade de cumprimento de pena antes do trânsito em julgado das ações. Ainda que o julgamento tivesse como objeto a declaração da constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, muito foi discutido sobre a garantia dada pela Carta Magna à presunção de inocência, segundo a qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Com base no mesmo artigo, algumas pessoas passaram a questionar também a imposição de punições em outras esferas, como a administrativa e a disciplinar desportiva, antes do trânsito em julgado dos processos. A presunção de inocência tem por objetivo primordial impedir que o Estado exerça seu poder sancionatório e, ainda que sua origem seja penal-criminal, sua interpretação não deve ser restritiva.
Mas até onde pode ser tal princípio aplicado?
Essa é a grande questão a ser debatida. Quando falamos de questões penais, o Estado possui poder de limitar outros direitos do indivíduo, mais claramente a privação de liberdade, mas não apenas. Ou seja, a garantia de não culpabilidade antes do trânsito em julgado do processo tem por objetivo evitar a limitação de direitos por parte do Estado de forma irreparável (uma vez que é impossível restituir o período em que não se gozou de liberdade).
E onde isso impacta o direito disciplinar desportivo?
Ainda que a Justiça Desportiva não seja propriamente uma justiça estatal, ela decorre de imposição legal. Mais que isso, decorre de uma delegação constitucional. E tem por embasamento normas editadas pelo próprio Estado (em complementação às normas privadas). Desta forma, ainda que aplicada por entes privados, uma decisão disciplinar desportiva é em última análise uma manifestação de imposição estatal.
Cabe então observar se tais decisões podem ou não limitar direitos garantidos. A primeira possibilidade de análise é sobre o livre exercício profissional. A privação do pleno exercício profissional é, das penas aplicadas pela Justiça Desportiva, aquela de mais difícil reparação em caso de reversão da condenação em grau superior. E com a popularização dos contratos por desempenho, tais penas podem impactar também verbas de natureza alimentar e, em última instância, o próprio aperfeiçoamento de negócios jurídicos condicionais.
No entanto, diferentemente do que prevê o artigo 283 do Código de Processo Penal, que prevê condições específicas para o cumprimento da pena antes do trânsito em julgado, o CBJD é expresso ao definir, em seu artigo 133, que os efeitos de eventual condenação em primeira instância produzirão efeitos a partir do dia seguinte à proclamação do resultado do julgamento, antes mesmo da publicação oficial da decisão.
Ou seja, em tese, a declaração de constitucionalidade do artigo 283 do CPP não impacta a norma prevista no CBJD. Isso, no entanto, não impede que sua constitucionalidade seja analisada de forma difusa.
Esse questionamento é pouco levantado, mas a discussão merece ser levantada, em especial com relação aos processos que envolvem questões de dopagem, cuja pena começa a ser cumprida antes mesmo de qualquer condenação. Sobre isso falaremos em breve aqui neste espaço.